“É a liberdade, a fraternidade, a igualdade do insignificante e do medíocre” (Eça de Queiroz, 1845-1900).
No meu último post, “O Elogio da Ignorância” (11/10/2010), relatei a experiência de uma formadora com a carne sofrida pelo azorrague de uma nova espécie e mais sofisticada forma de escravatura que encontra expressão em Nietzche: '"De quanto se escreve só amo o que alguém escreve com o seu sangue".
O post atrás citado mereceu um comentário de um Avaliador Externo dos Centros de Novas Oportunidades que transcrevo integralmente:
“Caro amigo,
Há já algum tempo que não comento os seus artigos, mas fa-lo-ei agora, infelizmente, sob anonimato por razões que rapidamente entenderá.
Apresentei currículo e fui consagrado em Diário da República como Avaliador Externo dos Centros de Novas oportunidades. Em Lisboa, em reunião geral, de expectantes crentes como eu, disseram-nos que éramos a pedra angular do sistema.
Disseram isto instados por assistentes que já conheciam da poda e já tinham visto o tombo. Mais disseram, após a apologia da coisa,que nos competia, a nós avaliadores, zelar pela idoneidade do processo. Que quando algo corresse mal se mandava rever, apreciar, sugerir, talvez, novas competências mais elásticas...
Assisti a quatro ou cinco cerimónias públicas de "defesa/apresentação" (já consumada, quando chega a esse estádio de desenvolvimento) do trabalho dos formandos adultos. O que vi e ouvi de todos (formandos, formadores e até do avaliador externo - cheio de dúvidas a desoras)foi suficiente para me lembrar do Medina Carreira e decidi não comer (nunca) daquela gamela.
Como aqui já disse um formador lúcido, haja um pingo de decência no modo como se desqualificam as pessoas, enganando-as … e ao país.
Tirando honrosas excepções (que, certamente, existirão), as Novas Oportunidades nem tradução do verdadeiro ensino são; nem calão!: são a certificação total e estatal da incapacidade nacional de acreditar no valor da Educação.
Levem um abraço solidário e triste. “
Em caboucos de uma verdadeira derrocada, o “facilitês” das “Novas Oportunidades” (ou Novos Oportunismos?), em analogia com “eduquês”, que não se cura com uma simples aspirina. É o descalabro do sistema educativo com as metástases do facilitismo das provas de “Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos”, com cursos superiores criados para dar licenciaturas e mestrados como quem distribui uma espécie de sopa dos pobres aos famintos de um diploma que nada vale em termos de aceitação de ordens profissionais como a Ordem dos Engenheiros, por exemplo.
Sabedor deste empecilho para a acreditação de diplomas de instituições de ensino superior privado que foram obrigadas a fechar as portas pelos escândalos que saltaram para a opinião pública, logo o governo socialista fez publicar legislação que retira às ordens profissionais a criar no futuro (tentou-o até com as ordens de maior e cimentada tradição, sem qualquer resultado) a prerrogativa de constituir travão para o reconhecimento de diplomas que atestam o “facilitês” que tomou conta do terreno húmido da falta de decoro, da incompetência e do compadrio.
Desta forma,deixou de haver pessoas com o diploma sério da antiga 4.ª classe do ensino primário que sabiam escrever português. Hoje salta-se, com vara ou sem vara, por cima da aprendizagem do português com licenciaturas, mestrados e…até doutoramentos à pala das novas tecnologias com os seus correctores de escrita cuja falta muito se faz sentir na redacção obrigatória de pequenos textos manuscritos com erros palavra sim palavra não.
Uma possível solução pode e deve ser buscada no dever de cidadania de que são exemplo os dois testemunhos aqui deixados contra o “facilitês” que está a criar gerações actuais e futuras de passageiros de um país que navega em águas de ignorância com timoneiros ignaros ou, como diria Eça, “diletantes de coxia”. Seja a que título for, deverá um qualquer governo fomentar a liberdade do cidadão em ser insignificante e medíocre?
P.S.: Agradeço o comentário de Fernando Martins ao meu post, ”O Elogio da Ignorância”, uma voz sempre presente na luta sem quartel contra as hostes do “facilitês”.
