terça-feira, 11 de maio de 2010

As Ciências entre as Artes e entre as Letras


Em 1959 o físico e romancista inglês Charles P. Snow cunhou, numa famosa conferência que proferiu na Universidade de Cambridge, Inglaterra, a expressão “duas culturas” para se referir à cultura científica e à cultura artística e literária, ao mesmo tempo que salientava o olvido em que se encontrava a cultura científica por parte dos artistas e literatos. Na visão de Snow, ser culto não podia ser mais conhecer, por exemplo, Ariosto e Tasso e desconhecer Galileu. De então para cá a cultura científica tem ganho protagonismo. Autores há como o publicista norte-americano John Brockman que, para ultrapassar o abismo entre as duas culturas, gostam de falar de uma “terceira cultura”, corporizada por cientistas actuais que conseguem fazer a ponte entre os dois campos desavindos. Mas, outros, entre os quais não hesito em me incluir, em vez de multiplicar culturas, preferem ver a cultura humana como uma só, apesar de múltipla nas suas manifestações, e gostam de procurar a unidade onde ela não seja tão óbvia.

De facto, se afirmarmos convencionalmente que a cultura científica nasceu com o italiano Galileu Galilei (1564-1642), que criou e aplicou o método científico, baseado na observação e na experiência e caracterizado pela descrição matemática do mundo, temos de reconhecer que a cultura científica emerge no seio da cultura artística e literária. O pai de Galileu era músico. O filho apreciava a música, e o tema da “música das esferas”, isto é, da omnipresença da música na Natureza, glosado pelo astrónomo alemão seu contemporâneo Johannes Kepler (1571-1630), em Harmonice Mundi” (“A Harmonia dos Mundos”, 1619), não lhe era estranho. Apesar de não ter herdado a aptidão musical do seu progenitor, Galileu revelou-se não só um grande artista (são notáveis as suas representações em aguarelas da Lua, que foi o primeiro a ver com a ajuda de um telescópio) como um ainda maior prosador (o escritor do século XX Italo Calvino considerou-o mesmo o maior prosador da língua italiana). Foi também um poeta, embora incomparável a Dante, que ele leu e comentou quando era jovem.

Como é natural em alguém que atinge patamares tão elevados na cultura, Galileu conhecia a obra dos grandes artistas e os literatos do seu tempo. No artigo "Fronteiras entre a Terra e a Lua. Ariosto e Galileu", publicado na revista "Biblos" (2003), ps. 61-85, a italianista Rita Marnoto, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, depois de notar que Galileu Galilei tinha uma "devoção literária" pelo poema de cavalaria "Orlando Furioso", do italiano Ludovico Ariosto (1474-1533), saído em 1516 (embora em forma completa em 1532, muito antes de Galileu nascer), acrescenta:

"Galileu era dotado de uma brilhante cultura artística, e não só no domínio da música, da pintura, da escultura e da arquitectura, como também na da literatura. A osmose entre arte e ciência que permeia os seus escritos converte-o em directo herdeiro daquele ideal renascentista do homem completo. Ao observar o Universo, Galileu compara-o a um grande livro, '[...] scritto in lingua matematica, e i caratteri sono triangoli, cerchi, ed altre figure geometrische, senza i quali mezi è impossibile a interderne umanamente parola; senza questi è un aggisarsi vanamente per un oscuro lebirinto.' [escrito em linguagem matemática, em que os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem os quais os humanos não podem entender nenhuma palavra, sem os quais eles eles estão condenados a caminhar em vão por um escuro labirinto]. Da mesma feita, ao dar voz às suas severas apreciações críticas acerca da 'Gerusalemme liberata', intituladas 'Considerazioni al Tasso', recorre largamente a paralelos com a pintura, ou com a arquitectura e a escultura, cruzando-os, não raro, com noções colhidas no campo das ciências naturais".

Em “Orlando Furioso” (há uma tradução portuguesa da Cavalo de Ferro de 2007) encontra-se a descrição de uma viagem à Lua feita pelo paladino Astolfo, num animal alado (o hipogrifo), acompanhado por S. João Evangelista, antecipando assim de um século o que é considerado comummente o primeiro conto de ficção científica, “Sonho” (“Somnium”, no latim original, escrito entre 1620 e 1630, mas só publicado em 1634) de Kepler. Em Galileu, a visão da Lua proporcionada pelo telescópio permite realizar uma “viagem” que já não é imaginada ou sonhada como em Ariosto ou em Kepler.

Por outro lado, a menor consideração de Galileu por Torquato Tasso (1544-1595), o autor, também italiano, de “Jerusalém Libertada”, poema épico sobre a primeira cruzada que o seu autor começou a escrever em 1560 e apenas foi publicado em 1580, quando o sábio pisano tinha 16 anos e lhe faltava, portanto, um ano para entrar na Universidade de Pisa, não pode ser entendida como um menosprezo pela arte ou pela poesia, mas tão só como uma preferência artístico-literária pela obra de Ariosto (“magnífico, rico e admirável”, chamou-lhe ele) relativamente à obra de Tasso (“estreito, pobre e miserável”). Lendo a sua crítica a Tasso, escrita entre 1586 e 1588, mas só publicada postumamente, em 1793, percebe-se uma certa incompatibilidade pessoal. O génio de Galileu devia estar mais próximo do estilo de Ariosto, cujo estilo temerário e arrebatador está bem patente na sua obra maior, do que do de Tasso, que passou os últimos anos da sua vida num estado de desespero estético-religioso que desembocou mesmo em perturbação mental.

Galileu deixou-nos um ensaio de literatura comparada ao contrastar e comentar Ariosto e Tasso. O facto de Galileu ter conseguido cruzar com aparente facilidade a linguagem da ciência com as da arte e da literatura, como bem nota Rita Marnoto, mostra que o criador da cultura científica era um homem de cultura multifacetada. Um homem de ciência que soube situar-se entre as artes e entre as letras. E, apesar de longínquo no tempo (os registos das suas primeiras observações da Lua foram publicadas em “Mensageiro das Estrelas”, no originalSidereus Nuncius, em 1610, que acaba de sair entre nós do prelo da Fundação Gulbenkian, numa tradução do historiador de ciência Henrique Leitão), vale a pena, ainda hoje, ir buscar o seu exemplo de há quatro séculos para mostrar a unidade da cultura.

3 comentários:

Jaciel disse...

Deveras cativante à alma há de ser, quando um homem da Ciência investe-se daquele senso para perscrutar os astros e (neles mirando) intuir em seus quadrantes a glória com que numericamente a Matemática poderá deslumbrar-nos em suas quantificações “ad infinitum”.
Se a Igreja a ele houvesse enxergado pelas lentes da Arte, talvez a História nos aduzisse dos fatos diferente e belo registro.

Anónimo disse...

Voltaremos ao ideal dos Humanistas?!... JCN

Luís Silva disse...

Quem afirma que "Galileu criou e aplicou o método científico", não faz parte de nenhuma outra cultura senão aos dos incultos. Pois só um inculto troca Galileu por Bacon e toma como certeza histórica o que muitos e reputados historiadores da ciência tomam como incerto. Carlos Fiolhais volta a brilhar.

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