“Portugal é um país traduzido do francês em calão” (Eça de Queiroz, 1845-1900)
Foi com declarado estupor que acabei de ler a notícia saída hoje no Público, intitulada “Tudo o que os alunos devem saber no final de cada ciclo”, que pressagia o desinteresse em estabelecer programas escolares, devidamente estruturados pedagógica e cientificamente, e o fim de exames sérios que avaliem no final de cada ciclo escolar aquilo que os alunos verdadeiramente sabem numa escola que tem pecado por um hedonismo exagerado que tornará o nosso ensino regular em “Novíssimas Oportunidades”, a partir já do ensino pré-escolar.
Assim, a senhora ministra da Educação não pára de surpreender o país com medidas que anuncia com candura para um desejável ensino de qualidade. Através da caixa que mudou o mundo, depois de se congratular com o facto dos nossos escolares saberem que o dia tem 24 horas, surge agora com várias medidas que mudarão o mundo da nossa escola, com o rentabilizar do negócio das Tecnologias de Informação e Comunicação a partir do ensino do fim do pré-escolar (por volta dos cinco anos de idade), como sejam jogar no computador, aceder a um programa ou página da internet, saber jogar ou desenhar, bem como “ligar ou desligar o computador” (como se pudesse aceder à internet sem saber ligar o computador!).
Agora o que me mete impressão maior, se bem interpretei a notícia supra citada, é o facto de apesar “a criança não saber ler, nem escrever aceder a um programa ou página da Internet". Para olhar para eles (programa e página) " como boi para palácio", como é uso no dizer popular? Mas de mal o menos, pelo menos o aluno saberá “pegar correctamente num livro”. Pegar correctamente num livro, para não o agarrar por uma das suas páginas rasgando-a?
Todavia, saúda-se aqui o “soberaníssimo bom senso” (Antero) da possível não aplicação destas medidas por não serem documentos obrigatórios. Já agora, a partir de que idade se deverá saber utilizar o fax? Ou qual as metas a alcançar no fim dos ensino secundário em Inglês que permita ao indivíduo com um curso superior de natureza técnica discursar em universidades de língua anglo-saxónica sem se tornar numa espécie de tatebitates?
Em Portugal, no domínio de uma educação que produz “analfabetos às pazadas”, para utilizar uma feliz expressão de Medina Carreira, procura-se inspiração em países como a Austrália, Finlândia, Nova Zelândia, Reino Unido, República da Coreia e EUA, como quem encomenda um carro de corrida fórmula 1 para ser guiado por quem acaba de tirar a carta de condução depois de chumbos consecutivos. Mas até isto faz sentido num país em que os grandes planos orçamentais, por vezes, se assemelham a verdadeiras contas de merceeiro. Ou até pior!
O próprio Eça nos deu conta do costume nacional de substituir as ideias originais por cópias grosseiras, quando escreveu: “Aqui importa-se tudo: Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilos, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssimo, com os direitos de Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas…”
Estamos no dia 3 de Outubro do ano da graça de 2010, ainda a meses, portanto, das pilhérias carnavalescas do novo ano. Mas tudo bem. Se se antecipam as medidas de austeridade para o ano em curso, por que não antecipar o corso carnavalesco de um ensino que não ensina já para este ano lectivo?
4 comentários:
Caro Rui Baptista,
Repare na confusão criada pela nomenklatura, o professor deve cumprir com o seguinte:
- programa da disciplina;
- competências específicas;
- competências horizontais;
- competências verticais;
- (será que há competências diagonais?);
- objectivos;
- metas;
- critérios de avaliação;
- preparar os alunos para exames;
- etc..
E depois tem que desvirtuar tudo, porque tem que:
- alterar o programa da disciplina para os alunos preguiçosos (planos de recuperação, de acompanhamento, etc., etc., etc.);
- alterar todas as competências para dar resposta a estes alunos e aos projectos emanados do eduquês;
- alterar todos os objectivos para dar resposta à estatística;
- alterar as metas para promover a inclusão;
- alterar os critérios de avaliação para garantir o direito do aluno preguiçoso passar de ano.
Portanto, tudo isto é apenas e só para:
- inglês ver;
- dar emprego e tachos a terceiros;
- manter o status quo;
- garantir o controlo burocrático-ideológico das escolas.
Como uma lagarta gorda num ninho de abelhas, assim a nossa educação continua a auto-inchar-se em metas, competências, estatísticas… e mais uma infinidade de correlativos que o cansaço e a falta de pachorra não me permitem agora enumerar como o fez - como toda a propriedade- Fartinho da Silva. Maravilha-me o pestanejar contínuo, idiota e ingénuo da Senhora Ministra da Educação e afins, incluindo aqueles que não aparecem à luz do dia porque os vincos das suas fronhas já não enganam ninguém: pensarão estes todos que governam o mundo que a hora do linchamente não vai chegar? XXI séculos de diáspora para ignorar leis básicas e inexoráveis como a simples lei de causa-efeito? “O sono da razão engendra monstros”. E parece que a humanidade não consegue viver sem eles, os monstros por si engendrados. Estranha condição humana, lembram-se quem assim se queixava?
Será que os que governam o mundo têm todos um bilhete escondido para outro planeta em Gliese 581G?
A todas as bestas que nos governam: “Há os que governam o mundo e há os que são o Mundo”! (Filme do Desassossego, João Botelho)
HR
Caro Fartinho da Silva:
Agradeço-lhe o válido contributo que trouxe com o seu comentário, como aliás em muitas outras ocasiões, e que me levou, de certo modo, à elaboração de um novo post, publicado há momentos, intitulado "As metas de aprendizagem da ministra da Educação".
Numa época de inacção em que os sindicatos docentes se preocupam, tão-só, com questões laborais passando-lhes ao lado, muitas vezes por má consciência dos seus dirigentes que fazem disso um modo de vida quase vitalício sem as agruras do ensino actual, questões de natureza pedagógica é reconfortante haver professores que sobre elas se debruçam com evidente e louvável interesse nos comentários por si formulados.
Caro HR:
O seu comentário foi uma pedrada no charco, diria mesmo um murro no estômago, em que se afoga o nosso ensino e em que não aparece, por parte de qwuem o dirige, uma necessária e urgente bóia de salvação.
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