domingo, 17 de outubro de 2010

A Mente Moral

Marc Hauser é um cientista da cognição que se dedica ao estudo da cognição em primatas, procurando uma compreensão da evolução da mente. Foi também, até agora, uma das estrelas mais cintilantes da Universidade de Harvard por se ter dedicado a abordar conceitos como a evolução da moralidade. Publicou mais de 200 artigos em revistas de muito elevado impacto, como a Science e a Nature, e recebeu Young Investigator Award da National Science Foundation americana.

Disse foi, porque Marc Hauser foi há pouco considerado culpado de falta de ética científica pela sua própria universidade. Uma comissão nomeada pelo Reitor da Universidade de Harvard, analisou e passou a pente fino a investigação de Hauser, durante três anos, analisando todos os trabalhos desde 2002 e chegou à conclusão de que Hauser violou os princípios da conduta científica em oito situações. Três correspondem a artigos publicados e as restantes cinco a material em submissão ou de relatórios internos. Um dos artigos publicados, na Cognition, foi retirado, outro foi corrigido e o terceiro, na Science, está em discussão com os editores.

Isto foi particularmente perturbador para mim que tinha Hauser em grande consideração. Era um dos grandes cientistas da cognição. Em 2003 mostrou (Proceedins of the Royal Society) que pequenos primatas tamarins, ou Saguis-de-cabeça-branca, eram capazes de ter uma atitude diferente para outros animais da mesma espécie consoante eles os tivessem ajudado antes ou não – tendiam a ajudar mais os que lhes tinham prestado ajuda antes –, levantando questões muitíssimo interessantes sobre a evolução de conceitos éticos. Este artigo não foi alvo de críticas.

Um breve parêntesis aqui:

[A ideia feita mais comum é a de que a ética será exclusivamente humana, porque apenas nós somos seres racionais capazes de ter ética. Além de que a ética seria um produto eminentemente cultural. Passemos de lado o atestado de estupidez a nós próprios ao considerar que somos os únicos animais racionais – como se os outros fossem autómatos sem pensamento (pensem nisso quando observarem o comportamento do vosso cão e já agora leiam o excelente ‘Livro da Consciência’ de Damásio). E se não for exclusiva? Se tiver bases mais profundas presentes em culturas de outros animais?]

Mas outros trabalhos foram considerados contendo erros intencionais que conduziram a conclusões incorrectas, de forma intencional.

O que apurou a investigação de facto? Que Hauser manipulou a informação em várias situações (oito), quer na codificação/interpretação dos comportamentos observados, quer no seu tratamento estatístico.

O que sucedeu? Numa das experiências para determinar se os saguis tinham respostas diferentes perante discurso humano normal ou manipulado, com o objectivo de saber se eram capazes de reconhecimento de padrões vocais, Hauser e o aluno que fez as experiências codificaram os comportamentos dos animais, a partir de vídeos gravados das experiências. Esta prática comum visa garantir que não há enviesamentos na observação do comportamento. É comum os investigadores guardarem as cassetes para posterior inspecção por outros, se solicitado. Desta vez os resultados de Hauser indicavam um efeito e os do aluno não. Este propôs que os vídeos fossem visionados por um terceiro observador independente, o que Hauser recusou. O aluno fez isso sem o seu conhecimento e os resultados entre os alunos foram idênticos. Quando abordaram o assunto no laboratório com outros alunos, ficaram a saber que esta não era a primeira vez que isso sucedia, o que os levou a denunciar a situação à Faculdade.

Hauser foi considerado o único responsável pelos enviesamentos de interpretação.

Hauser tinha a tendência para abordar assuntos difíceis e potencialmente polémicos: evolução da linguagem, evolução da moral. Esta é também uma forma de conseguir muita visibilidade. Mas a pressão para publicar resultados surpreendentes terá sido demasiada. Ou então ele convenceu-se de que estava certo. Mas os resultados ainda não concordavam com ele. E ele não tinha tempo a perder...

