sábado, 23 de outubro de 2010
IMAGENS EM CIÊNCIA
A propósito do recente falecimento do matemático Benoît Mandelbrot, craidor de imagens como a de cima (conjunto de Mandelbrot) recupero um texto meu do livro "A Coisa Mais Preciosa que Temos" (Gradiva):
Algumas imagens ficaram lendárias na ciência. A física atómica começou em 1896 quando o alemão Wilhelm Roentgen, o primeiro prémio Nobel da Física, descobriu inadvertidamente os raios X, ao reparar que uma placa fotográfica ficava impressionada mesmo que não tivesse sido exposta a radiação visível. Uma imagem que ficou famosa foi a da própria mão de Roentgen vista aos raios X (que, em alemão, são conhecidos por “Roentgenstrahlung”, raios de Roentgen). A própria física nuclear começou mais ou menos na mesma altura também com uma imagem casual: o francês Henri Becquerel deixou embrulhado numa película fotográfica um pedaço de minério de urânio e a película, quando revelada, mostrou evidência da radioactividade natural do urânio. O núcleo atómico surgiu desta maneira inusitada.
Lembremos ainda, do outro lado da escala do mundo, as primeiras imagens de astronomia recolhidas pela luneta do italiano Galileo Galileo e desenhadas pela mão deste no século XVII: as crateras da Lua, a face manchada do Sol, as luas de Júpiter. Quão longe se estava mas quão perto se ficou das imagens recolhidas hoje pelo telescópio Hubble, que olha, por cima da atmosfera, para tudo quanto é sítio! A astronomia já existia antes do telescópio, mas a astronomia moderna é inimaginável sem o telescópio e as imagens que este prodigiosa e prodigamente fornece.
Nas ciências da vida, ocorreu uma revolução profunda quando apareceram imagens de pequenos e estranhos microorganismos no primeiro microscópio manejado no século XVIII pelo holandês Anton van Leeuwenhoek. Onde não havia nada passou a haver um jardim zoológico de criaturas nunca antes imaginadas. A realidade microscópica era mais estranha do que a mais delirante ficção.
As novas imagens criadoras de ciências novas foram possibilitadas por instrumentos como os telescópios e microscópios, que trouxeram realidades distantes para o alcance da nossa vista e da nossa compreensão. Ao mostrarem a realidade reduzida ou ampliada criaram uma nova realidade. Questões científicas novas surgiram em catadupa, entroncando nas que já existiam e sendo resolvidas de modo semelhante. E também surgiram questões filosóficas inéditas, como a de saber se as luas de Júpiter ou os micróbios numa gotícula estavam lá antes de terem sido vistos...
Se é certo que outrora e hoje não há imagens sem ciência (basta pensar na fotografia, no telescópio ou no microscópio), não é menos certo que não há ciência sem imagens. Com efeito, as concepções do mundo que os cientistas desenvolvem baseiam-se, mais do que em palavras, equações e outras cifras mais ou menos abstractas, em imagens bem concretas. Um praticante das ciências exactas e naturais necessitará do rigor do formalismo matemático para fixar melhor o seu pensamento e demonstrar as suas intuições imediatas, mas as suas ideias desenvolvem-se por via de regra com base em imagens bem nítidas. As previsões dos cientistas exigem previamente visões.
Estas imagens ou visões prévias são obviamente de dois tipos – imagens exteriores e imagens interiores – conforme se formem num suporte material, como uma película fotográfica, ou forem simplesmente projectadas na mente. Podemos falar de imagens reais, no primeiro caso, ou de imagens virtuais, no segundo.
As imagens exteriores necessitam de instrumentos adequados, por exemplo as imagens fotográficas exigem câmaras para serem captadas. Os físicos, por exemplo, recolhem imagens desse tipo na exploração que empreendem do mundo. O mesmo se passa com os médicos, para quem a imagiologia é hoje uma arma indispensável ao diagnóstico mais elementar. Em qualquer desses casos e em muitos outros, é preciso ver para crer, é necessário ver para saber.
Mas os matemáticos e os físicos vivem profissionalmente das suas imagens interiores, das imagens que formam nos seus cérebros. O mais famoso dos físicos teóricos, Albert Einstein, disse um dia que chegou à sua teoria da relatividade restrita imaginando como seria o mundo visto a partir de um raio de luz, isto é, se ele próprio fosse “a cavalo” num fotão ou grão de luz. Imagens mentais estão presentes mesmo nos raciocínios mais abstractos, por exemplo quando os físicos pensam em partículas como “cordas num espaço-tempo a 11 dimensões” ou “quarks coloridos e com charme”. Imagens deste tipo ganham realidade no mundo material quando são rabiscadas nas costas de um envelope para o próprio as ver melhor ou riscadas num quadro negro para transmitir um argumento a um colega.
Hoje em dia existem, porém, outras imagens para além das exteriores e interiores. São obtidas por uma terceira via, que surgiu entre a ciência experimental e a ciência teórica tradicionais. São as imagens produzidas pelo computador. São, por um lado, imagens exteriores: têm um suporte físico que é o ecrã do monitor ou o papel da impressora. Mas, por outro lado, reproduzem uma realidade imaginada, mental, seguramente do domínio do imaterial. De resto, os computadores criaram também, tal como o telescópio e o microscópio, uma ciência nova: as ciências da complexidade. Poder-se-ia chamar ao computador o “complexoscópio”... Ficaram ao alcance da ciência, ao nosso alcance, realidades que pareciam antes demasiado complicadas para nós e, por isso, demasiado afastadas de nós. Por exemplo, as belas imagens fractais criadas pelo matemático francês de origem polaca Benoît Mandelbrot baseiam-se no computador e seriam inviáveis sem esse instrumento. Ao apareceram, deram origem a uma matemática e a uma física novas ou, melhor, renovadas.
O computador permite definir melhor imagens interiores e projectá-las para o exterior (a arte de programação confere vida a modelos do mundo real ou de mundos fictícios). A simulação permite compreender o mundo na medida em que ele é imitado por uma máquina que controlamos. Por outro lado, permite tratar imagens exteriores e, com isso, proporcionar ou refazer imagens interiores. O real e o virtual aparecem inextrincavelmente ligados.
As imagens artificiais do computador podem ser mais ou menos realistas. Porém, o computador moderno permite um tipo de imagens radicalmente realistas, no sentido em que podem enganar os nossos sentidos. Na realidade virtual, que é disso que estamos a falar, mundos de imaginação são transmitidos ao cérebro como coisas concretas, por intermédio do capacete e luva de dados. O imaginador “entra” na coisa imaginada. O virtual torna-se real porque é percebido e vivido como tal (questões filosóficas muito interessantes brotam deste paradoxo...) Se olharmos para a história, vemos, em momentos cruciais, a ciência renovar-se a partir de imagens surpreendentes. Com as novas imagens da realidade virtual, a ciência estará a renovar-se mais uma vez. Sempre baseada em imagens, a nova ciência é a continuação da velha por outros meios.
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