sábado, 30 de outubro de 2010

EL-REI VISITA A ESCOLA POLITÉCNICA


Fernando Correia de Oliveira, no seu recente livro "O Relógio da República" (Âncora) ressuscitou este excerto d' "As Farpas" de Eça de Queiroz de 1878 relativo à visita do rei D. Luís à Escola Politecnica em 1877 para inaugurar uma linha de telefone com o Observatório da Ajuda (a grafia foi actualizada):
"Por ocasião da visita de el-rei á Escola Politécnica funcionou o telefónio entre uma das salas da Escola e o Observatório da Tapada.

Approximando-se do novo aparelho transmissor dos sons, dizem os jornais que sua magestade ouvira um solo de cornetim! Houve primeiro dúvida sobre se o fio ligava a Escola Politécnica com o Observatório Astronómico ou se a ligava com a Filarmónica União e Capricho. O solo era efectivamente executado pelo Observatório.

Enquanto a astronomia tocava cornetim é natural que, em compensação, a arte musical se ocupasse em determinar uma paralaxe.

A única coisa que estranhamos é que o Observatório não observasse entre as suas peças de música alguma coisa mais interessante para transmittir a el-rei do que o próprio hino do mesmo augusto senhor.

Que o Observatório cultive a especialidade do cornetim, perfeitamente de acordo! Mas que ele cultive igualmente a especialidade do hino parece-nos um abuso que o príncipe não levará a bem.

Reflectiu por acaso o Observatório no que é o hino para um cérebro coroado? Cremos que o Observatório não desceu ainda com as suas conjecturas ao fundo desse abismo. É horroroso.

Para os cérebros coroados o hino equivale a uma enfermidade monstruosa.

O Observatório faz certamente ideia do que é ter zumbidos, não é verdade? Pois ter hino é pior. É ter constantemente, durante toda a vida, em casa, na rua, em viagem, nas cidades, nas vilas, nas aldeias, sobre as próprias águas do mar, sempre, por toda a parte como doença crónica, como afecção incurável do nervo acústico, a audição do mesmo trecho de musica! O que deve levar paulatinamente à loucura.

Que o Observatório se compadeça do infeliz príncipe condenado a tão incomportável flagelo! O Observatório há-de ter conhecimento das contrariedades que amarguram a existência; o Observatório há-de ter faltas de dinheiro, há-de ter constipações, há-de ter dores de dentes, há-de ter calos. O príncipe tem tudo isto, e demais a mais tambem tem hino. Poupemo-lo ao desgosto de o fazer acompanhar pelo seu triste mal às regiões da ciência! Inflijamos-lhe o solo, visto que não há outro remédio, mas perdoemos-lhe por esta vez o hino! Sejamos terríveis, mas sejamos justos! A providência colocou-nos na mão o cornetim. O monarca presta-nos submissamente o seu real ouvido. Não abusemos desse instrumento poderoso e dessa orelha inocente! Compenetremo-nos da tremenda responsabilidade que pesa sobre nossas cabeças! Somos cornetistas, mas somos tambem astrónomos ... Toquemos o Pirolito! E a posteridade nos abençoará."
Eça de Queirós

3 comentários:

Anónimo disse...

Com a sua finíssima ironia, Eça de Queiroz até a mais cavernosa troça convertia em pura agraça! Como longe vão esses tempos e respectivas personalidades, hoje convertidas em rudes e broncos caceteiros! JCN

Anónimo disse...

Corrijo a gralha "agraça" por "graça". JCN

Fernando Correia de Oliveira disse...

http://estacaochronographica.blogspot.com/2010/09/o-relogio-da-republica.html

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