Philippe Perrenoud é sociólogo de formação e professor da Faculdade de Psicologla e de Ciências da Educação da Universidade de Genève. Apesar de discordar de algumas das suas teorizações relacionadas com as temáticas do currículo e da avalição, reconheço-lhe grande perspicácia e mérito quando se pronuncia sobre aquilo que se designa por "vida da escola".
No excerto que se segue, de um dos seus livros mais conhecidos em Portugal - Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar -, percebem-se algumas das nuances que a relação entre a família, a criança e a escola pode tomar.
"Algumas crianças contam minuciosamente o que vivem na escola, enquanto que outras não (…), mesmo quando se trata de acontecimentos dramáticos ou muito felizes. Por seu lado, os pais solicitam informações aos filhos duma forma desigual. [Assim], o professor não sabe exactamente o que os alunos contam aos pais. Na dúvida, cada aluno é visto como uma testemunha possível de cenas que poderiam ser mal compreendidas (…) ou julgadas contrárias ao programa, ao regulamento, à deontologia ou ao senso-comum.
O fantasma panóptico
Nas turmas, tal como na maior parte dos locais de trabalho, embora se respeitem as regras "gerais", são permitidas pequenas alterações, alguns atrasos, alguns expedientes ligados mais à complexidade da tarefa, do que à falta de seriedade profissional, à falta de tempo, à impossibilidade de prever e de dominar tudo. Por exemplo, um professor, em plena acção na aula, pode não se aperceber que um aluno abandonou a sala no meio de uma actividade. Se for encontrado sob as rodas de um camião, é um escândalo. Noutros casos, procede-se como se nada se tivesse passado! A não ser que outros alunos tenham a malfadada ideia de falar nisso aos pais...
O professor sente-se observado pelas crianças e, através delas, pelos pais. Injustiças, gestos de violência, cóleras desmedidas, tempos mortos, algazarras, momentos de desorganização, incoerências na avaliação não escapam aos alunos perspicazes. Como estar certo que nenhum deles, por malevolência ou por ingenuidade, não contará a cena aos pais? Perspectiva esta tanto mais preocupaste quanto o professor apresenta, face aos seus colegas, uma postura irrepreensível.
A visibilidade, o acesso aos "bastidores" é uma forma de comunicação involuntária entre o professor e os pais. Aqui já não se trata de verdadeiras mensagens, mas do olhar indirecto dos pais sobre a realidade da classe. Nem todos os professores têm o mesmo sentimento de estarem expostos ao olhar dos alunos (…). Neste domínio, tem de se estar atento aos (…) fantasmas que se criam: muitas coisas passam despercebidas ou parecem anódinas, mesmo quando o professor tem a sensação de ter perdido o controlo dos acontecimentos e quando as crianças se apercebem, nem a todas agrada contá-la aos pais.
Mas o professor nunca sabe ao certo de que é que os alunos se deram conta, o que é que compreenderam e o que irão contar. Podemos invocar a vigilância panóptica de que fala Foucault (1975) a respeito das prisões: o dispositivo permite que os guardas observem permanentemente cada um dos detidos sem que nenhum deles se aperceba disso. Ao ignorar se, nesse preciso momento, está ou não a ser observado, o prisioneiro torna-se dependente das suas próprias angústias (…).
O professor encontra-se (…) numa situação análoga: potencialmente tudo o que se passa na aula pode ser levado ao conhecimento dos pais e, por vezes, através deles, à autoridade escolar. Se (…) é, por natureza, ansioso terá constantemente a impressão de estar a trabalhar "no arame" e esfriar-lhe-á o sangue quando, uma vez por outra, perder o domínio da situação. Mas, outros professores não se preocupam nada com estes aspectos.
Segredos de família
(…) uma criança não vive vinte e cinco a trinta horas por semana na escola sem dizer nada sobre a sua vida familiar. Algumas actividades, prestam-se mais a isso do que outras: em todas as discussões que versam sobre (…) a justiça, os acidentes na estrada, o álcool, a televisão, a moda, a saúde, a higiene, a alimentação, a condução automóvel, as relações de parentesco, o dinheiro, muitas crianças servem-se frequentemente de exemplos retirados da sua vivência familiar. Há outros momentos favoráveis a este género de "confidências": as saídas da escola, os passeios, momentos de relativa descontracção (…).
