Em texto anterior referi-me a uma iniciativa recente da Comissão Central da Queima das Fitas de Coimbra: promover um cortejo com crianças dos jardins-de-infância da região, com se fossem estudantes do ensino superior.
Ouvi duas ou três vozes que, mostrando estranheza, questionavam a legitimidade e a pertinência pedagógica da iniciativa. De resto, tanto quanto me pareceu, educadores, familiares, estudantes “a sério” e pessoas não directamente envolvidas, acharam-na normal e, até, ouvi elogios, ainda que os motivos invocados nem sempre fossem coincidentes. Deles dei conta no texto anterior.
Há, em tais motivos, o alheamento de alguma coisa que me parece essencial e que neste texto gostava de destacar.
Trata-se do retrocesso que, no meu entender, está a acontecer em relação a uma conquista fundamental do século XX: o direito de a criança ser criança, de ser protegida como tal e de, tendo em conta essa condição, ser devidamente educada e ensinada.
Nesse “Século da Criança”, como também ficou conhecido, e nos finais do que o antecedeu, reconheceu-se que os mais pequenos não podiam ser vistos como adultos em miniatura, mas sim como seres delicados que solicitavam, em primeiro lugar, cuidados especiais. Reconheceu-se, em segundo lugar, que, dadas as suas especificidades cognitivas e morais, deveriam ser conduzidos para a Razão e para o Bem, e que, em vez de trabalhar, deveriam estar na escola.
É certo que estes princípios, que constam da Carta de Direitos da Criança apresentada em Genebra, em 1924, e que viriam a ser proclamados pela Assembleia Geral da ONU, em 1959, nem sempre tiveram uma correspondência directa na realidade: muitas crianças continuaram a ser abandonadas e maltratadas, a ficar privadas de educação escolar ou, então, a não ser devidamente ensinadas, a trabalhar nas mais diversas áreas…
Quando ainda não tínhamos ganhado a batalha de protecção da infância, eis que nas sociedades ocidentais, que conseguiram um bem-estar material, embora pouco acompanhado do necessário discernimento crítico, começavam a emergir apelos vários para os adultos encararem de um novo modo esse período de vida: apelos para exporem as suas crianças (em revistas, em concursos de televisão, onde se incluem os de beleza, em desfiles de moda, em desportos…), para as deixarem socializar (ir a discotecas para a sua idade, ir com os seus amiguinhos a restaurantes que disponibilizam atendimento aos mais pequenos, festejar o dia dos namorados…), para as vestirem em função da marca A ou B (o que pouco tem a ver com a adequação ou o conforto), para lhes propiciarem equipamentos sofisticados (telemóvel, televisão, computador no seu quarto e, desde muito cedo, para se habituarem a lidar com as tecnologias…).
Tudo isto parece razoável, sedutor e inócuo, porque surge sempre aliado ao discurso do respeito que devemos ter pela criança e pela sua vontade; vontade que, uma vez satisfeita, a deixa feliz. Sendo a infância o lugar por excelência da felicidade estar-se-á, por certo, a proceder bem. Uma acção em sentido contrário só poderia deixar-lhe marcas para a vida…
Não, nenhum mal poderá advir de deixar a criança participar em rituais típicos dos adultos mas devidamente adaptados à infância, de a vestir como gente grande mas com pormenores para a sua idade, de lhes oferecer esses tais equipamentos mas com cores claras e decorados com os bonecos animados seus preferidos, onde não faltam jogos educativos que, ao mesmo tempo, divertem.
Enquanto esta mentalidade social alastra, presumo eu, muito influenciada por sofisticadas estratégias de marketing, a escola recua na sua tarefa instrutiva de proporcionar conhecimentos e de desenvolver a inteligência.
Reunidas, então, pois, as condições ideais para se introduzir na escola tudo o que a sociedade e/ou poderosos interesses económicos considerarem ser vantajoso proporcionar às crianças. E a escola aceita e traduz em acção.
Neste ponto não posso deixar de me lembrar de John Dewey, pedagogo, que, como já escrevi neste blogue, tem sido tantas vezes mal interpretado em virtude de leituras apressadas e distorcidas da sua obra, quando distinguiu educação de deseducação.
Disse ele que a educação traduz-se em actividades pedagógicas substanciais, que beneficiam os alunos; a deseducação traduz-se em actividades pedagógicas sem substância que em nada beneficiam os alunos.
Assim, deixo uma pergunta no ar: na lógica deste autor, o cortejo a que acima aludi, como actividade escolar, terá tido um carácter educativo ou deseducativo?
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10 comentários:
A escola está cada vez mais desvalorizada enquanto factor de educação.
