terça-feira, 4 de maio de 2010
A herança genética de Eva
Novo artigo de António Piedade, saído no "Diário de Coimbra":
Eva é uma criança de cinco anos que sofre de síndrome de Leigh, uma doença rara que ataca o sistema nervoso central, interferindo gravemente no seu desenvolvimento cognitivo e controlo motor.
Eva herdou esta desordem pelo lado materno. A sua bisavó também sofreu enquanto criança mas conseguiu recuperar até a adolescência. Para identificar a causa genética da doença de Eva e para desenvolver uma terapia a ela ajustada, foram efectuadas a ela, à sua mãe e irmãos, análises bioquímicas e genéticas. Contudo, as análises aos genes do seu ADN e ao dos seus familiares directos revelaram-se infrutíferas na identificação da anomalia hereditária. E porquê? Porque o problema não residia no ADN dos cromossomas nucleares herdados da sua mãe (e também do seu pai), mas sim no ADN dos cromossomas circulares existente nas suas mitocôndrias.
A mitocôndria é um dos organelos mais importantes que existem dentro das nossas células. São autênticas centrais energéticas responsáveis pela última e mais eficiente transformação dos nutrientes energéticos que ingerimos, transferindo a energia que eles contem para uma moeda franca em forma química, o ATP, utilizável em qualquer processo orgânico que precise de energia: pensar, correr, amar. Possui numa das suas membranas, a interna, uma cadeia complexa de metalo-proteínas que transportam electrões até ao oxigénio molecular que inspiramos, num processo que envolve a bombagem de iões hidrogénio de um compartimento para outro, gerando assim a força motriz para a síntese de ATP. As semelhanças com as células de combustível (hidrogénio) são impressionantes.
Quando alguma coisa causa um mau funcionamento da mitocôndria isso vai repercutir-se em instabilidade celular de que pode advir doença do organismo.
A mitocôndria possui os seus próprios genes num cromossoma circular do qual possuem várias cópias. Os genes codificam o manual de instruções de algumas das proteínas de que ela “precisa” para funcionar. Curiosamente muitas das outras proteínas que a compõe, estão codificadas não neste cromossoma mitocondrial, mas nos cromossomas nucleares da célula. Ou seja, não temos só informação genética nos 46 cromossomas que herdamos dos nossos progenitores (23 do pai, 23 da mãe), mas também no cromossoma circular mitocondrial. Só que, herdamos mitocôndrias só da nossa mãe. As mitocôndrias que existem nos espermatozóides, geradoras da energia necessária para que eles atinjam o óvulo e o fecundem, são selectivamente destruídas pelo óvulo uma vez nele interiorizadas. Resumindo, de geração em geração a linhagem do ADN mitocondrial é quase 100% materna.
Ora foi através do estudo comparado da sequência deste ADN mitocondrial, em várias populações humanas e outras espécies de hominídeos, que foi identificada, em 1986, a Eva mitocondrial (ou seja, a nossa mãe primeva), ou seja o ancestral comum mais recente por via materna, de todos os seres humanos actuais, que terá vivido em África há cerca de 150 mil anos (aqui).
Note-se que esta Eva mitocondrial é do género Homo e não corresponde ao fóssil com 3,2 milhões de anos baptizado por “Lucy”, descoberto na Etiópia em 1974 e que é do género Austrolopithecus.
Neste contexto, refira-se que foi também através da análise e comparação do ADN mitocondrial extraído de uma falangeta fossilizada e encontrada no ano passado, numa gruta na Sibéria, que foi possível identificar uma terceira sub-espécie humana, ao que tudo indica, contemporânea do H. sapiens sapiens e do H. sapiens neandethalensis: o Homem de Denisova (aqui).
Como as nossas, as mitocôndrias de Denisova também descendem da Eva mitocondrial.
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3 comentários:
A este respeito permito-me referir o excelente livro de Luísa Pereira e Filipa Ribeiro ( Gradiva,2010) "O património genético português" cujo cap. 1 constitui uma magnífica introdução sobre a origem e a migração das linhagens, maternas e paternas. Para um interessado, não especialista, como eu e muitos como eu, é uma fonte de informação clara e muito agradável de ler.
Daniel de Sousa
Em conversa com a Professora Doutora Manuela Grazina (FMUC), especialista em genética mitocondrial, foi-me dito que caso a suposta bisavó da menina citada tivesse sofrido de síndrome de Leigh, por este ser fatal (na grande maioria dos casos), ela, a bisavó, não teria sobrevivido para deixar descendência. Assim, hunildemente, venho retirar a bisavó desta crónica, substituindo-a por uma outra que, embora transmistindo a instabilidade genética mitocondrial, não sofreu do sindrome de leigh enquanto criança. Contudo, legou à descendencia e por via materna a alteração no genoma mitocondrial.
Mas creio que tudo depende da constituição do DNA mitocondrial da avó, ou seja, do seu nível de heteroplasmia para a codificação do complexo I, um dos responsaveis pelo síndrome de Leigh e cujo défice tem expressão no DNA mitocondrial.
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