terça-feira, 17 de maio de 2011
Prefácio a Caminhos de Ciência
Meu prefácio ao novo livro de António Piedade, que já se encontra à venda e será apreesntado na Feira do Livro de Coimbra no próximo sábado:
O poeta espanhol António Machado escreveu versos que ficaram merecidamente célebres e que me vieram logo ao espírito quando li, no título do manuscrito que deu origem a este livro, a palavra “caminhos”:
“- Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.”
Um cientista é, de facto, um caminhante que “faz caminho ao andar”. A ciência progride quando o cientista percorre, por sua escolha, caminhos que nunca antes ninguém tinha sulcado, mas que a partir daí ficam à disposição de outros para serem alargados e melhorados. Por vezes o primeiro passeio é solitário, enquanto noutras ocasiões a excursão se realiza em grupo. Nalguns casos, uma vereda estreita, escolhida com inteligência por um só caminhante ou por um pequeno grupo no meio de terreno virgem, dá progressivamente lugar a uma via larga por onde muita gente vai passar.
Esta metáfora do desbravar das fronteiras de ciência não é, evidentemente, original. O grande matemático alemão David Hilbert, num discurso que pronunciou em memória do seu colega suíço Hermann Minkowski (o famoso professor de Matemática de Einstein, na Escola Politécnica de Zurique, que mais tarde ajudou à matematização da teoria da relatividade restrita), afirmou:
"A nossa ciência, que amámos acima de todas as coisas, juntou-nos. Ela apareceu-nos como um jardim florido. Neste jardim existiam caminhos bem conhecidos de onde se podia olhar à volta à vontade e desfrutar a paisagem sem esforço, especialmente ao lado de um companheiro de ofício. Mas também gostámos de procurar trilhos escondidos, tendo descoberto uma vista inesperada que era agradável aos olhos; e quando um a apontava aos outros, e a admirámos em conjunto, o nosso prazer era completo."
O prazer da descoberta científica começa, portanto, por ser o prazer dos calcorreadores de novos trilhos, um prazer que tem de ser, pela própria natureza da ciência, rapidamente comunicado a outros (ciência oculta não é ciência!), de modo a que a admiração seja “em conjunta” e o “prazer completo”. Em primeiro lugar, é comunicado aos colegas de ofício que sabem reconhecer um “bom caminho”. É a partilha imediata do saber entre os pares que permite a sua avaliação e eventual validação, impedindo a propagação de quaisquer erros. Mas o prazer da descoberta deve também ser, sem grande atraso, comunicado à sociedade em geral, para que os mais interessados fiquem com uma ideia, ainda que preliminar e aproximada, do que acaba de ser acrescentado a esse património da humanidade que é o conhecimento científico do mundo. A ciência, um dos mais notáveis empreendimentos do Homo sapiens sapiens, deve ser propriedade de todos. E, por isso, as novidades da ciência devem estar à disposição do conjunto de todos os seres humanos, que têm, além dessa aquisição intelectual, também direito aos benefícios da aplicação dos conhecimentos do modo mais equitativo que for possível. A ampla difusão dos ensinamentos assim como das aplicações da ciência é hoje um elemento indispensável do conceito de ciência.
António Piedade é um talentoso comunicador de ciência. Com formação em bioquímica e vários artigos originais publicados nessa área do conhecimento científico, ele sabe como o “caminho se faz a andar”. Tem-se revelado, nos últimos anos, uma voz original na comunicação de ciência em língua portuguesa, uma voz que consegue com aparente facilidade transpor a barreira entre os primeiros exploradores e aqueles que estão interessados em saber novas da exploração. Os seus dotes de comunicador eram já conhecidos dos leitores das crónicas que foram reunidas no livro “Íris Científica” (Coimbra, 2005), mas agora eles estão mais apurados e revelam-se de forma ainda mais clara nesta obra, que o autor, talvez inspirado no poeta espanhol, intitulou “Caminhos da Ciência”. Desta vez reuniu um conjunto de crónicas publicadas principalmente no jornal “Diário de Coimbra” e republicadas no blogue “De Rerum Natura”, que com ele e outros colegas e amigos mantenho na Internet desde 2007 (o título “Da Natureza das Coisas” foi tomado do poeta latino Tito Lucrécio Caro, que viveu no século I da era cristã). Essas crónicas mereciam a dignidade e a visibilidade pública que só a reunião entre a capa e a contracapa de um livro podem proporcionar. O presente livro, que a Imprensa da Universidade de Coimbra resolveu em boa hora trazer a lume, contribuirá decerto para alargar substancialmente o número dos seus leitores e admiradores.
Há um elemento muito peculiar na escrita de António Piedade que contribui sobremaneira para o prazer da leitura: é a marca literária, por vezes mesmo poética, que ele sabe imprimir à sua escrita. As crónicas partem, em geral, de situações do quotidiano, que no caso das crónicas de ciência são o dia-a-dia da descoberta científica, nos laboratórios e centros de investigação, esse percorrer de caminhos de que falava Hilbert. Mas o modo como o presente autor nos transmite esse dia-a-dia prende-nos sobretudo pelo lado da emoção e da arte. A arte da prosa é enriquecida pela arte das ilustrações, da autoria de Diana Marques. E, por vezes, é enriquecida ainda por referências a sons musicais que o leitor poderá encontrar e ouvir (o autor revela-nos como a música se liga ao vazio cósmico, ao Sol e aos nossos próprios genes). Esta ligação à arte mostra bem como é completamente errada a ideia, infelizmente mais comum do que seria desejável, de que a ciência é uma actividade fria e burocrática. A ciência é uma actividade humana, à qual não falta nada do que é humano. Entrelaça-se amiúde com a arte. Pois não falava Hilbert de “vista agradável aos olhos”, deixando bem claro o elemento estético da ciência?
