sexta-feira, 6 de maio de 2011

O Infeliz

João Boavida retoma uma tira do Quino (aqui lembrada aos nossos leitores) que parece ter sido feita a pensar neste início de século XXI.

A Mafalda pergunta à sua amiga Liberdade em quem pensa ela que o seu pai irá votar nas próximas eleições. E a amiga Liberdade responde-lhe que o pai anda com cara de infeliz. Sendo assim, argumenta Mafalda, é porque ainda não se decidiu por nenhum candidato. Mas a amiga Liberdade responde-lhe que sim, que já se decidiu, mas que anda com cara de infeliz. Mas porquê, julga que vai perder? Não. O seu pai pensa que o candidato em quem decidiu votar vai ganhar as eleições, diz Liberdade, mas, apesar disso, continua com cara de infeliz. Mafalda não compreende - o pensamento das crianças às vezes é um pouco rígido: «O teu pai, Liberdade, sabe em quem votar nas próximas eleições, pensa que esse candidato vai ganhar… e não está satisfeito?» «Não», responde a pequena Liberdade, «anda com cara de infeliz». Se calhar supõe que não vão deixar o candidato do teu pai governar, pensa Mafalda, com a sua boa lógica infantil. Mas a outra responde que, às vezes, sim, supõe que não vão deixá-lo governar, e anda com ar infeliz, mas noutras acha que o vão deixar governar, e continua com ar infeliz. Mas, já sem paciência, pergunta Mafalda: sendo assim, por que razão não se lembrou o teu pai doutro candidato? E responde a sua amiguinha Liberdade: «Lembrou-se, e anda com uma cara, o infeliz!»

É o retrato político do Portugal de hoje, o nível zero das expectativas dos eleitores, o conflito da maioria: mal para votar à direita, mal para votar à esquerda, mal se votar para cima e pior se votar para baixo. O problema mais profundo e geral parece ser este: precisamos, todos, de uma grande reconversão moral, mas não há possibilidade de reconversões morais em quem não tem, para consigo mesmo, exigências morais.

Mas, atenção, o retrato não é só de Portugal e o conflito não é só nosso. É mundial.

Como andar feliz, face a uma classe industrial europeia que levou indústrias para o Oriente sem querer saber da decadência que provocaria na Europa?

E com uma classe política que raramente consegue, em causa própria, ter comportamentos moralmente saudáveis e altruístas?

E com uma direita mais que liberal que sonha poder voltar a espremer os trabalhadores como limões?

E uma esquerda que ainda não percebeu que foi perdendo o chão e que agora plana no vazio e clama no deserto?

E com uns trabalhadores (de empresas públicas) que continuam a fazer greves como se andassem na lua, ou gostassem de brincar com todos nós?

E com um sindicalismo que precisa de se deslocalizar, pois é mais necessário noutros lugares que aqui?

E com uns países comunistas que ultrapassam o capitalismo pela direita; e um capitalismo que encontrou, em alguns comunistas, os seus executores mais eficazes?

E uns “boys” da mais alta finança, que jogam à roleta russa na cabeça do Mundo e ninguém lhe põe algemas?

Como ser feliz num mundo onde se inverteram quase todos os quadros e se trocaram as posições de quase tudo?

Quem, nestas condições, pode andar feliz e descansado?

João Boavida

4 comentários:

joão boaventura disse...

Quem és tu romeiro ?
Ninguém

Portanto, como não sou ninguém, vou votar em ninguém, para ser coerente.

Porque,votar no partido do actual governo é suicídio.
E Miguel de Unamuno já disse que os portugueses são suicidas, e eu não sou suicida.

Anónimo disse...

Mais um caso a comprovar que não há regra... sem excepção! JCN

Anónimo disse...

Tem toda a regra excepções;
só que há casos em que a norma,
sem que lhe assistam razões,
nas excepções se transforma!

JCN

Anónimo disse...

Caro João Boaventura,

As suas palavras valem por mil imagens!
HR

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