domingo, 1 de maio de 2011

As crianças não têm noção do que se está a passar aqui hoje

Contaram-me e depois li nos jornais: a Comissão Central da Queima das Fitas 2011 fez um apelo para que “os mais novos vestissem o traje académico de Coimbra”. Os mais novos eram crianças entre os três e os cinco anos que frequentam jardins-de-infância da região.

Trinta escolas responderam ao apelo e muitos encarregados de educação consentiram, talvez até com entusiasmo. Pelas contas a que tive acesso 1.043 crianças “transformaram-se em «doutores da cidade»” e integraram um longo do Primeiro Cortejo dos Pequenitos que, no dia 29 de Abril, desfilou durante horas pelas ruas, onde os outros «doutores», os verdadeiros, desfilarão daqui a poucos dias.

Muita gente se envolveu e foi ver: pais e mães, avós e avôs, educadores, estudantes da universidade, jornalistas e todos os que não faltam a uma animação deste género. A chuva desviou-se para outras bandas e só apareceu no fim do evento.

Tudo numa grande animação: “cartolas de todas as cores, bengalas, capas e batinas, foram os elementos que deram cor às crianças” – leio num jornal. Noutro leio “Os «finalistas» rodavam a bengala na cartola, os mais pequeninos abanavam a pasta com as fitas e todos juntos mostraram aos crescidos que também sabem cantar o F-R-A.”

No final foi “servido um lanche e apresentado um programa de animação, com palhaços, magia, música e teatro”. Por quem terá sido patrocinado? Não consegui apurar…

Detenho-me em depoimentos de "estudantes a sério" que se voluntariaram para apoiar o desfile (ao que parece, foram 150):
Um deles: “Estas iniciativas criam uma maior relação entre a própria cidade e os estudantes (...) A Queima-das-Fitas não é só ir ao parque ouvir as bandas”.
Outro: “As crianças são a vida da cidade. É importante mostrar um pouco a criatividade das crianças ao serem estudantes em miniatura”.
E outro: “As crianças não têm noção do que se está a passar aqui hoje, mas um dia vão adorar recordar este momento”.
E, ainda, outro: “Além de ter animado as crianças, «dinamizou a Baixa» da cidade”.

Detenho-me, a seguir, na intenção de um certo jardim-de-infância mostrar que os pequeninos podem dar o exemplo, uma “lição”, aos mais crescidos, “que tantas vezes cometem excessos”. Para tanto, criou uma quadra: «sem álcool sim/ com água e sumo/ não fazemos chinfrim/ e a vida tem outro rumo».

Cândido, tudo isto parece absolutamente cândido. E justificável, tantas são as boas intenções subjacentes... E consensual, pois nem uma ténue interrogação pude perceber nos jornais. Porque será, então, que me sinto estarrecida?

Continua aqui.

Notas:
- Propositadamente, não ilustro este texto com fotografias. Mais uma vez imagens de crianças são divulgadas, entendo eu, de modo abusivo.
- Para perceber melhor a dimensão de uma "tradição académica" que se iniciou neste ano e que veio para ficar, poderá o leitor clicar aqui, aqui, aqui ou aqui.

6 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Nós, os portugueses adultos (?), levamos a vida a fingir. Inventamos praxes e levamo-las (levamo-nos) a sério (!?).
Mas porque havemos de viciar nisso as (tenras) criancinhas, senhores?!
A não ser que seja para alimentar e manter aquela tão nossa característica...
E deve haver alguma razão válida no facto, pois que, nem morrendo nem escapando, existimos como nação caminha para 900 anos!
É como se viver no fio da navalha nos conferisse durabilidade...
Será?
Nada sei. Mas vivo estarrecido.

Anónimo disse...

As tradições académicas estão a morrer, cada vez menos gente gasta dinheiro, ou o tem, para trajar, agora com Bolonha e percursos académicos cruzados, pode-se ficar numa universidade apenas os 3 primeiros anos ou os dois últimos, até à conclusão do mestrado.
Há toda uma tradição em que antigamente com cursos de 4, 5 ou 6 havia regras e graus, caloiro, veterano, etc.. , essas regras cada vez fazem menos sentido, as praxes tendem a ser cada vez mais uma vergonha nacional onde já só há humilhação e não integração.

Esta iniciativa, que diga-se de passagem ridícula, é uma forma de manter a tradição ou chamar a atenção para a mesma, mas as coisas evoluem, novos caminhos se encontrarão..

Anónimo disse...

De facto dá a sensação de que estão a usar as crianças. É dificil de explicar mas parece intuitivamente errado. Será a motivação a mesma que leva à criação de episódios de novelas em versão "pequeninos"? Para o entretenimento dos grandes?
Hoje estreia mais um reality show importado. Esperemos que o Toddlers in Tiaras não seja o próximo.
http://www.foxnews.com/entertainment/2010/06/03/tlcs-toddlers-tiaras-returns-critics-say-parents-exploitive/

Helena disse...

Helena

Já vi, em Viseu, cortejos semelhantes, no final do ano lectivo, tanto do pré-escolar como do 4º ano.

Pareceu-me despropositado, mas os familiares e crianças acharam engraçado.

simon disse...

Não destoa mais que os anjinhos nas procissões, bem ao contrário, mas continua o ridículo.

Cláudia disse...

Ora! É fácil resolver a questão. Façam uma avaliação ano à ano, como plataforma de pesquisa com as crianças que participam dos "Doutores" e comparem com aqueles que nunca tiveram contato com este Modelo ou, estímulo de vida Acadêmica, e terão uma avaliação significativa e prudente.

CONTRA A HEGEMONIA DA "NOVA NARRATIVA" DA "EDUCAÇÃO DO FUTURO", O ELOGIO DA ESCOLA, O ELOGIO DO PROFESSOR

Para compreender – e enfrentar – discursos como o que aqui reproduzimos , da lavra da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Ec...