quinta-feira, 6 de maio de 2010

AS PONTES DO NOSSO ABISMO


Reproduzimos crónica do historiador João Gouveia Monteiro, publicada há dias no "Diário de Coimbra", a propósito dos feriados decretados pelo governo por ocasião da visita do papa Bento XVI (na imagem):

A tolerância de ponto anunciada para o dia 13 de Maio em todo o País, por motivo da visita de Sua Santidade o Papa Bento XVI, acompanhada por tolerâncias em Lisboa e no Porto na antevéspera e no dia seguinte, respectivamente, convidam-me a considerar aqui um tema que já pensara tratar por ocasião do feriado da terça-feira de Entrudo. Não é um tema popular, mas penso que vale a pena abordá-lo pois é altura de encararmos de frente os problemas do País que somos todos nós.

Portugal ocupa um lugar desolador na maior parte dos indicadores económicos, sociais, culturais e educativos da União Europeia. Temos uma dívida colossal, sobretudo quando comparada com a riqueza que produzimos. Muitos duvidam da nossa capacidade para controlar o défice dentro do prazo exigido e há já quem ameace com a possibilidade de Portugal e a Grécia terem de sair da Zona Euro. O desemprego atinge níveis alarmantes e daí decorrem problemas sociais gravíssimos. E, no entanto, Portugal é um dos países europeus com um maior número de feriados nacionais por ano: uma dúzia. Se a eles acrescentarmos os feriados municipais, os fins-de-semana e uns 20 dias úteis de férias concluiremos que em 2010, nos 365 dias do nosso calendário, muitos Portugueses trabalharão apenas 228.

Ainda assim, não trabalhar 137 dias por ano (37,5% do total) não constitui regalia suficiente. Por isso inventámos as “pontes”. Sempre que um dos feriados calha a uma terça ou a uma quinta-feira, é certo que milhares de funcionários gozam de um descanso suplementar. E porquê? Apenas porque se trata de um dia vulgar entalado entre um feriado e um fim-de-semana, ou vice-versa. Somente mais uma interrupção, um dia de férias suplementar, concedido pelos acasos do calendário. Para azar de muitos, em 2010 só há quatro casos nessas condições: no Entrudo, no Corpo de Deus, no Dia de Portugal e na Implantação da República. Os restantes feriados calham, ou à segunda e sexta-feiras (o que também não é mau), ou à quarta-feira (o que é mais desfavorável mas pode levar alguns a interessar-se pelo significado do 1 e do 8 de Dezembro) ou então ao fim-de-semana (uma sobreposição assaz desagradável). Mas há ainda outras hipóteses para sermos felizes. São as tolerâncias ditadas por circunstâncias excepcionais, como no caso da visita de Bento XVI. Uma tolerância “ad hoc” mas que alcançou já um efeito improvável: pôs de acordo associações patronais e sindicatos quanto à sua inconveniência.

Este panorama merece um comentário amargo. Sobretudo no que tem que ver com as “pontes” e com os famosos “roulements” que daí decorrem. Todos sabemos como este sistema é prejudicial ao normal funcionamento de qualquer serviço. Quem está fora, em regime rotativo, não só não trabalha como impede que muitas tarefas, por serem partilhadas ou por falta de informação relevante, não sejam possíveis de concretizar pelos que estão ao trabalho. Daí resulta o adiamento de muitas decisões (ou a tomada de decisões erradas), alguma desorganização interna e a recaída constante em ciclos laborais de “stop and go” deveras prejudiciais. Acho bisonho que um País como o nosso, que importa quase tudo e que deve mais do que aquilo que produz, se permita continuar a viver neste registo. O trabalho não deve ser visto como um ‘frete’, como um ‘mal necessário’, mas como um direito (a que muitos não têm ainda acesso) e como um instrumento para a nossa realização pessoal e para o progresso da sociedade em que vivemos.

Os nossos filhos e netos merecem herdar de nós um País mais próspero, mais harmonioso e menos dependente. Não os conseguiremos satisfazer enquanto vogarmos nestas águas estagnadas sobre as quais continuamos a construir feriados e pontes que não nos aproximam de nada a não ser do nosso próprio abismo.

João Gouveia Monteiro

7 comentários:

Anónimo disse...

Será o Papa Bento XVI... que veio "estagnar as águas"?!... JCN

Xico disse...

