segunda-feira, 9 de maio de 2011

Para uma neutralidade crítica

A propósito do post A pedagogização do sexo, um leitor disse o seguinte: "A ideia de neutralidade não é absurda. Acredito que, dentro do possível, não devo levar para a sala de aula as minhas posições políticas, religiosas, etc."
Em certa medida, o leitor tem razão pelo facto de eu não ter explicado em que sentido estava a usar a expressão neutralidade e, de modo mais concreto, neutralidade axiológica.

Deixarei neste blogue um conjunto de textos que discutem o sentido dessa expressão e que, no meu entender, a clarificam suficientemente.

Começo por um do filósofo Fernando Savater, retirado do seu livro O valor de educar. (Edições Presença ou Dom Quixote).

"É compreensível o temor face a um ensino sobrecarregado de conteúdos ideológicos, face a uma escola mais preocupada em suscitar fervores e adesões inquebrantáveis do que em favorecer o pensamento crítico autónomo. A formação em valores cívicos pode converter-se, muito facilmente, em doutrinamento para uma docilidade bem pensante, que levaria ao marasmo se chegasse a triunfar; a explicação necessária dos nossos principais valores políticos pode, também facilmente, resvalar para a propaganda, reforçada pelas manias castradoras do «politicamente correcto» (…).

Daqui que alguma «neutralidade» escolar seja justificadamente desejável, face às opções eleitorais concretas, oferecidas pelos partidos políticos, face às diversas confissões religiosas, face a propostas estéticas ou existenciais que surjam na sociedade. Terá de ser uma neutralidade relativa, sem dúvida, porque não pode recusar a consideração crítica dos temas do momento (que os próprios alunos, frequentemente, irão solicitar e que o mestre competente terá de fazer, sem pretender situar-se fora, mas declarando a sua tomada de posição, enquanto fomenta a exposição razoável das outras) ainda que deva evitar converter a sala de aulas numa fastidiosa e logomaquia sucursal do Parlamento. É importante que na escola se ensine a discutir mas é imprescindível deixar bem claro que a escola não é um foro de debates nem um púlpito.


Não obstante, essa mesma neutralidade crítica corresponde, por sua vez, a uma determinada forma política, perante a qual não é possível ser neutral no ensino democrático: refiro-me à própria democracia. Seria suicida que a escola renunciasse a formar cidadãos democratas, inconformistas mas em conformidade com o que o modelo democrático estabelece, inquietos pelo seu destino pessoal mas não desconhecendo as exigências harmonizadoras do público. Na desejável complexidade ideológica e étnica da sociedade moderna (…) fica a escola como o único âmbito geral que pode fomentar o apreço racional por aqueles valores que permitem a convivência conjunta aos que são satisfatoriamente diversos. E essa oportunidade de inculcar o respeito pelo nosso mínimo denominador comum não deve, de modo algum, ser desperdiçada.

Não pode nem deve haver neutralidade, por exemplo, no que corresponde à recusa da tortura, do racismo, do terrorismo, da pena de morte, da prevaricação dos juízes ou da impunidade da corrupção em cargos públicos, nem tão-pouco na defesa das protecções sociais da saúde ou da educação, da velhice ou da infância, nem no ideal de uma sociedade que corrija o mais possível o abismo entre opulência e miséria. Por quê? Porque não se trata de simples opções partidárias mas sim de benefícios da civilização humanizadora que já não é possível renunciar sem se incorrer em concessão à barbárie.
O próprio sistema democrático não é algo natural e espontâneo nos seres humanos, mas sim algo conquistado, através de muitos esforços revolucionários no campo intelectual e político: portanto, não pode ser dado como certo, mas deve ser ensinado com a maior persuasão didáctica compatível com o espírito de autonomia crítica. A socialização política democrática é um esforço complicado e resvaladiço, mas irrenunciável (…).

A recomendação racional de tais valores não deve ser uma mera litania edificante que, no melhor dos casos, acabará por aborrecê-los. Será preferível mostrar como conseguiram ser historicamente imprescindíveis, e o que ocorre onde, por exemplo, não há eleições livres, tolerância religiosa ou os juízes são venais. Seria absurdo mostrar às crianças as falhas do mundo em que vivemos (…) [sem lhes inspirar] uma prudente confiança nos mecanismos previstos para emendá-las."

2 comentários:

Anónimo disse...

Subscrevo completamente as palavras de Fernando Savater de um texto que já conhecia. Todavia, julgo que o conhecido filósofo espanhol se esquece de uma dimensão importante. Se não quisermos abdicar de uma escola que se funda nos valores matriciais da democracia, não basta fazer a defesa verbalista desses mesmos valores. A democracia pode ensinar-se e praticar-se, não frases grandiloquentes mas com práticas efectivas.
A este propósito sugiro a visualização deste vídeo (http://www.youtube.com/watch?v=eP1JxqHFC5c) de uma escola da Dinamarca. Julgo que ele retrata a antítese da escola-caserna que muitos defendem para a educação portuguesa.

PJ

Nazaré Oliveira disse...

Excelente texto. Obrigada

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