13 comentários:
Para os que pensam que os eduquês são os únicos culpados do estado da educação nacional.
http://voxnostra.blogspot.com/2010/10/educacao-que-nao-temose-investigacao.html
Caro Manuel António:
Obrigado pela sua chamada de atenção. Em boa verdade, os factores que influenciam a educação são múltiplos. Mas de entre eles, também é verdade que o eduquês e aquilo a que, na pia baptismal, dei o nome de “facilitês” têm responsabilidades acrescidas no estado lastimoso de uma educação em que alunos na primeira portagem de prestação de provas daquilo que deviam saber viram os bolsos do avesso e só lá é encontrado o cotão da ignorância.
Mas para efeitos estatísticos, tudo bem porque como disse, de forma jocosa, um Ministro da Educação da II República, distinto catedrático do Instituto Superior Técnico, de seu nome Leite Pinto, “há duas maneiras de mentir, uma é não dizer a verdade, outra fazer estatística”.
Estatisticamente o tecto de um edifício com o sobrado que range com uma maioria de portugueses com o 12.º ano feito a martelo serve o desiderato de um país que se quer na vanguarda desse número de diplomados quando países bem mais desenvolvidos se contentam com menos.
Nisto de tectos o actual governo é exímio, diminuindo-o no que tange a despesas com saúde de uma demasiado sacrificada classe média num país envelhecido e mergulhado em uma"apagada e vil tristeza".
Mas isto, são contas de um outro rosário não menos irreal...e triste!
Para quem quiser consultar outros estudos desenvolvidos pelo grupo ESSA, pode fazê-lo a partir do seu site: http://essa.fc.ul.pt
Os investigadores deste grupo têm procurado encontrar respostas para o importante problema de melhorar a aprendizagem dos alunos sem baixar o nível de exigência conceptual.
Continuando os testemunhos sobre a verdadeira realidade do sistema Novas Oportunidades, deixo aqui o meu testemunho enquanto esposa de um aluno desse sistema, na modalidade de reconhecimento, certificação e validação de competências.
O meu marido desistiu cedo da escola para começar a trabalhar, tendo concluído o 7º ano de escolaridade. Mais tarde, já depois de nos termos casado, insisti com ele e inscreveu-se no extinto ensino recorrente por unidades capitalizáveis, onde ainda aprendeu conteúdos ligados a diversas disciplinas, como História, Matemática, Ciências, Português e Inglês. Recordo-me do 1º dia em que teve aulas, durante a noite, ele vinha completamente angustiado e estafado. Achava que não ia conseguir acompanhar as aulas, depois de tantos anos fora do sistema educativo. Não desistiu e em 2 anos (os 2 últimos deste ensino recorrente) conseguiu completar, por seu esforço, o 9º ano de escolaridade. Sentiu, animado, que o desafio tinha sido superado e que tinha feito aprendizagens significativas nas diversas áreas.
Depois... quis continuar, mas os horários do secundário do ensino recorrente por módulos, que ainda existia, eram incompatíveis com a vida profissional. Então, inscreveu-se num centro novas oportunidades. As poucas sessões presenciais que tiveram decorreram na Junta de Freguesia da nossa zona de residência e a maior parte dos trabalhos escritos (a história de vida!) foram melhorados por mim...
Entretanto, em cerca de um ano, praticamente sem ter aprendido nada, ficou com o certificado do ensino secundário...
Fui avaliador externo desde início do RVCC até o sistema ter entrado em fase de propaganda. Pedi para ser retirado da bolsa quando começou a ser prática certificar 9.º ano com base em "evidências" como conferir trocos no supermercado, redigir recados, saber ir à internet e coisas do género. Foi a gota de água.
Cara anónima,
A experiência que nos relata é um bom exemplo do que sentem os formandos adultos honestos. O ensino recorrente, como disse, era de facto, um ensino de segunda oportunidade sério; não precisávamos desta distorção burocrática e pérfida que são (custa-me dizê-lo) as NO.
Caro João Filipe,
Tiro-lhe o chapéu. Ambos nos podemos juntar ao Clube do Medina Carreira (e outros chatos)! Aqueles que têm para comer (ou ainda vão tendo...).
Obrigado, caro Rui Batista, por nunca desistir, nem que seja a desoras! :-)
Prezada anónima (14.Out., 22:47):
Neste país tudo quanto exija esforço é mandado às malvas. O sério ensino recorrente que honrava os seus alunos pelo esforço ingente em ter aulas ao fim de um dia de trabalho não podia ser uma excepção.
