domingo, 1 de maio de 2011

O corte das pensões de reforma acima dos 1.500 euros mensais

“A respeito da Política – chamo a tua atenção para a nova palavra ‘verborreia’ com que no artigo classifico a nossa eloquência S. Bental” (Eça de Queiroz, 1485-1500).


Hoje em dia com a televisão a entrar-nos pela casa dentro, a qualquer hora do dia ou da noite, essa verborreia, através do canal “Parlamento”, poupa-nos o incómodo de nos sentarmos nas bancadas “S. Bentais” destinadas ao público anónimo que aí se desloca. Por outro lado somos bombardeados, numa tentativa de lavagem ao cérebro, com intermináveis e constantes debates televisivos em que uns senhores, engravatados e de casaco ou de casaco sem gravata, debitam o seu caudal de opiniões. Umas para levar a sério, outras para entrarem por um ouvido e saírem pelo outro, ou mesmo pelo mesmo, sem accionarem as interconexões neuronais da caixa craniana, com visões apocalípticas ou com soluções de santo milagreiro para a crise que açoita Portugal de lés-a-lés. Um país em que, segundoo economista Eduardo Catroga, “o Governo de José Sócrates devia ir a tribunal; o fartar vilanagem foi uma tragédia nacional” (“Expresso”, 30/04/2011).


Entretanto, na noite do passado dia 29 de Abril, na “RTPN”, o eurodeputado Paulo Rangel, que me habituei a ouvir com atenção quando deputado aquém-fronteiras, pelo seu discurso equilibrado e raciocínio lógico, defendeu a diminuição das pensões de reforma acima de 1.500 euros mensais, a exemplo dos vencimentos dos funcionários públicos no activo. Num Portugal em que, segundo Eça, “tudo tende à ruína… num país de ruínas”, como que é pretendido, agora, escorar essas ruínas à custa do corte de pensões moderadas dos reformados. Esqueceu-se o autor da proposta, porventura, que as reformas se têm degradado pelo facto de não estarem indexadas ao salário dos funcionários no activo, como sucede, por exemplo, com os magistrados numa forma de justiça que não ouso sequer pôr em questão. Ou seja, defendo, apenas, uma igual justiça a ser estendida aos outros funcionários públicos fazendo com que a democracia portuguesa não aceite que os homens, como escreveu Orwell, sejam todos iguais embora haja uns mais iguais do que outros.


Entende, assim, Paulo Rangel que uma reforma deste “exorbitante” montante deve ser cortada sem dar ocasião a que os reformados tomem para si a queixa de uma das personagens de Arnaldo Gama: “Para isto é que eu vivi! Malditos anos! Maldita velhice!”. Ideia bem diferente expressou recentemente o fiscalista Diogo Leite Campos ao dizer que 10.000 euros mensais, emagrecidos para pouco mais do que metade pelos impostos, são pouco “para casa, roupa lavada, comida, instrução dos filhos, doença e tudo o mais”. E acrescentou, ainda, em defesa da sua tese (ou melhor, opinião pessoal), que em qualquer país europeu é este o vencimento auferido pela “classe média baixa”. Esta mesma situação transposta para os reformados de uma “classe média baixíssima” é agravada pelo facto de longe ir o tempo em que a “velhada” não suportava o encargo dos filhos no desemprego ou o auxílio prestado à educação dos netos. E pior do que isso, em que devido aos achaques próprios da idade, para salvar os dedos passou a deixar os anéis no pagamento mensal de dispendiosas contas de farmácia.


Mas porque é de reformas que estamos a falar, torne-se esta temática bem mais abrangente encarando a injustiça criada para quem mais tempo trabalhou, mais investiu na sua preparação académica e quem mais descontou para o efeito. Tomemos o exemplo de dois professores do ensino não superior. Um, de posse de uma licenciatura, reforma-se ao 7O anos de idade. Outro, ao abrigo do estatuto de uma aberrante carreira docente (apadrinhado por Roberto Carneiro na pia baptismal de um sindicalismo herdado de tempos revolucionários), de posse de um curso médio, um ano antes de se reformar, aos 52 anos de idade, compra, em meia dúzia de meses, uma "licenciatura" numa escola “superior” privada. Por mais incrível que pareça, se ambos aposentados no mesmo ano terão "direito", exactamente, ao mesmo valor de reforma mensal.


Encare-se a analogia com dois indivíduos que tenham feito os seus depósitos bancários com diferentes quantias mensais: o primeiro com mensalidades menores e a duração de 32 anos; o segundo durante quarenta e tal anos com mensalidades maiores. Seria justo que no final destes depósitos a quantia levantada por ambos da instituição bancária pudesse ser exactamente a mesma? Por esta e por outras, assistimos ao facto da Caixa Geral de Aposentações se encontrar em situação difícil ao presentear, os que menos tempo trabalharam, menos investiram na sua formação académica e menos descontaram para a sua aposentação, com a mesma reforma dos que mais tempo trabalharam, mais investiram na sua formação académica e mais descontaram para a sua aposentação. A acrescentar a este facto, dever-se-á ter em conta de que a esperança de vida do primeiro depositante, depois de reformado, é bem maior do que a do segundo depositante. Poder-se-ia ter esta aberrante situação como sendo da mais elementar justiça?


