segunda-feira, 2 de maio de 2011

Sobre Abel Salazar (1889-1946)


Novo post do historiador António Mota de Aguiar:

Abel Salazar nasceu em Guimarães, num quarto de hotel, que os seus pais alugaram após o casamento, por não terem ainda casa. Teve mais um irmão, Camilo, que morreu ainda jovem, e uma irmã, Dulce, sua biógrafa.

Seu pai era um homem culto, afoito às artes e aos problemas da ‘res publica’ (Norberto Ferreira da Cunha, Génese e Evolução do Ideário de Abel Salazar, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, obra que seguirei ao longo deste artigo, e cujas referências escreverei em italico), que, por razões profissionais, foi, no ano lectivo de 1881-1882, transferido para o Porto. Abel e Camilo não seguiram os pais, ficaram a viver em Guimarães, em casa da avó e de uma tia. Abel Salazar guarda as melhores recordações de sua infância do tempo passado em casa da avó.

No ano lectivo de 1899-1900, com dez anos, ingressou no Seminário-Liceu de Guimarães, e, não obstante ter sido um aluno distinto, guardou deste tempo amargas e perduráveis recordações, pela obscura e intransigente educação religiosa ministrada neste estabelecimento. Também Guimarães, o Burgo Pôdre, como escreveu um jornal vimaranense da época, deve ter influenciado a sua infância e adolescência e concorrido para a sua “instabilidade emocional”, como nos diz Jaime Celestino da Costa no prefácio das 96 cartas de Abel Salazar escritas a seu pai. Uma união conjugal sem amor influiu igualmente na sua atormentada vida, embora, a meu ver, bastante rica, pelos múltiplos desafios que enfrentou como cientista, filósofo, escritor, crítico de arte e pintor.

Ainda jovem, aderiu ao ideal republicano e imbuiu-se de ideias revolucionárias e generosas” de “Uma sociedade de tal modo evoluída que ‘dispense’ qualquer forma de autoridade externa e se cinja tão-somente à que é imanente à consciência moral e à razão, liberta de dogmatismos e purificada pela ascese”, como escreveu Sampaio Bruno. Agnóstico, filósofo positivista defensor das ideias do Círculo de Viena, Abel Salazar era anticlerical e anti-jesuíta, ideias que muito cedo se instalaram na sua mente, e, pode-se dizer, nunca mais o largaram até ao fim da vida, embora se contem entre os seus amigos pessoas ligadas ao clero.

Em 1903 matriculou-se na 4.ª classe, no Liceu Central do Porto, “um casarão”, como ele lhe chamaria, e do qual também recolheu más recordações. No ano lectivo 1906-1907 concluiu a 7.ª classe de Ciências e ingressou na Academia Politécnica do Porto e, em 1909, na Escola Médico-cirúrgica do Porto, tendo sido um aluno escrupuloso no cumprimento dos seus deveres. Segundo a sua irmã, Dulce, Abel Salazar queria ser engenheiro, mas terminou como investigador científico na área da medicina.

Nos anos lectivos 1913-1915, foi convidado para 2.º assistente de Anatomia Patológica, que desempenhou com inteira satisfação dos seus mestres. Em 1915, quando terminou o curso, recebeu vários convites para ingressar na carreira universitária, que declinou, enveredando pela investigação em histologia. Em 1916 o Conselho da Faculdade de Medicina do Porto encarregou-o da regência da cadeira de Histologia.

Em 1918, com 30 anos, foi nomeado Professor Catedrático de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Pouco tempo depois funda o Instituto de Histologia e Embriologia da mesma Faculdade. Começava, assim, uma carreira brilhante dedicada à investigação científica, que duraria 10 profícuos anos, que o tornariam internacionalmente conhecido.

Na primeira metade da década de 20, empreendeu uma série de pesquisas tendentes a definir e esclarecer a estrutura e evolução do ovário, criando o célebre método, que tem o seu nome, de coloração tano-férrico, de análise microscópica, que lhe abriu caminhos no meio científico, tornando-se internacionalmente conhecido e publicado em várias revistas internacionais. Porém, por volta de 1927, Abel Salazar sofreu um esgotamento, que o afastou da Faculdade. Em 1931, quando regressa, encontra o seu gabinete desmantelado, contudo, não desistiu da investigação científica, passando a fazê-la em casa e continuando a publicar importantes trabalhos de índole científica.