Já excepção é, minha Senhora, o testemunho que trouxe aqui do caso de seu marido quando estabelece um confronto entre a seriedade do ensino recorrente (mas quem quer coisas sérias neste canto lusitano?) e a palhaçada das Novas Oportunidades.
Mas isto já vem de longe. Repare-se por exemplo nos diplomados pelas antigas escolas do magistério primário (de posse do antigo 5.º ano dos liceus) que para ascenderem a uma licenciatura universitária voltaram ao ensino liceal para obterem o antigo 7.º ano (mais dois anos de estudo) e daí partirem para uma exigente licenciatura universitária anterior a Bolonha. Com o “facilitês”, esses mesmos docentes passaram a dirigir-se a escolas “superiores” privadas onde lhe venderam um diploma de licenciatura (?) em meia dúzia de meses.
Devem merecer o mesmo respeito e usufruir de idênticas benesses estas duas espécies de licenciaturas? Não deviam, mas têm! Mas que país é este em que vivemos em que sindicatos fomentam e defendem “à outrance” estas situações em benefício dos seus associados e dirigentes? A resposta talvez responda ao facto de uma Ordem dos Professores não ter sido uma realidade que pusesse cobro a situações destas com o sancionamento apenas de cursos merecedores do aval de qualidade para que qualquer dia a pessoa não licenciada seja apontada a dedo como paradigma de virtudes por não ter embarcado nesta ópera bufa que são certos diplomas ostentados por uns tantos titulares de cargos políticos ou lugares de elevada competência na administração de entidades privadas.
As vias do “facilitês” apontam todas no mesmo sentido: Novas Oportunidades, Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos, cursos privados que distribuem diplomas de licenciatura e mestrado como uma qualquer padaria de bairro distribui aos consumidores pão mal cozido que não pode deixar de causar azia na consciência nacional e tecido ulceroso em todos daqueles que ascenderam na vida à custa de um esforço pessoal digno de encómios.
Nada me repugna que verdadeiros autodidactas (não aqueles que vi definidos como “ignorantes por conta própria”) entrem em cursos superiores, o que me repugna é que haja provas de acesso não tuteladas deixando ao critério de cada escola a forma de as fazer levando-me não só a criticar essa forma de acesso mas, outrossim, a saída em catadupa desses candidatos que, em última análise, levam ao descrédito do ensino regular e ainda exigente ensino secundário que pode ser substituído pelas Novas Oportunidades. Haja decoro, um mínimo de decoro!
Prezado João Filipe de Oliveira:
A sua decisão em não pactuar com aprendizagens como “conferir trocos no supermercado, redigir recados” e coisas quejandas, para obter equivalência ao diploma do 9.º ano é mais um exemplo, triste exemplo, daquilo que se passa nas Novas Oportunidades, menina dos olhos do 1.º ministro e de Maria de Lurdes Rodrigues e Isabel Alçada, uma ex-ministra e uma actual ministra da Educação.
Razão assiste a Raymond Polin quando nos avisa que”reivindicar direitos sem proclamar obrigações é jogar às utopias ou às catástrofes”. O mal não está tanto em quem reivindica esses direitos, mas mais em quem com responsabilidades governativas colabora e apoia essas catástrofes para fins estatísticos ou eleitoralistas.
Mais uma vez trago à colação a opinião de um socialista de gema, o falecido Francisco Sousa Tavares, quando nos disse (cito de memória) que dantes Portugal era um país de analfabetos e hoje é um país de burros diplomados.
A atitude em subscrever este seu depoimento, é prova de que nem tudo está perdido neste jardim à beira-mar plantado que se tornou numa coutada de caça para oportunistas, grande vez em maior número. Por norma, fujo em personalizar os exemplos. Todavia, abro uma excepção. Em tempos, fui convidado para dar aulas numa escola “superior” privada que vendia diplomas de licenciatura (antes de Bolonha) em meia dúzia de meses a diplomados com o curso das antigas escolas do magistério primário.
Não aceitei. Julgo ser esta uma forma de luta para pôr cobro a situações que obrigam a com elas pactuar quem tem como único meio de subsistência o emprego de formador. Mas também essas vítimas deverão fazer valer os seus direitos. Como? Através da criação de um sindicato de formadores, por exemplo.