Sou funcionário público e a argumentação das pontes é uma falácia. Não me lembro de gozar pontes há muitos anos. Quando quero aproveitar "uma ponte" por motivo de um feriado, tiro um dia de férias. Assim fazem todos que comigo trabalham. Não é assim um dia de férias suplementar. É retirado do período de férias a que cada um tem direito. Desafio a que provem que se gozam pontes na função pública (para além do ensino) sem ser à custa das férias de cada um.
Quanto à tolerância de ponto, gostaria de lembrar que é da tradição no mundo rural conceder a tarde de quinta-feira da espiga que este ano calha a 13 de Maio. Também em muitos concelhos esse dia é feriado municipal. Assim esta tolerância praticamente só tem significado nos centros urbanos. Acresce que em muitos países os feriados que calham ao fim de semana são concedidos no dia útil seguinte. Não é o caso de Portugal.

Anónimo disse...

A matemática está mal feita...somar feriados nacionais e municipais dá uma ideia errada que todos os portugueses gozam 137 feriados anuais. Não se deve esquecer que muitos dos feriados aludidos acabam por coincidir com sábados e domingos, o que em termos práticos acaba por os anular para a maioria dos trabalhadores. Conhecendo e respeitando o Prof. Gouveia Monteiro sei que faz esta crítica de forma construtiva, mas infelizmente a baixa produtividade nacional resulta de factores que ultrapassam os simples feriados. Curisoamente este tipo de discurso é exactamente igual aquele regularmente repetido pelos "pseudo-empresários" portugueses. Pessoas que pedem incessantemente mais energia mais barata (vulgo centrais nucleares), salários mais baixos, mais horas de trabalho e claro, menos impostos. No entanto continuam a utilizar maquinaria com baixo aproveitamento energético e empregados com baixa formação, que passam anos sem receber acções de reciclagem.

F.C.

Fartinho da Silva disse...

Aqui há imensos erros de matemática e como tal peço ao autor do post que o corrija para podermos perceber o alcance do mesmo.

Anónimo disse...

E tudo isto... por causa da vinda a Portugal do Papa Bento XVI! JCN

Anónimo disse...

"Gato escondido... com rabo de fora". JCN

De Rerum Natura disse...

Texto recebido do autor:

Agradeço a leitura do post e os comentários recebidos. Tal como pedido, anexo alguns esclarecimentos:
1. O meu texto não visava a visita do Papa, mas a concessão de tolerância(s) de ponto por esta ocasião. Podia ter sido escrito também noutro contexto, como aliás se diz logo no primeiro parágrafo. Diria o mesmo caso se tratasse de um líder político, ou religioso de outra qualquer confissão.
2. É certo que em 2010 há um ou outro feriado ao fim-de-semana, é correcta a observação, pelo que cerca de 228 dias de trabalho seria um número hipotético para um ano (comum) sem sobreposições desse tipo. Julgo que para 2010 o número exacto será muito ligeiramente acima de 230 (a maioria dos feriados municipais não calha ao fim-de-semana e não estive a considerar num pequeno texto genérico os casos especiais pertinentemente citados nalguns comentários, nem o número de dias úteis de férias, que até pode ser superior a 20, etc.).Em síntese, a aferição matemática não altera em nada o sentido do meu texto: muitos Portugueses não trabalharão, no ano de 2010, em mais de um terço dos dias do ano (mesmo sem considerarmos as famosas 'pontes'). Este é o facto.
3. O artigo parte da minha experiência pessoal de vários anos na direcção de serviços distintos na área da Administração Pública. Posso garantir que nunca tive um funcionário a meter férias em períodos de 'ponte' (isso, realmente, seria o correcto, desde que minimamente programado) e que todos os anos tenho numerosas faltas ao serviço em mero usufruto do sistema de 'roulement' por ocasião de pontes entre feriados e fins-de-semana (ou vice-versa).
4. Bem sei que a baixa produtividade não resulta só, nem sobretudo, disto (mas também de salários baixos, de fraca formação, de equipamento anquilosado, etc.). Estou de acordo mas também creio que não afirmei isso no meu texto. Apenas pretendi chamar a atenção para a má relação que muitos Portugueses têm com o trabalho e para a necessidade de, em período de graves dificuldades económicas, sermos mais restritivos na concessão de tolerâncias de ponto (e menos permissivos com o sistema, tão enganador, dos 'roulements').
5. Pode ser que haja realmente países em que os feriados, quando calham ao fim-de-semana, passam para o dia útil seguinte. Mas também os há em que, quando calham à 3.ª ou à 5.ª feiras, são encostados à 2.ª ou à 6.ª feiras, justamente para evitar paragens sucessivas do trabalho (o tal efeito pernicioso de 'stop and go' a que me referi). É só uma questão de tomarmos o exemplo certo.
6. Em síntese: dou a cara por um país em que possa haver uma cultura de trabalho um pouco mais exigente. Sendo que esse 'país', como se diz no texto, somos "todos nós". Mas é só a minha opinião. Como dizia o grande prelado brasileiro D. Hélder da Câmara, "corrige-me, tu me enriqueces".

João de Gouveia Monteiro

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