A escola serve cada vez mais para tomar conta das crianças e para as deixar fazer o que elas querem. Parece-me que isto é o contrário de educação.
O mais extraordinário é que são as instituições do ensino superior, através de supostos especialistas da educação, do modo como formam professores e da maneira que trabalham com os seus alunos que fomentam estes comportamentos.
Vejamos: o país está numa situação difícil, precisamos de optimizar os nossos recursos, especialmente as nossas inteligências, e o que aconteceu nas nossas universidades de maior prestígio nas últimas semanas: grandes cortejos e festejos académicos em Coimbra, Porto e Braga, com grande número de alunos a fazerem sequências de noitadas integrais sem irem à cama, ou indo para os hospitais em coma alcoólico... Com os pais muito ufanos dos seus "doutores"!
E vamos em tal caminho que, na primeira semana de Maio, numa (boa) escola do ensino secundário do (meu) país, um grupo de alunos de uma (boa) turma do ensino secundário, naquela coisa de "área de projecto" desenvolveu um trabalho sobre o qual afixou em diversos locais da escola um cartaz de 40 x 30 cm, anunciando o seguinte:
"Para o ano poderás ser praxado e não sabes o que te espera?
Vem assistir à nossa palestra com o Papa da Universidade e com a Prof. (...) do Instituto (...) da Universidade (...) que estão dispostos a esclarecer as tuas dúvidas.
Junta-te a nós.
Sexta-feira, dia 6 de Maio, às 15h no auditório da (...)"
Temos portanto, alunos do ensino secundário ocupados a estudar a... praxe!
E, aparentemente, ninguém se importa com estas coisas.
Ora, se em Coimbra se invoca a tradição, percebe-se, sempre são séculos e séculos... Mas, em universidades com cerca de quarenta anos, que sentido faz a necessidade de arremedar Coimbra?
E por isso nós temos um Portugal pequenito, um país de pequenitos, que faz queimas de pequenitos. Queimando(-nos) mesmo. Desde pequenitos.
Estranho este comentário agora. As crinaças não estão sempre a ser arrastadas por adultos para questões que estão acima da sua compreensão? Ainda agora foram usadas pelas escolas do ensino privado para manifestações políticas em que efectivamente são "carne para manifestação". Não a vi comentar este estranho fenómeno.
Claro que a AAC poderia ter tomado uma iniciativa mais educativa em relação às crinaças, mas pelo menos não lhes deu cerveja a beber :-)
Tem razão, caro Anónimo das 20:02. As manifestações que refere, bem como alguns comentários de pais que registei nessa altura, mereceriam um texto neste blogue. Mas foram exactamente essas manifestações e outros acontecimentos recentes que me levaram a escrever o presente texto que, como se percebe, não se refere apenas ao acontecimento em causa, mas a um fenómeno mais lado de que tal acontecimento é exemplo.
Cordialmente,
Helena Damião
A vocação para o disparate é de facto enorme e os pais, nesta e em muitas outras situações, algumas das quais se apontam aqui, não percebem que estão a dar às suas crianças, não aquilo que as tornaria felizes e concorreria para a sua educação e crescimento harmonioso, mas aquilo que mentalidades mal "iluminadas" pelo marketing e pela pieguice televisiva julga ser o melhor para elas. E muitos professores, sabe-se lá por que razões, vão atrás - e pelos vistos é pelo país fora, como diz o Dr. Batista da Ascensão - e a moda pega. Isto é ridículo e bacoco, seja em Coimbra (não há tradição nenhuma disto) seja noutro sítio qualquer.
João Boavida
Como diz um grande amigo meu que é responsável por uma loja de uma cadeia de supermercados: "O que queres? Sabes muito bem que os portugueses dão tudo aos filhos desde que estes não os chateiem! Conhecendo nós isto, não deveríamos responder a esta necessidade do mercado?"! Disse-me isto a propósito dos mostruários colocados à entrada de cada uma das caixas de pagamento...
Mas também já me disse algo sobre as minhas críticas em relação às aberturas de anos lectivos neste tipo de lojas. Afirmei que os folhetos enviados para casa das pessoas confundiam escola, sala de aula, estudo e disciplina com lazer, preguiça e indisciplina. E respondeu-me de pronto afirmando qualquer coisa como: "Nós vendemos aquilo que o mercado"!
Conto estas minhas desventuras com o objectivo de reforçar a óbvia perda de valores da nossa sociedade.
Caro leitor Fartinho da Silva
Será que entendi bem: há escolas que fazem a abertura dos anos lectivos em grandes superfícies comerciais? Se sim, poderia elucidar-nos sobre o assunto?
Muito obrigada,
Helena Damião
“Terá tido um caráter educativo ou deseducativo?”