Alguns professores interessam-se muito pouco pela vida familiar dos seus alunos, enquanto outros consideram muito importante saber mais sobre ela a fim de melhor compreenderem as crianças (…). Uns proíbem qualquer conversa que diga respeito a assuntos de ordem privada; outros consideram que não se favorece o desenvolvimento intelectual e o desabrochar duma pessoa, nem mesmo o domínio da língua, se se considerarem como tabus todos os assuntos que abordem a vida quotidiana (…).
As crianças não têm, muitas vezes, consciência de desvendarem segredos ou traírem uma intimidade, mas acontece que dão informações que vão muito para além daquilo que os pais gostariam (…) e ficam siderados no dia em que são informados que o filho contou na aula, por exemplo, que o irmão mais velho se droga ou que o pai vive em casa de uma amante.
Se as crianças traem, por vezes inocentemente, outras vezes conscientemente o que os adultos consideram como "segredos de família", é evidente que falam, ainda com mais naturalidade, sobre o que comem, as doenças deste ou daquele familiar, o que se costuma ver na televisão, os projectos de férias, as cóleras do pai (…). Coisas que os pais (…) nem sonhariam ver divulgadas na sua ausência e, para mais, de uma forma cujo controlo lhes escapa.
As crianças (…) não têm a mesma percepção do que pode desacreditar os pais no espírito dos professores. Os pais ensinam que não é de bom-tom falar de tudo fora do círculo familiar mas é difícil fazer compreender a uma criança que o que se pratica (…) com naturalidade em família (…), pode ser julgado de pouco nível ou imoral. A preocupação de preservar a intimidade varia segundo o grau de marginalidade da família, conforme a criança for mais ou menos dominada pelo sentimento de ter coisas a esconder, conforme a concepção que tem da vida privada. Mas poucos pais podem ficar indiferentes à ideia que o mais privado das suas vidas possa vir a ser contado na aula (…)."
Referência completa:
- Perrenoud, Ph. (1995). Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 87-113.
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12 comentários:
..."um professor, em plena acção na aula, pode não se aperceber que um aluno abandonou a sala no meio de uma actividade."
Pode?!
São tão engraçados, alguns especialistas das ciências da educação!
Interrogo-me sobre se (muitos deles) alguma vez deram aulas a crianças...
Será de muitas visões
que uma só se há-de formar:
ninguém se deve guiar
tão-só por suas razões!
JCN
Texto muito pertinente!
Quanto ao comentário de José Batista da Ascensão, pois confirmo que pode... falo de adolecentes que, numa aula de substiruição(na escola onde leciono, as salas de aula não têm espaço para 28 alunos, pelo que há duas cadeiras volantes)houve um aluno que se pirou sem a profesora perceber. Se uma criança o poderia fazer? Por que não? Os professores que mudam de escola com regualaridade têm uma visão mais ampla da heteregoneidade dos alunos, do que professores efetivos na mesma escola há muitos anos. Claro que não sei se é o caso, mas noto isso em muitos colegas, em relação a variadíssimas questões.
HR
O outro anónimo que escreveu o texto de título "Texto muito pertinente!" deveria ver bem aquilo que escreveu. Deixei de contabilizar os erros gramaticais e outros. Mais valia estar caladinho.
Texto interessante, vejamos:
"substiruição" - não encontro no dicionário...
"leciono" - novo acordo ortográfico?
"cadeiras volantes" - por certo um brasileirismo ligado a algo voador, no caso, cadeiras...
"um aluno que se pirou" - não deve ter sido o primeiro...
"profesora" - sim, alguns perdem consoantes...
"regualaridade" - não consigo encontrar isto nos dicionários...
"heteregoneidade" - outra que não encontro...
"efetivos" - ou bem que utilizamos o acordo, ou bem que não o utilizamos...
"em muitos colegas" - não serei um deles, com toda a certeza...
Raul Fernandes, Porto
Raul Fernandes, Porto
Caro ou cara HR. Caro ou cara Colega:
Em mais de duas décadas e meia de ensino, ininterruptamente, mesmo quando leccionei a nove turmas (uma de sétimo ano, cinco de oitavo e três de nono) e tive cerca de duzentos e cinquenta alunos (na Escola C+S de Freiria - Torres Vedras, no ano lectivo de 1985-86), nunca, quando "em plena acção na aula", algum aluno abandonou a sala sem que me apercebesse. Nem nas minhas deambulações pelo país, tendo leccionado nos distritos de Coimbra, Lisboa, Leiria, Viana do Castelo e Braga, alguma vez tive conhecimento de que tal facto se tivesse passado com qualquer colega.
