quinta-feira, 5 de maio de 2011

Ângelo - Simplificar e Seduzir




Mais um post de Eugénio Lisboa in memorian de um Amigo (o pintor Ângelo de Sousa, autor do quadro reproduzido em cima):

Soube, na própria noite em que faleceu – dia 20 de Março de 2011, terça feira – que o Ângelo já não estava connosco. Na realidade, deixara de estar connosco já há uns bons quatro meses. Deixara e não deixara. Como, agora, deixa e não deixa de estar connosco.


Num livro publicado em 1985 – A Matéria Intensa – dediquei ao Ângelo um poema intitulado “A Música das Cores”, que peço licença para aqui reproduzir:

"A pintura às vezes, sabe ser
uma forma de música: sugere,
no fluxo imparável do acontecer,
que a vida pode não acabar. Fere
o centro de nós mesmos. Amacia
e dissolve tensões que a vida impura,
em tantos momentos, cega, nos cria.
Como a música, é boa a pintura".


Já aqui, neste poema despretensioso que ofereci, com amizade a admiração, ao Ângelo (um poeta obscuro homenageando um grande pintor, eis uma medalha de sensacionalismo picante!), se insinuava, com algum despudor saudável, que “a vida pode não acabar”. A dos grandes artistas prolonga-se, de facto, bem para além do seu desaparecimento físico. Por isso, concluía que “como a música, é boa a pintura”. É boa para nos “salvar” de uma morte definitiva. É boa porque dá, a quem a contempla e estuda, momentos de grande felicidade – felicidade que é bem a verdadeira e única imortalidade a que pode aspirar um mortal. A morte de um grande artista não o mata, só na medida em que ele se revele, para além da vida, susceptível de desassossegar, no bom sentido, a vida dos outros. Quando falamos, hoje de Stendhal ou de Mozart, fazemo-lo como se eles estivessem vivos, sedutores próximos e sempre dispostos à conversa. Agora que o Ângelo nos deixou, encontramo-lo, numa curva do acaso, por exemplo, na bela capa das Chroniques Algériennes, do Camus, na edição da folio/Essais, Galllimard. O esplendor simplificado do Ângelo rima portentosamente com a miséria ensoalhada de uma Argélia ardida que o grande escritor francês trouxe até nós, palpitante, autêntica e não demagógica. (Lembro-me de que, numa visita que me fez, em Lourenço Marques, nos anos setenta, o Ângelo me levou da biblioteca, para ler, L’Homme Révolté, do mesmo Camus: esse livro e não outro, faço questão de o sublinhar).


Em textos que escrevi sobre o Ângelo, falei longamente dessa arte esbelta e enganadoramente “simples”: “Há na simplicidade do traço e da cor dos «textos» de Ângelo”, escrevi num desses textos, “uma longa conquista e uma complexidade que o pudor vela. Há no seu desvelo e na sua obstinada busca uma suspeita, à partida, de que a luz se nos mostra melhor quando se afasta, com impaciência, a tralha que tenta vedar-lhe o percurso. O depuramento da sua arte daria matéria para larga e estimulante conversa. Da qual conviria não esconder a paradoxal e íntima ligação que tudo isso possa ter com a fenomenal cultura que o Ângelo possuía: literatura, música, fotografia, cinema, filosofia, política, nada lhe era estranho e tudo o alimentava. Mas nada se metia no caminho da sua pessoalíssima e atraente pesquisa: uma pesquisa que apontava para a sugestão de que a austeridade e a simplicidade se casavam bem com a sedução."


Sete anos mais novo do que eu, e tendo eu saído de Lourenço Marques aos dezassete anos – ele, então, com dez – as nossas relações desse período, dada a diferença de idades, eram, sobretudo, as que tinham a ver com as respectivas famílias: a mãe do Ângelo era amiga de colégio (no Porto) da minha mãe e o pai do Ângelo era colega do meu pai, nos CTT, em Lourenço Marques. Em 1955, quando, já formado em engenharia, regressei, em Agosto, a Moçambique, estava o Ângelo de partida para o Porto, onde ia cursar Belas Artes. Tive ainda ocasião de lhe ver uns desenhos, que muito me impressionaram, já então, pela eficácia da sua simplicidade. Fez-me nessa altura, um pequeno retrato de Thomas Mann.


Só voltei a vê-lo, em 1963, no Porto ( onde fui deixar a minha filha mais velha, com três anos, aos cuidados da mãe do Ângelo, durante uma ausência, com minha mulher, por Franças e Araganças). Mostrou-me, nessa altura, a sua tese de doutoramento – uma de muitas “árvores”, tema que viria, teimosamente, a trabalhar (possuo uma, belíssima, com fundo azul, que me enviou do Porto para Lourenço Marques, à boleia do saudoso António Quadros). Depois, fomo-nos vendo, em Londres (1968), em Lourenço Marques (numa visita que ali fez, nos anos setenta), em Lisboa, no Porto, quando calhava eu ir ao Porto ou ele vir a Lisboa. De uma generosidade incrível, o Ângelo ofereceu-me trabalhos seus, sem conta: pintura, gravura, desenho, escultura... Era a maneira que achava - ele, que era discreto e quase abrupto – de dizer: “Estou aqui e continuo teu amigo.” Claro que eu percebia. Pouco lhe podia dar em troca: escrevi, sobre ele, dois textos, publicados no JL e depois recolhidos em livros. Telefonávamo-nos de quando em quando. O último telefonema que me fez, nos finais do ano passado, não augurava nada de bom. Agora partiu, como vão partindo tantos dos protagonistas de uma aventura que começou, há muitos, muitos anos, numa Lourenço Marques que já não existe: o Rui Knopli, o Fernando Gil, José Craveirinha, o Fonseca Amaral, o Rui Nogar, o Gouvêa Lemos o António Quadros (ou , se preferirem, o João Pedro Grabato Dias), o Adrião Rodrigues ... Já há poucos na lista de espera.


Eugénio Lisboa


4 comentários:

Anónimo disse...

"... e aqueles que, por obras valerosas / se vão da lei da morte libertando..."

Também o amor dos que ficam consegue, por breves momentos que seja, transpor a lei da morte: a alquimia dos poetas, a alquimia dos sábios, a alquimia do amor, uma espécie de génese do milagre. Ter amigos é uma das dávidas mais preciosas da existência!
HR

Cláudia disse...

Valha-nos Deus, que amizades deste quilate arroube por práticas dedicadas à exemplo do Poeta Eugénio Lisboa e Artista Ângelo.

E, tal pelo ensejo, não lembro de ter lido homenagem tão Nobre, Sr. HR!

Anónimo disse...

É pena... os versos! JCN

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Simplesmente, nem em pensamento.

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