Nada, mas mesmo nada, deve continuar como está!
Caro anónimo (15.Out.; 09:44):
Desistir é próprio dos fracos! Não desisto, julgo estar a citar um fado de Amália, “até que a voz me doa"! Ou melhor até que a vontade me não faleça em defender, a horas e desoras, causas de que não sou parte interessada directamente!
Acompanham-me nesta guerra, contra os bárbaros que incendiaram e saquearam a seriedade do ensino, todos aqueles que teceram comentários que são prova evidente (e em alguns casos vivências do que se passa nas Novas Oportunidades ) de que algo terá que ser feito.
Espero que o ditado de que "água mole em pedra dura tanto dá até que fura" encontre aqui a expressão de que a voz do povo é a voz de Deus!
As novas chico-espertices, ooops, quero dizer as novas oportunidades, são o corolário lógico da aplicação da fé das "ciências" da educação e de muitos de seus derivados.
Aqui ficam alguns versículos:
- Tudo é relativo;
- Os exames não são capazes de avaliar as competências dos alunos;
- A classe oprimida (os alunos) deve ser protegida da classe opressora (os professores);
- A classe opressora deve perder todos os seus poderes sobre a classe oprimida, inclusive a avaliação dos alunos;
- Os alunos não ricos devem ser protegidos dos males da sociedade, como a competição, a excelência, o trabalho e a disciplina;
- Os alunos não devem memorizar nada porque podem ficar traumatizados;
- A escola não deve transmitir conhecimento, porque a escola é antes de tudo uma construção social;
- A ciência deve ser relativizada porque o conhecimento é uma construção social;
- Os professores devem deixar de ser professores e devem passar a ser técnicos de educação;
- Os técnicos de educação não podem transmitir conhecimento, devem ser obrigados a criar um ambiente que propicie o processo de ensino-aprendizagem sem interferirem na cultura dos alunos;
- Os técnicos de educação devem criar um ambiente que leve os alunos a descobrir o conhecimento por eles próprios;
- Os técnicos de educação devem ir ao encontro dos interesses dos alunos;
- ...
Quem ainda não leu a Bíblia Sagrada do eduquês mas possua uma cultura acima da média, talvez confunda estes versículos com o progressismo, romantismo e pós-modernismo do século XVIII, mas atenção que são uma e a mesma coisa!!!
Caro Fartinho da Silva,
Lê-lo é, felizmente, relembrar Nuno Crato. Grato por haver gente avisada que vai denunciando uma das ignomínias portuguesas, o eduquês (o facilitês).
P.S. Os técnicos tiram cursos ao Domingo!
Caro Rui Baptista
Eu entendo o desespero porque ele é imperecível.
Agora que se festeja o centenário da República, também se festeja o centenário das novas oportunidades que herdámos compulsivamente.
No jornal "A Capital", n.º 824, de 12.11.1912, um artigo com o título "Coisas de Instrucção", e o subtítulo "Um professor do liceu que não tem o curso liceal", esclarece que:
"O sr. ministro do interior não admitiu que o sr. Júlio Vaz fosse professor provisório do liceu Passos Manuel, tendo ele sido proposto pelo conselho e nomeado pelo reitor, em virtude de satisfazer absolutamente a todas as condições legais."
"Em vez desse candidato ao magistério nomeou o mesmo ministro o sr. Augusto Nascimento, que pode ser uma pessoa muito estimável, mas que apenas cursou a escola do comércio Rodrigues Sampaio, não tem um simples exame de admissão aos liceus onde o ministro o madou ensinar, contra a determinação expressa da lei."
E é por causa destes e doutros gestos que os rapazes continuam ainda sem saber quais serão os seus professores."
Portanto, Caro Rui Baptista, aqui tem a razão de o governo actual querer festejar o centenário da República. Festeja-se também o facilistismo das tropelias educacionais que herdámos. Está no sangue, na cara, e na falta de vergonha.
Caro João Boaventura:
O caso aqui relatado, bem a propósito, não sei se se trata de uma excepção do compadrio reinante. Mas uma coisa eu sei, nos alvores da III República casos como este tornaram-se quase regra. Ainda hoje, quantos professores dos ditos trabalhos manuais e oficinais (os então chamados mestres) têm frequência liceal?
Ontem como hoje más fadas há!
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