Mesmo aqueles que, deserdados da fortuna deste favorecimento, como diria Garrett, com “pesares que os ralam na aridez e secura da sua desconsolada velhice”, resolvessem sair à rua para reivindicar os seus direitos, mancando de uma perna ou de outra, anquilosados com doenças reumáticas, arquejantes com o “os bofes a saltar-lhes da boca para fora”, nem sequer conseguiriam merecer a compaixão do seu semelhante preocupado com os seus próprios e difíceis problemas.

Para além disso, o desastroso destino económico do país - com as suas implicações na bolsa do Zé-povinho, enquanto Francisco Louçã, fundador e dirigente do Bloco de Esquerda, passou as férias em Cabo Verde como que imune à crise da terra que o viu nascer porque, como nos diz o povo, “longe da vista, longe do coração” - está traçado pelo Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. Ou seja, a opinião ou simples alvitre do eurodeputado Paulo Rangel em cortar nas reformas acima dos 1.500 euros faz dele mais papista do que os papas que nos emprestarão dinheiro sob condições por eles previamente ditadas. Ora, em mau augúrio, Portugal parte para estas negociações na posição desvantajosa de ter os credores a baterem-lhe insistentemente à porta dos cofres vazios da Fazenda Nacional.


Todo o resto é simples retórica de quem possa pretender mudar as linhas do destino traçado na palma da mão de um país do extremo ocidental europeu que vai passar, em pouco mais de três décadas e meia, de colonizador a colonizado!

9 comentários:

Mário Reis disse...

Que grande confusão vai nessa cabecinha Rui. Ficamo-nos pelos tostões... e os milhões???

Rui Baptista disse...

Meu Caro Mário: Grato pelo comentário. Bem sabia eu, de antemão, a polémica que o meu texto iria provocar porque, como escreveu Marguerite Yorcenar, “toda a verdade gera um escândalo”.

Na verdade, podem ser tostões comparados com os milhões de euros da dívida pública. Mas não é isto que está verdadeiramente em causa no que tange às reformas, e não é tão despiciendo como pode parecer à primeira vista.

Explico-me melhor: pode estar em causa a própria sustentabilidade da Caixa Geral de Aposentações, pagando os jovens de hoje as asneiras que se foram cometendo, durante anos, numa igualdade de reformas entre desiguais, quer em idade, quer em habilitações académicas, quer em anos de serviço.

Continuação de um bom fim-de-semana.

joão boaventura disse...

Caro Rui

Quando o Estado aborda a inevitabilidade de cortes nas despesas, significa, despesas da sociedade civil (no ordem dos cem ou mil euros), porque oblitera intencionalmente as próprias, isto é, as do Estado (na ordem dos milhões).

Por isso se adianta que Janus tem duas faces, uma, sem qualquer máscara, estereotipada na sociedade civil, a qual se encontra codificada exaustiva e frequentemente nos cortes dos vencimentos, quer do pessoal activo, quer dos reformados, ou utilizando instrumentos de avaliação para reduzir as promoções, ou fechar centros de saúde, ou aumentos de impostos, ou…, ou…, repercutindo na sociedade civil a ideia de que todo o mal dela provém, de que está a mais, constitui um empecilho, e haverá que domesticá-la e domá-la, para os habituar a não ter muitos euros, porque o Estado não conseguiu ainda fazer como Esparta que produzia as moedas, intencionalmente, tão pesadas que ninguém as queria amealhar.

Nestas circunstâncias, o Estado resolveu o problema pelo corte e pelo imposto, o que de facto pesa menos, e a sociedade civil também fica impossibilitada de amealhar, o que é verdade, com a agravante de nem sequer poder prover a uma refeição diária. Mas como o Estado é generoso para acudir às necessidades da sociedade civil, logo resolveu fornecer algumas sopas às crianças, abrindo excepcionalmente os refeitórios das escolas nas férias. Gestos magnânimos destes escondem o que o Estado produziu: ou cortes nos vencimentos dos pais das crianças, ou pais no desemprego.

A outra face tem uma máscara para que ninguém a veja, à imitação de Deus quando disse a Moisés que ninguém lhe pode ver a face, que, quando muito, poderia vê-lo pelas costas quando se afastasse, depois de lhe entregar as Tábuas dos Mandamentos. Os muçulmanos também o sabem e por isso destruíram a imagem daquele enorme Buda incrustado na rocha, no Afeganistão, por considerarem que, se alguma imagem há, ela deve estar apenas na mente de cada um. Assim o Estado.

Chegados aqui, ao Estado não se pode ver a face, tal como Deus, sob pena de perder a sua mística, o seu mistério, ou, como disse Fernando Pessoa, observado o problema por outro ângulo, o Estado também uma sociedade secreta, porque era o retrato ampliado da reunião do Conselho de Ministro.