Recentemente Marc Hauser publicou Moral Minds: How Nature Designed Our Universal Sense of Right and Wrong. Eu, que adquiri o livro e o comecei a ler, estou agora num dilema moral: confiar ou não no pensamento dele? É caso para dizer que faltou a moral a quem tanto queria dissecá-la.

E agora? Bem, a dúvida alastra a todo o seu trabalho, apesar de apenas se terem encontrado falhas em alguns dos muitos trabalhos analisados e muitas das suas experiências terem sido replicadas por outros com resultados concordantes.

Entre os cientistas da cognição perpassa um arrepio com receio da má fama que Hauser possa trazer a uma área de estudo tão sólida e controlada experimentalmente como outras, mas mais susceptível por envolver comparações connosco.

Grandes cientistas da cognição como Gordon Gallup, ou Franz de Waal, estão furiosos com Hauser e não lhe perdoam a sua falha de conduta.

Para já a Universidade de Harvard concedeu-lhe uma licença sabática e estou convencido de será convidado a sair. Uma falha destas é demasiado grave para ser limpa por uma retractação pública.

Outros colegas estão a preparar-se para replicar algumas das suas experiências e confirmar ou não os resultados. E acho que é mesmo isso o que há a fazer.

5 comentários:

Anónimo disse...

Sem querer colocar em causa a seriedade do assunto, não deixa de ser irónico que um investigador na área da ética aja de uma forma tão pouco ética.

Este exemplo, embora pela negativa, é também importante para que o leigo perceba que a validade do conhecimento científico depende de um código de ética que orienta os protocolos de investigação.

Saúdo e regresso dos textos de pendor mais científico.

Anónimo disse...

A fraude científica é mais lata do que Hauser, infelizmente:

http://www.theatlantic.com/magazine/print/2010/11/lies-damned-lies-and-medical-science/8269

joão viegas disse...

Bom, eu não passo de um humilde jurista, leigo por conseguinte, mas ainda assim com grande curiosidade pela matéria tratada. Duas perguntas occorrem-me :

1. Hauser não tera sido vitima de um eviezamento provocado pela vontade dos saguis de não ferirem a sua susceptibilidade ao pôrem em causa a pertinência das suas hipoteses ? Se fôr o caso, eis o que demonstra que eles são dotados de tacto, o que me parece indicar que obedecem a alguns padrões morais...

2. O que me parece perfeitamente demonstrado, em contrapartida, é que até dentro da mesma espécie, os individuos não obedecem aos mesmos padrões. Assim, enquanto Hauser demonstra ser capaz de violar regras éticas (o que indicia uma plena aptidão à regra moral), ja os alunos dele não foram capazes. Portanto é tudo um pouco mais complexo...

Desculpem, eu sei que isto é sério, mas não resisti.

José Meireles Graça disse...

O link que o anónimo indica merece a visita ... estou varado.

Shurikata disse...

Belo post.

Creio que há cada vez mais pressão para a publicação cientifica. Invariavelmente, descuram-se os erros que ao principio são menores e com o andar das coisas, ou se tentam tapar com outros erros, ou acaba tudo por ser descoberto.

Nos meus últimos 3 anos de investigação, abordei um tema muito interessante para os "Biotecnologos" Vegetais deste planeta. A embriogenese somática de coníferas. Antes de mim, já muitos lá tinham andado de volta e nem eu nem ninguém chegou a conclusão alguma. Ora, à coisa de 1 ano, apareceu um jovem no Canadá que "teoricamente" havia descoberto a forma de produzir embriões de coníferas a partir de folhas das mesmas. Toda a gente da área se curvou perante a genialidade do rapaz! Mas esse rapaz teve azar... não conseguiu replicar a sua experiência perante um comité cientifico (umas duas ou três vezes). Pode-se dizer que os artigos foram retirados e o nome dele apagado dos livros de história...

Casos deste há aos pontapés. Só acho lamentável que aquelas mentes, capazes de engendrar tamanhos embustes, não sejam capazes de utilizar a sua capacidade mental para fazer avançar a ciência. A necessidade de ter grandes artigos para se poder trabalhar numa boa Universidade também pesa muito nestas decisões... mas acho que não valem a perda.

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