Em 1935 (juntamente com outros professores universitários), a Ditadura despediu-o da sua cátedra, do seu laboratório, e proibiu-o de entrar na Biblioteca da Faculdade. E se, alguma vez, depois da sua demissão, acalentou a esperança de voltar à sua Faculdade – convicto de que justiça lhe seria feita -, em breve viu essa esperança esfumada. Solicitando autorização ao ministro da Instrução para leccionar um “curso de Histologia e de Sistemática do Sistema Nervoso” para uso dos médicos, foi informado pelo Governo Civil do Porto que o seu pedido fora indeferido, igualmente solicitou, ao mesmo ministro, permissão para frequentar os laboratórios e bibliotecas da Faculdade, sendo informado por Almeida Garrett, então seu director, que, por despacho ministerial, lhe fora vedado o acesso a qualquer dependência universitária. E, quando pensou fazer a sua vida no estrangeiro, aproveitando ora uma bolsa do British Council, ora alguns convites que lhe foram endereçados de França, EUA e Inglaterra, o visto de saída foi-lhe recusado.

Isso levou Abel Salazar a escrever, em 1936, na sua 55ª Carta ao seu amigo e colega de Lisboa, Celestino da Costa, o seguinte:

“Confesso que o que me irrita é não me consentirem em ir ao laboratório, ou pelo menos à Biblioteca do Instituto fazer consultas bibliográficas, coisa perfeitamente estúpida e sem qualquer utilidade. Que mal poderia eu fazer na Biblioteca: lançar bombas? "

A Ditadura não era estúpida: era perversa, cria acabar com qualquer vestígio, fosse ele científico, dos que saiam da sua ideologia. Após os despedimentos mencionados, foi-lhe movida uma perseguição. Na carta 56ª que escreve ao seu amigo histologista de Lisboa, dá conta da teia que lhe estão a mover:

“Se não sou político não estou com esta Situação, tenho esse direito, creio eu, como também tenho o de não entrar para a União Nacional” (…). Acusam-me também de sugestionar os estudantes, o que é verdade mas no sentido de se criarem a liberdade de espírito e uma educação científica sólida, em oposição com uma educação metafísica nebuloso e estéril."

E mais à frente escreve:

“(…) Os elementos da Ditadura no Porto queriam-me impor a “reclamação”, o que eu não estava disposto a fazer, nem estou. Propuseram-me concordatas, plataformas, etc., mas eu respondo sempre que não tendo sido nunca político, não tendo ligações políticas, nem pertencendo a nenhum partido, não tinha que fazer concordatas nem reclamações”. (…) Mas precisamente porque não sou político é que nunca aceitei os benefícios que a Ditadura me ofereceu em tempos a troco duma adesão. Todas as minhas aspirações se resumem em viver livremente, trabalhar e ter uma actividade intelectual livre”.

Ser livre… estava precisamente nas antípodas da Ditadura.

Abel Salazar não foi só médico histologista reconhecido internacionalmente, foi também pedagogo, escritor, critico de arte, filósofo das ciências e pintor, tendo-nos deixado numerosos e variados testemunhos do seu talento.

Como pintor, pensava como muitos críticos desta época: “a Arte pela Arte quase não faz sentido. O que faz sentido é a arte pela justiça a arte pela vida, a arte para enobrecer e melhorar os homens”, a arte pela arte, pensava ele, “reduzia o trabalho da inteligência a uma quinquilharia do espírito”. Para Abel Salazar a arte devia defender os desprotegidos, especialmente as mulheres, as quais pintou com profusão nos seus quadros. A sua expressão artística, o impressionismo, a maneira expressiva e dramática dos seus temas, revela uma elevada riqueza plástica.

Antes da sua demissão, em 1935, o histologista portuense, efectuou várias conferências de divulgação, mas, a partir desta data, as conferências cederam lugar aos artigos, tendo passado a escrever em vários periódicos: O Trabalho, A Voz da Justiça, O Diabo, O Sol Nascente, a Seara Nova, a Pensamento, e outros. Sobretudo nos jornais O Sol Nascente e Diabo, levou a cabo uma intensa divulgação do Empirismo Lógico do Círculo de Viena.

Em 1937 foi acusado por Casais Monteiro e, sobretudo, por António Sérgio, de simplismo nos seus artigos de vulgarização. Este confronto de ideias resultou de enorme dureza, sobretudo o que teve com António Sérgio, mas deixaremos para outra oportunidade a análise desta polémica.

A acção política de que Abel Salazar foi vítima perturbou, sobremaneira, a sua actividade científica, contrariando a sua cátedra e a investigação histológica que fazia, tornando-nos a nós todos mais pobres, por aquilo que poderia ter aportado ao avanço da ciência em Portugal.

António Mota de Aguiar

1 comentário:

Anónimo disse...

Nos tempos que correm é de toda a pertinência relembrar aos mais jovens ou aos mais distraídos o que foi a Ditadura!

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