segunda-feira, 10 de maio de 2010

Boa e má demagogia?

Nas sociedades modernas, considera-se que os partidos políticos são essenciais à democracia e, na prática, aceita-se que sejam os dirigentes partidários a decidir e não o povo, cuja vontade é ponderada apenas em determinados momentos (como as campanhas eleitorais ou manifestações de rua mais visíveis).

Na Atenas clássica, a situação era consideravelmente diversa. Estava-se perante uma democracia directa e plebiscitária, cujo órgão principal — a Assembleia do povo ou dêmos— reunia todos os cidadãos, num agrupamento de massas de natureza heterogénea. O dêmos, além de possuir a elegibilidade para ocupar os cargos e a prerrogativa de escolher os magistrados, tinha o direito de decidir soberanamente em todos os domínios e de, constituído em tribunal, julgar toda e qualquer causa (pública ou privada), por mais importante que fosse. Daí que o dirigente político de Atenas vivesse em constante tensão e precisasse de convencer a pólis, em cada reunião dos órgãos soberanos, da superioridade da sua política e de que as medidas por ele propostas eram as que melhor serviam os interesses da cidade. Enfim, precisava de ser, por excelência, um demagogo — no sentido neutro da palavra enquanto ‘condutor do povo’ e não com a carga negativa que começara a adquirir logo no último quartel do século V a.C. (precisamente a seguir à morte do grande estadista Péricles) e que ainda hoje acompanha o termo.

Os demagogos — na acepção original — tendem a exercer um papel tanto mais significativo quanto maior for o peso atribuído à intervenção efectiva dos cidadãos nos destinos da sociedade e nas decisões do Estado. Não surpreende, por isso, que na democracia ateniense os demagogos constituíssem elementos estruturantes do próprio sistema e do seu correcto funcionamento. Neste sentido genérico, a designação pode inclusive ser aplicada a todos os líderes políticos de Atenas, sem olhar à classe ou pontos de vista, embora esteja sobretudo conotada com os líderes da facção popular e mais progressista, se bem que, em termos de proveniência social, esses mesmos chefes acabassem por ser tradicionalmente recrutados entre as famílias aristocráticas.

Ora foi precisamente em relação ao estrato social de origem dos demagogos que se terá verificado uma considerável evolução após a morte de Péricles (em 429 a.C.). Então e pela primeira vez, o povo escolheu um chefe que não vinha da classe aristocrática — Cléon. A estas personalidades emergentes, que, provindo embora de meios não nobres, atingem o primeiro plano político, os autores antigos e os adversários políticos, de modo geral os aristocratas ou os círculos aristocráticos partidários da oligarquia, passam a chamar demagogos, mas agora em tom depreciativo. E será precisamente sob a acção desses homens e por pressão nociva da Guerra do Peloponeso que Atenas caminhará para um radicalismo cada vez mais violento e intolerante, o qual acabará por ditar o fim da hegemonia política, económica e militar que havia marcado a cidade durante o governo de Péricles. Será errado sustentar que a demagogia, na acepção mais pejorativa, representou o fim do sistema democrático, pois este continuou a existir durante cerca de mais um século, cedendo apenas à política imperialista de Filipe e Alexandre da Macedónia. Mas é também inegável que a acção desses mesmos demagogos abriu caminho a golpes oligárquicos e tirânicos, que lançaram Atenas na senda inelutável da decadência política.

A encerrar esta nota, valerá a pena recordar a forma como o autor da Constituição dos Atenienses, tratado aristotélico composto na segunda metade do séc. IV a.C. (mas não necessariamente por Aristóteles), regista as marcas dessa evolução política (28.1-3):

“Ora enquanto Péricles esteve à frente do dêmos, a situação política manteve-se num cenário favorável; após a sua morte, porém, ficou bastante pior. De facto e pela primeira vez, o dêmos escolheu para seu chefe alguém que não gozava de boa reputação entre as classes superiores, quando, até então, estas haviam estado sempre à frente da vontade popular.
Assim acontecera, de facto, desde o início: Sólon havia sido o primeiro chefe do povo, Pisístrato o segundo — e ambos pertenciam ao grupo dos aristocratas e dos notáveis; com o derrube da tirania, foi a vez de Clístenes, da família dos Alcmeónidas, que não teve adversário à altura, depois do exílio de Iságoras e seus apoiantes. Em seguida, Xantipo foi o dirigente do dêmos e Milcíades o chefe dos aristocratas; depois vieram Temístocles e Aristides; a seguir a estes, Efialtes esteve à frente do dêmos e Címon, filho de Milcíades, chefiou a classe dos ricos; finalmente, coube a Péricles a liderança sobre o dêmos e a Tucídides, parente de Címon, a da outra facção. Com a morte de Péricles, o guia dos notáveis foi Nícias, que havia de perecer na Sicília, e coube a Cléon, filho de Cleéneto, a direcção do dêmos. Ao que parece, foi este, com as suas impulsividades, quem mais corrompeu o dêmos: foi o primeiro a gritar na tribuna, a usar termos insultuosos e a discursar com a roupa cingida, enquanto os outros se exprimiam com decoro.”
Delfim Leão

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