domingo, 22 de maio de 2011

Para ser livre é preciso saber

Texto adequado aos tempos que correm, de conturbações políticas várias e de eleições com as suas peculiaridades.

Quem o escreveu foi Fernando Savater e é parte do Capítulo 6 do seu livro A coragem de escolher (Editora Dom Quixote), páginas 83-85.

"O sentido mais clássico da palavra liberdade provém do campo político, não da ética nem da filosofia ou psicologia de acção. E também é precisamente em questões políticas que pensa hoje a maioria quando ouve falar em liberdade ou liberdades. De facto, poderíamos dizer que a política trata essencialmente de como organizar e distribuir a liberdade na sociedade humana (…). Em tal contexto, a liberdade não se refere ao que queremos fazer mas ao que podemos fazer; não se trata dos motivos nemd as obnubilações do arbítrio, mas das relações de força entre semelhantes, isto é de hierarquia, subjugação. Igualdade e emancipação (…).

Naquela Grécia que nos inspira, era livre quem não tinha de obedecer a um amo, nem era obrigado a trabalhar para outro ou a ficar fixado num lugar à disposição de outrem: o que podia ir e vir, fazer ou não fazer: «De acordo com a etimologia grega – diz Hannah Arendt –, isto é, de acordo com a auto-interpretação grega, a raiz da palavra liberdade, eleutheria, é eleithein hopos ero, ir onde desejo, e não há dúvida de que a liberdade básica era entendida como liberdade de movimento. Uma pessoa era livre quando podia mover-se como desejava; o critério era o eu posso e não o que quero» (The life of the mind).

Mas a questão básica assentava na contraposição entre aquele que podia e aquele que não podia, o escravo e o livre, o que sofria a imposição e o que desfrutava do privilégio. Para que alguém fosse livre, outros tinham de ser escravos, quer se tratasse da relação entre cidades ou das normas de cidadania dentro da polis. Este condicionamento primogénito perpetua-se no conceito de liberdade política ao longo dos séculos (…).

O devir do desenvolvimento político – como transformação ideológica e como revolução na estrutura do poder – consistiu historicamente na luta por uma ampliação do número de sujeitos titulares da liberdade: abolição da escravatura, supressão da divisão genealógica entre nascidos para mandar e nascidos para obedecer, direito de todos a poder escolher ou revogar os governantes, igualdade perante a lei sem discriminação de sexo ou religião, igual direito à liberdade de expressão das ideias ou à formação de agrupamentos políticos e laborais, etc.

No entanto, também hoje continuam a existir as discriminações entre os autenticamente livres e aqueles que permanecem objectivamente subjugados em questões essenciais. Não goza da mesma liberdade o cidadão da potência dominante que o nascido num país do Terceiro Mundo ou o imigrante que chega, privado de bens e garantias, a uma nação desenvolvida.

Não são igualmente livres aqueles que controlam o preço das matérias-primas nos mercados internacionais e aqueles que devem resignar-se a ver irremediavelmente desvalorizadas as suas únicas fontes de riqueza.

Os medievais falaram com razão em dois tipos de liberdade: a libertas a coacione, que nos emancipa igualitariamente na gestão da coisa pública e a libertas a miséria, que salva das imposições infligidas pela falta de recursos no mundo do «tanto tens, tanto vales».

Em demasiadas ocasiões é a miséria (económica ou cultural) que condiciona inevitavelmente a submissão de muitos a tiranias «democráticas» impostas pelos beati possidentes. Hoje em dia, provavelmente, as maiores diferenças entre os livres de facto e os livre só de nome são estabelecidos pelo acesso à informação: para ser livre é preciso «saber» mais do que aqueles que não o são e controlar os meios de «comunicação» para difundir tanto o conhecimento como as falsificações interesseiras que geralmente ocupam o seu lugar…

Segundo o desolador mas não infundado juízo de Bauman, «a efectividade da liberdade exige que algumas pessoas não sejam livres. Ser livre significa ter a permissão e a capacidade de manter outras pessoas como não livres». Assim aconteceu nos regimes coloniais do século XX (alguns destes últimos perduram na nossa época), mas também sob o sistema multinacional do capitalismo globalizado, no qual a liberdade de escolha vital se vê compulsivamente substituída por liberdade de escolha na oferta do consumo.

Sem dúvida, as lutas políticas do século XXI – e não sabemos ainda de quantos mais! – devem consistir em ampliar a liberdade efectiva àqueles que ainda hoje só a desfrutam de modo subalterno. No entanto a pergunta de fundo, pelo menos para o teórico da política, não é já se este empenho emancipador triunfará plenamente algum dia, mas esta outra: podemos continuar a falar de «liberdade» na sociedade finalmente limpa de todas as formas de «escravidão»?"

3 comentários:

Anónimo disse...

O tipo de liberdade
de que o homem faz questão
depende da qualidade
do seu grau de educação!

JCN

Anónimo disse...

Liberdade sem cultura
quase sempre degenera
em falta de compostura
ou destempero de fera!

JCN

Francisco Domingues disse...

Lberdade! Palavra mágica! O articulista não refere, mas realmente a liberdade só existe se eu deixar o outro ser livre ou tão livre como eu: "A minha liberdade acaba onde a do outro começa"! Há muitas formas de escravidão nas sociedades actuais. Para mim, o principal agente de tal escravatua é o desregulado sistema económico-financeiro que nos escraviza a todos, distribuindo a liberdade do ter de forma totalmente desigual e injusta, havendo 95% da população mundial a possuir 5% da riqueza produzida e 5% a possuírem os outros 95%. Um escândalo que só este sistema liberal capitalista sem regras possibilita. Todos os grandes pensadores apontaram para uma mais equitativa distribuição da riqueza, desde Jesus Cristo com a sua fraternidade universal, a Gandhi, aos prémios Nobel de economia! Mas quem os ouve? Quem conseguirá destronar este sistema que nos aperta num colete de mil varas sem qualquer hipótese de sair dele? Só uma revolução a nível global, revolução que nem os prémios Nobel têm a coragem de propor. E essa revolução terá forçosamente de começar nas universidades de economia. No meu blog "Ideias-Novas" apresento propostas (http://ummundolideradopormulheres.blogspot.com)

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