Mas enfim, tenho de admitir que não vi, nem vejo nem tomo conhecimento de tudo.
Mas que me faz impressão, lá isso faz.
Agora com aulas de substituição, com alunos que os professores não conhecem, e com essa coisa das "cadeiras volantes", enfim... Mas sempre lhe digo: mesmo aí, quando "em plena acção na aula"... isso faz-me espécie, confesso.
Caro Raul Fernandes,
Os erros ortográficos, que são realmente muitos, devem-se ao facto de estar a recuperar de uma intervenção cirúrgica que, além de implicar dificuldades de locomoção, implicou também problemas de visão. Mas há um certo desleixo que a mim próprio(a) me desagrada. Tentarei ser mais cuidadosa. Mas como me preparo para nova intervenção cirúrgica, é provável que escreva mais "barbaridades" do género, porque quer lhe agrade ou não, não vou ficar caladinho(a), a não ser que assim o entenda.
HR
Caro José Batista da Ascenção,
Também a mim faz confusão, mas menos do que a si (vidas diferentes, experiências diferentes?!). Estive numa escola, na Baixa da Banheira, em que uma aluna de 14 anos pediu aos colegas para, na aula de educação física, lhe atirarem bolas à barriga para ver se abortava... na Cova da Moura também ouvi tiros, etc, etc, etc.
Seja como for, a troca de experiências, ou de ideias que acrescentem informação têm a mais-valia de amplificar as conexões do pensamento, e isso é, na minha perspectiva, sempre útil para quem está envolvido.
HR
Cara HR:
Como já passei por esse tipo de situação em 6 ocasiões (bastante graves...) sei dar valor ao seu problema. Apenas lhe posso transmitir que deverá encarar sempre positivamente esses maus momentos. Mas há que cuidar dos textos, creio que estamos de acordo nesse ponto. Queira acreditar que lhe desejo rápida recuperação, e não se esqueça de uma atitude positiva, que (nos) ajuda muito nesse tipo de situações.
Raul Fernandes
PS- Não disse para estar calada. Neste caso até espero que volte com celeridade a enviar outros comentários, sinal que recuperou completamente deste momento mais difícil.
Caro Raul Fernandes,
Estamos completamente de acordo, "Há que cuidar dos textos".
Com toda a sinceridade, muito obrigada pelas suas palavras de apoio.
HR
A HR,
desejo boas melhoras.
José Batista.
Não se preocupem com essas coisas das intimidades e segredos de família. O modo como a coisa está dita, faz parecer que todas as famílias têm enormes segredos, que deveriam ser irreveláveis por uma criança pequena. Se os têm serão, provavelmente, graves e, ou a pequena criança não sabe deles, ou não os conta mesmo. Quanto às outras "crianças", já são grandinhas e sabem o que contar e o que não contar... E, depois, antes da escola, toda a comunidade já conhece a maior parte desses "segredos". Já ninguém vive isolado a ponto de esconder tudo o que se passa consigo. Muitas vezes não são os alunos, diga-se, os filhos, a contar certas coisas, mas sim os colegas que sabem e não porque o dito aluno o contasse, mas porque toda a comunidade comenta. Depois há a internet, as redes sociais,e, parece-me até que, cada vez mais, cada um quer que se saiba de si. Talvez seja uma outra forma de isolamento que extravasa mostrando tudo...
Os professores não são seres ávidos de vasculhar a vida secreta dos alunos e das suas famílias, como o texto parece querer fazer transparecer. E os alunos... não contam tudo como alguns senhores pensam... alguns, apesar de novos, sabem bem "separar as águas".
O professor está sempre a ser observado, provavelmente de vinte e tal maneiras diferentes por hora, faz parte da sua profissão. Tem de saber viver com esse factor,cumprir as normas, ser educado e correcto, ensinar bem, exercer o seu papel. O aluno também precisa de intervir. É normal que vá buscar os exemplos naquilo que conhece. É a vida na escola... Nada para além disso.
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