Os temas dos textos aqui reunidos pertencem, na sua grande maioria, do domínio das ciências da vida, o que era de esperar dada a formação do autor. Mas as ciências básicas como a física e a química estão de uma maneira ou de outra presentes, como é natural uma vez que elas, por um lado, dão conta dos processos elementares que originam a rica fenomenologia da vida (a genética, o sistema neuronal, a fisiologia, etc.) e, por outro, ajudam instrumentalmente a desvendar os segredos da vida (basta pensar na poderosa imagiologia física ou na complexa bioquímica que a moderna biomedicina exige). Ao ter sempre presente a interdisciplinaridade, este livro ajuda a compreender os novos caminhos das ciências e o modo como eles estão a ser percorridos pelos cientistas de hoje. O autor parte, em muitos casos, de notícias que apareceram no final da primeira década do segundo milénio, a década em que se descodificou o genoma humano e em que foi criada a primeira “bactéria artificial”), e conta-nos não só o que tem sido conseguido no desbravar das fronteiras científicas mas também quais são as novas fronteiras que se perscrutam.
À medida que a ciência avança, a comunicação científica também avança. “Caminhos de Ciência” é uma apresentação singular e inovadora no nosso panorama da divulgação científica. Os caminhos da comunicação científica tal como os da ciência fazem-se a caminhar…
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19 comentários:
Nem de propósito, a tentação
Caminante no hay camino
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.
António Machado
Quem não conhece?! JCN
Há "propósitos"... que matam a Poesia! JCN
É sempre generoso o lançamento de um livro!
E, se feito de crônicas, por especial do Dr. António Piedade, presente com bela ciência ao ser este da pena a poesia que desvenda caminhos do conhecimento.
Parabéns, um grande momento.
O átomo,não existe ! O Mundo são estórias (com substrato científico, sim) como as que António Piedade conta, isso sim, é bem real :)
Parabéns António e que a mão (ou os dedos) te não doam !
Parabéns,
Francisco Pires
Máquina do Mundo
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto é matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
António Gedeão (1961)
Todas as Opiniões que Há sobre a Natureza
Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar como nas cousas;
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?
Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.
Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas.
Alberto Caeiro,
in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa
Lágrima de preta
(…) Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado. (…)
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão (1961)
A que... propósito? JCN
Aproveito a oportunidade para partilhar o vídeo de Richard Dawkins sobre os Enemies of Reason - Slaves to Superstition.
Nem resisto à tentação de ouvir pela enésima vez a Sinfonia da ciência, ou a poesía da realidade, um verdadeiro hino à Ciência.
Quem não gostaria de escrever um livro assim, descodificando cientificamente o mundo com a sensibilidade de um Poeta?! JCN
Já agora, mais um "a propósito" da minha lavra:
A "máquina do mundo"
(Ode camoneana)
Da máquina do mundo na visão
que tem Camões da rota das estrelas
chega até nós por imaginação
a música sem som que provém delas.
Supostamente é uma sinfonia
aos ouvidos humanos interdita,
um género de cósmica harmonia
que mesmo não se ouvindo se acredita.
Nos seus coreográficos arranjos
só Deus a escuta mais os seus arcanjos
na vastidão dos céus intemporais.
Razão tinha Camões ao comparar
o mundo a uma máquina a vogar
nos imensos espaços siderais!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Um despropósito:
Gosto muito da poesia do Poeta João de Castro Nunes (que a faz como já quase não se pratica) e gosto também muito da selecção poética que o Amante de poesia João Boaventura nos proporciona.
Por isso dou comigo a desejar em voz alta: que nenhum deles desista por muitos e muitos anos da respectiva benemerência...
A ambos, bem como a este tão agradável e útil sítio, muito obrigado.
José Batista
Meu caro e muito estimado Dr. José Batista da Ascenção:
Respondendo ao seu apelo,
se assim me posso exprimir,
não deixarei de inserir
no blogue os meus poemas
sobre os mais diversos temas
sem receio de atropelo
no tocante a outras maneiras,
igualmente lisonjeiras,
de alardear simpatia
por tudo o que é Poesia!
JCN
Poéticas saudaçõe de muito apreço e gratidão. JCN
Querido Poeta:
Os motivos de apreço e gratidão são meus. E não, não é por me ter dedicado poemas, que, como já antes escrevi e repeti, não mereço de modo nenhum.
E continue, continue sempre a fazer bem (Poesia) sem olhar a quem.
Com a maior estima. José Batista da Ascenção
Agradeço a todos a atenção que me dedicam.
Mas mais agradeço ainda aos poetas e cultores que a propósito, ou despropósito, abrem carreiros até às suas fontes para que a poesia flua e conflua em estuários vivos de afectos e verdades.
Há muitas fozes e enseadas à espera, ávidas de essências novas, remadas verso a verso, bolinadas para horizontes indescobertos.
Obrigado.
Toda a minha poesia,
mais do que da inteligência,
brota da minha apetência
pela expressão da harmonia!
JCN
Por vezes tenho a impressão
de que pela Poesia
se vai mais longe na via
que leva à mundivisão!
JCN
Caro Doutor António Piedade:
Com os meus propositados despropósitos, nem me referi ao seu (novo) livro. Mas estou curioso e hei-de lê-lo (estudá-lo) logo que possa. Que é a melhor homenagem que posso fazer ao autor. E, pelas opiniões já expressas, vou ainda ficar mais enriquecido e enlevado do que quando li a "Iris Científica", que emprestei a alguns dos meus alunos.
Peço pois desculpa pela minha deselegância. E deixo um obrigado muito sincero.
José Batista da Ascenção
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