É isto que o Dr. Catroga ainda não entendeu quando quis entrar na casa do Estado e saber coisas, porque antes do galo cantar, já Jesus tinha dito que Pedro o negará três vezes, concomitantemente, o Estado lhe negou responder nas três vezes.

(Continua)

joão boaventura disse...

(continuação)

O que a máscara escondida esconde, passe o pleonasmo, é o Shangri-la do Estado, o lugar paradisíaco, onde o tempo parece deter-se em ambiente de felicidade e saúde, com a convivência harmoniosa entre pessoas das mesmas procedências, e pelas mais dispersas formas de vivência porque nele se consagram diversos estilos de vida, produto de vários hábitos enraizados, desde que o Estado é Estado, donde resulta:

- Mordomias dos três ex-Presidentes da República: gabinete, secretárias, carro, motorista;
- Aumento ou permanente actualização do parque automóvel;
- Institutos e Fundações Públicas, para servir clientelas partidárias;
- Idem aspas com as Empresas Municipais;
- Excessivo número de Câmaras e de Juntas de Freguesias;
- Financiamento milionário aos Partidos;
- Renovação frequente da frota de carros;
- Subsídios de habitação e de deslocação a deputados eleitos por círculos fora de Lisboa quando o seu habitat é o de Lisboa;
- Excesso de administradores em alguns hospitais;
- etc., etc., etc., … …

Posto isto, o que o reino do Shangri-la propõe é o pauperismo da sociedade civil que se apresenta, de facto, um estorvo muito grande para o engrandecimento da corte do Estado.

Depois digam-me que a República é diferente da Monarquia, porque numa há a clientela e na outra a corte. Qual é a diferença ? Além de uma ser em mil réis e a outra em mil euros.

(continua)

joão boaventura disse...

(conclusão)

Quanto aos discursos dos quatro Presidentes, no 25 de Abril, corresponderam apenas ao estamento dos três ex-Presidentes e do actual Presidente.

São os chamados discursos de circunstância, em momentos de crise aguda, em palco e cenários calmos, transmitindo tranquilidade e serenidade, com muita assistência bem posicionada socialmente, tudo somado, como se, fora deste ambiente, nada se passasse de grave, como foi natural e transparente nos actores da cena.

Todo o aparato aureolado pelas oratórias positivistas foi uma afronta aos Novos Cristãos do século XXI, que corresponde à conversão da classe média em Novos Pobres, que não se alimentam da oratória ou de promessas.

Este caleidoscópio prenunciou, além do festejo 25 abrilense, o festejo da chegada dos 3 Reis Magos, FMI-FESF-BCE, o que explica a Presidência da República ter mandado aumentar a sua Casa Civil, nos finais de Março, com mais uma dezena de colaboradores [7 assessores e 3 consultores (DR n.º 61, Série II, de 2011-03-28)], para sustentar a corte, como na Monarquia.

Portanto, em Política o jogo do palco é sempre diferente do jogo dos bastidores.

Por isso Janus tem duas faces, como o Estado, esse conceito definido juridicamente e que, objectivamente, não é mais do que um poder estatal soberano, e de onde todo o mal emana, a começar nas promessas aos gentios, com verborreia que já cansa, e que, de tanto a ouvir, já adormeço .

Um abraço

Rui Baptista disse...

Caro João: E queixas-te tu que adormeces com a verborreia dos políticos. Se sofresses de insónia agradecerias a bênção de um sonífero, para mais, de borla.

Para acordares desse teu sono dos justos, nada como despertar-te com uma das piores frases retiradas dos exames nacionais 2008/2009.

Escreveu um aluno: “Em 2020 a caixa de previdência já não tem dinheiro para pagar aos reformados, graças à quantidade de velhos que não querem morrer”. Ou seja, o problema de uma próxima falência da caixa de previdência ( e por contágio, da caixa geral de aposentações ) seria evitado se os velhos quisessem morrer! Desculpa esta brincadeira, mas comungo da opinião de Jean Cocteau: “Não é sério o homem que não ri!”

Fica a promessa de ler os teus três documentários, com a atenção e seriedade que em mim sempre despertam os teus bem fundamentados e documentados textos. E eu o que prometo, cumpro. Defeito que me impede de iniciar uma auspiciosa carreira política…

Um abraço.

joão boaventura disse...

Aproveito a oportunidade, para quem estiver interessado em vasculhar a história da dívida portuguesa, em dar a ler esta interessante exposição do blog Desmitos.

Boa e oportuna leitura.

joão boaventura disse...

Para nos inteirarmos do retrato económico nacional, propõe-se a leitura de A bancarrota portuguesa de 1892, porque homem prevenido vale por dois.

Anónimo disse...

A nossa democracia
deu nesta pouca vergonha,
havendo já quem nos ponha
sob a sua tutoria!

JCN

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