segunda-feira, 31 de maio de 2010

TRÊS POEMAS DE FERRREIRA GULLAR


Do poeta brasileiro Ferreira GuLlar, galardoado hoje com o Prémio Camões, escolhi três poemas (do livro "Toda a Poesia", 7ª edição, José Olympio Editor, 1999):

PRIMEIROS ANOS

Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

DOIS E DOIS: QUATRO

Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena

Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.

VENDO A NOITE

Júpiter, Saturno.
De dentro do meu corpo
estou vendo
o universo noturno

Velhas explosões de gás
que meu corpo não ouve:
vejo a noite que houve
e não existe mais -

a mesma, veloz, em Tróia,
no rosto de Heitor
- hoje na pele de meu rosto
no Arpoador.

Ferreira Gullar

12 comentários:

Filipe LF disse...

Sensacional!
Visto assim parece que não há nada a temer pela língua portuguesa.
cumprimentos

Anónimo disse...

Incontestavelmente, isto... é Poesia! JCN

Jaime Piedade Valente disse...

Ferreira Gullar é muito melhor que o prémio Camões e a treta da lusofonia.

É tão bom que JCN e outros comentadores deste blog que se julgam poetas poderiam ganhar muito se lessem alguns poemas dele. E com eles ganhariam os leitores do De Reum Natura, isentos que ficariam de ler as suas tentativas poéticas.

Anónimo disse...

Excelente conselho... pelas boas intenções que o motivaram! Só que, meu caro sr. Jaime Ferreira Valente, já li e reli... todos os poemas de Ferreira Gullar, mas... "não vou por aí!". JCN

Anónimo disse...

Parece o Tom Petty!

Anónimo disse...

Parece... mas não é! JCN

Anónimo disse...

Mas não dexo de reconhecer... que parece mesmo! JCN

Anónimo disse...

Desculpe, sr. Jaime Valente, tratá-lo por Ferreira, quando afinal vossemecê é Piedade. Já são Ferreiras... a mais! JCN

Anónimo disse...

Parece ser sem que seja
aquilo que ser parece:
isto às vezes acontece
a quem fingir-se deseja!

JCN

Anónimo disse...

Ferreira com Piedade
não sei por que confundi
quando na realidade
nada os congrega entre si!

JCN

Anónimo disse...

Se acaso vossemecê,
sem que isso seja um dever,
os meus versos diz que lê,
é porque gosta de os ler!

Anónimo disse...

Não se esgota a Poesia
nos poemas de Gullar:
se assim fosse, eu deixaria
de Poeta me chamar!

JCN

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