segunda-feira, 9 de maio de 2011

PASSEIO ETÍLICO


Crónica semanal publicada no "Diário de Coimbra".

Sobre a mesa do bar cristalizavam 45 garrafas de cerveja a perfilar a evolução do cronómetro em direcção à festa da noite. Cerca de 15 litros de cerveja (contendo quase um litro de álcool etílico puro) transfegavam entre tremoços os sistemas cardiovasculares e renais de três folgazões.

Enquanto diluíam a espera, reviviam heróicas epopeias passadas em outras ilhas etílicas, viagens imóveis por todo o universo a desafiar as leis da física. Num apelo à matéria quântica mal entendida, atentavam passar de um estado sóbrio a um outro dito ébrio, sem esforço, sem qualquer barreira de activação por ultrapassar, simplesmente através de um efeito de túnel sem dimensões.

Contrastando com a volatilidade etílica, a força da gravidade mantinha os folgazões sentados, precavendo-os de uma previsível queda deambulante pela conservação do momento. Nunca a certeza fora tanta de que a menor distância entre dois pontos é, claro está, uma linha curva (no espaço euclidiano)!

De quando em quando, a fisiologia das interacções biomoleculares, choques nanométricos entre moléculas feitas de átomos de hidrogénio, carbono, oxigénio, nitrogénio, enxofre, fósforo, alguns sais e vestígios de metais, obrigava a expulsar algum do líquido ingerido, feito urina. Mas o álcool etílico, ou etanol, molécula feita de dois carbonos, seis hidrogénios e um átomo de oxigénio (formula estrutural CH3CH2OH), resiste em abandonar o corpo, rouba o lugar à água e permanece a agitar as membranas celulares, a alterar a viscosidade dos líquidos corporais, como o do ouvido interno que é garante da percepção de verticalidade (a ressaca fará disso eco em tontura, despojo de um ambiente bioquímico agudamente modificado).

Intrometido entre a funcionalidade membranar, o etanol, qual pedra na engrenagem, altera relações cooperativas entre fosfolípidos e inúmeras proteínas funcionais a nível da membrana celular. Há assim mensagens que não passam, impulsos nervosos que se não sucedem. Com limiares alterados, as integrações neuronais resultam em soluções sem sentido, crescentemente incompatíveis com a harmonia dos gestos e das palavras. Surgem combinações novas num fogo de sinapses fátuas, genialidades insuspeitas numa consciência etílica sem memória.



A cerveja é um dos primeiros inventos da biotecnologia humana. Isto é, da capacidade em utilizar seres vivos para executar determinada tarefa com vista a um objectivo bem determinado. Os seres vivos em causa na cerveja ocidental são dois, um vegetal e um fungo: a cevada (Hordeum vulgare) e as leveduras do género Saccharomyces.

Bem domesticados, a cevada há cerca de 10 mil anos em povos neolíticos do crescente fértil, a levedura há cerca de oito mil anos entre povos elamitas, sumérios e babilónicos, a conjugação dos dois seres vivos permitiu aos primeiros usuários da biotecnologia obter um suco de composição complexa, no qual parte da energia solar fixada em açúcar pela gramínea (através da fotossíntese) é transformada pela levedura em etanol, através de um processo designado por fermentação alcoólica.

Parafraseando Lavoisier (que terá bebido cerveja), pai da química moderna, “nada se perde, tudo se transforma”, e muita história fica.

2 comentários:

Cláudia disse...

De todo não aprecio a cerveja, ao muito admiro como ser possível uma das bebidas que mais consumidas no mundo, ter sabor desagradável. Enfim aos detalhes de processo no organismo especialmente elaborado por Dr. António Piedade, pela condição de passeio não imaginado este percurso, e que fascinante!

A título de curiosidade histórica já foi produzida aqui em Tijucas, Brasil uma das melhores cervejas, e que outrora ganhara a certificação e medalha de prata na Exposição Ibero-americana, realizada em Sevilha, Espanha em 1929/30, entregue ao Coronel João Bayer, pela excelência das bebidas que produzia “Cerveja Pretinha e Guaraná da Amazônia”, que foram fabricados até a década de 1950 pela família.

Coincidentemente é de minha propriedade, este local cheio de história.

José Batista da Ascenção disse...

Suponho que as variedades de cerveja que existem nos mercados são todas bebida fermentada por estirpes de levedura pertencentes à espécie "Saccharomyces cerevisiae", a mesma espécie que leveda o pão - o etanol neste caso evapora-se, aquando da cozedura, razão pela qual comer pão não embebeda, excepção feita às "sopas de cavalo cansado" que, felizmente, já ninguém refere - e também fermenta o mosto (sumo de uva) para transformá-lo em vinho, qualquer tipo de vinho.
Tão útil, desde tempos tão antigos, esta levedura, que um investigador que conheci lhe chamava "andadura" "Saccharomyces cerevisiae". É que as suas células, são também um bom material biológico para as mais diversas investigações de natureza científica.
Em Portugal, o Professor N. Van Uden foi uma espécie de "papa" das leveduras...

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