Sou suspeita. Depois de ver programas de televisão em que as crianças aparecem como cãezinhos amestrados a imitar os adultos, tornei-me preconceituosa para dizer, sem mais, que terá tido um caráter deseducativo.
“As cidades crescem de maneira anárquica e preversa, a criança não tem nela um lugar bem definido. Procura-se satisfazer os pais, que são uma maioria sugestiva, mas as crianças ficam um pouco reféns do Estado-Nação, que as guarda para um dia trocar por uma produção que consumirá vertiginosamente as suas energias, dando-lhes a ilusão de que o seu processo físico, mental e moral foi cumprido.” (Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito).
Pois há sem dúvida uma “mentalidade social (de massas) influenciada por sofisticadas estratégias de Marketing”.
É um problema vasto em que um anónimo, com a sua intervenção, aqui mostrou com o exemplo de crianças “carne para manifestação”.
A conquista do séc. XX sobre o direito a ser criança, aqui tão bem referida, não é entendida pelas massas que fazem atrocidades com discursos de que está o inferno cheio. Boas intenções não chegam, partindo do princípio de que as há.
As crianças adoram coreografias organizadas. Adoram rodinhas, jogos de dança e canto infantis em que participam cantando e assumindo posições coreográficas no grupo, com regras bem definidas. -Façam marchas próprias para crianças, não as metam a fazer coisas de adultos que cognitivamente não entendem, é uma suja forma de manipulação. Também tenho memória recente de um exemplo numa escola, em que as crianças apresentaram uma canção na sala de professores, manipuladas precisamente como “carne para manifestação”. ..
Mas, contra as praxes universitárias, não sou. Encontro mais motivos para as haver do que para as não haver. Talvez alguma coisa deva ser feita junto das associações de estudantes universitários para evitar violência a mais. Mas vejo as praxes como enorme potencial. Como o Carnaval. Um paganismo confinado a uma determinada época, um festejo bem definido no espaço e no tempo, com um valor simbólico em que as forças obscuras têm expressão. Falo como um ritual de iniciação e catárse importantes para uma civilizaçao saudável, que tem, antes de mais, de ser feliz.
Termino com Agustina, apenas porque entendo que ela diz o que eu quero dizer -bem como eu nunca saberia: “Uma pessoa infeliz não pode obter bons resultados com crianças. A infelicidade é um desequilíbrio na balança da sabedoria; -(e para os que dizem que Agustina é pessimista…) – a criança percebe isso rapidamente e reage de maneira convenvicial, isto é, tomando a infelicidade do adulto como uma prova de inabilidade e de ignorância.”
E também acho que os adolescentes têm de ir a festas, fazer algumas asneiras tormentosas que os pais terão de gerir com inteligência, porque adolescência sem desafio não é adolescência, e garanto-vos, a última coisa que queremos perder é que as crianças deixem de ser crianças, que os adolescentes deixem de ser adolescentes… e por aí fora. Isso seria a extinção da nossa espécie, tal como a conhecemos.
Veja este fantástico vídeo na Central Station Antwerp, intitulado "Sound of music":
http://www.youtube.com/watch?v=r_JKoepanqE
HR
Cara Helena Damião,
"Será que entendi bem: há escolas que fazem a abertura dos anos lectivos em grandes superfícies comerciais?"
Reparei agora que o meu texto não tem todas as palavras. Julgo que algumas palavras que deveria ter escrito ficaram apenas no cérebro! Por vezes acontece-me isto :)
Eu estava a referir-me às campanhas promocionais das grandes superfícies comerciais um pouco antes da abertura do ano lectivo. Não sei se alguma vez leu os folhetos que nos chegam a casa do Continente, Pingo Doce, Staples, etc., são documentos que representam tudo aquilo que não se deve fazer. Misturam bonés com cadernos, leitores de ficheiros MP3 com manuais escolares, CD's de jogos com esferográficas, skates com calculadoras, etc.. Chegam mesmo a apresentar miúdos vestidos como se fossem para a praia e outros como se fossem para um encontro de gangs.
Era a isto que me estava a referir.
Caro leitor Fartinho da Silva
Agradeço o seu esclarecimento. Apesar de a interpretação que fiz do que escreveu se traduzir numa ideia absurda, não seria mais absurda do que algumas actividades de carácter escolar de que tenho tomado conhecimento que envolvem publicidade, produtos afectos a certas marcas e espaços comerciais.
Helena Damião
E o que pensar da prática de levar uma turma da infantil para uma manhã nos estúdios da RTP? Eu não gostaria de ter um filho numa escola que olha e trata assim as crianças.
Ana Patrício
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