“Um dos maiores males de Portugal, e digamos o maior, é a ignorância. A completa, a perfeita, a absoluta ignorância. Nunca houve em Portugal um ministério que propriamente se dedicasse a dotar o país com um completo sistema de estudos populares.” (Eça de Queiroz, 1845-1900).
No meu último post (08/19/2010), intitulado “Um Novo Testemunho Sobre as Novas Oportunidades”, transcrevi integralmente a experiência de uma formadora com a carne sofrida pelo azorrague de uma nova espécie e mais sofisticada forma de escravatura que encontra expressão em Nietzche: “De quanto se escreve só amo o que alguém escreve com o seu sangue”.
Foi essa experiência descrita sob a forma de anonimato por a sua autora saber, como sabemos todos nós, haver o risco de ser despedida perdendo migalhas de um pão que o diabo amassou. Em boa hora, não se calou. E escrevo em boa hora porque, para Sophia de Mello Breyner, “calar-se equivale a crer que se não julga e que nada se deseja e, em certos casos, isso equivale, com efeito, a não desejar coisa alguma”.
De um dos comentários finais a esse post, com o nickname Vani, transcrevo este pedaço de prosa:"Peço por isso que não se julgue rapidamente quem se acende em defesa das NO, porque decerto se trata de um formador ou outro profissional para quem todos os dias são uma luta".
Ora, precisamente por esses dias (todos os dias) serem uma luta constante e sem quartel é que eu entendo ser um dever de cidadania dar a conhecer publicamente o que passa nas Novas Oportunidades. Esta luta não se deve circunscrever aos respectivos formadores. Bem pelo contrário. Todos devemos dar um contributo para que as Novas Oportunidades não sejam, como até aqui, com possíveis excepções, uma verdadeira fraude educativa em que os coveiros do sistema educativo põem as rotativas a funcionar para passar diplomas que fazem cumprir a ambição governamental de todos os portugueses se encontrarem habilitados com o 12.º ano, ainda que só para fins meramente estatísticos ou, como é uso dizer-se, para inglês ver.
Em dever de cidadania, contra a informação oficial, que pretende convencer a opinião pública com a bondade das Novas Oportunidades, urge tomar em mãos individuais uma contra-informação bem documentada com exemplos de quem conhece a “casa” por dentro. De há muito, não querendo deixar o crédito das Novas Oportunidade por mãos alheias, desdobram-se os seus mais directos responsáveis na sua propaganda como, por exemplo, nos deu conta um artigo do Diário de Notícias (06/09/2008), com um título que pretende ser de júbilo nacional” 15% da população sem secundário já estão no secundário”, para transmitir, urbi et orbi, palavras proferidas por José Sócrates em altura solene: “É dos programas mais importantes lançados nos últimos anos em Portugal e é decisivo para que o País vença a batalha da qualificação” .
Por seu turno, a então ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, sobre a empregabilidade dos seus diplomados afirmou que “ainda não há dados mas que está em curso um programa que visa, entre outras componentes, avaliar o impacto [das Novas Oportunidades] no mercado de trabalho e no percurso profissional das pessoas”. Ora, acontece que as pessoas que frequentam as Novas Oportunidades já estão inseridas no mercado de trabalho. Quem o diz é o próprio Primeiro-Ministro no “Guia de Acesso ao Secundário”: “É por isso que a iniciativa Novas Oportunidades assume uma estratégia nova – prioridade à formação de base dos activos – e define objectivos exigentes: qualificar 1.000.000 activos até 2010”.
Ou seja, um milhão de votos não é oportunidade que se desperdice para efeitos eleitorais! Desta forma, as Novas Oportunidades correm o risco de transformar, por exemplo, um belíssimo pedreiro num péssimo engenheiro de obras feitas… nas garras do desemprego, esse flagelo do nosso tempo e dos dias de hoje em Portugal.
Por outro lado, qual cavaleiro andante em defesa da sua dama, Valter Lemos, antigo secretário de Estado da Educação, hoje Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, nesse declarado e publicitado dia de contentamento nacional “perante centenas de pessoas”, duas delas sobraçando pastas ministeriais, fez a entrega e o louvor de centenas de canudos de Novas Oportunidades distribuídos na ocasião em imitação de pompa académica de vetustas tradições universitárias. Tempos volvidos, em Castelo Branco, esse mesmo Valter Lemos a jogar em casa, uma casa de que foi professor da Escola Superior de Educação local, fez um discurso caloroso em defesa das Novas Oportunidades ,“o sonho da vida dos diplomados”, sem se referir ao pesadelo para o país de “mais de 400 mil terem recebido diplomas” que atestam, em meia dúzia de meses, uma espécie de milagre de multiplicação de diplomas de equivalências ao 12.º ano do ensino secundário. E, desta forma, cometeu a injustiça de não reconhecer o facto do respectivo ensino secundário regular ser um dos poucos baluartes da exigência do nosso decadente sistema de ensino oficial em que no próprio ensino superior privado ou mesmo oficial “há muitos cursos da treta”, na opinião do ex-bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando Santo (Revista Sábado, 15 a 21 de Abril de 2010).
Endireitar este estado de coisas, embora possa parecer estarmos perante a impossibilidade de endireitar a sombra torta de uma vara, está nas mãos da sociedade portuguesa e, principalmente, dos formadores das Novas Oportunidades em denunciar o que por lá se passa até porque, segundo George Orwell, “a liberdade é o direito de dizer às pessoas aquilo que elas não querem ouvir”.
Ainda mesmo que os anunciadores de que o rei vai nu sejam obrigados a não se assumirem à luz do dia para não perderem um emprego de tarefeiros que muito exige e pouco dá em troca. Seja como for, é chegada a altura de contrariar o triste fado de um país, herdado do século XIX, em que “um dos maiores males, e digamos o maior, é a ignorância. A completa, a perfeita, a absoluta ignorância”. Como diziam os deputados do vintismo, "nunca mais aprendemos"!
2 comentários:
Excelente post!
Caro amigo,
Há já algum tempo que não comento os seus artigos, mas fa-lo-ei agora, infelizmente, sob anonimato por razões que rapidamente entenderá.
Apresentei currículo e fui consagrado em Diário da República como Avaliador Externo dos Centros de Novas oportunidades. Em Lisboa, em reunião geral, de expectantes crentes como eu, disseram-nos que éramos a pedra angular do sistema. Disseram isto instados por assistentes que já conheciam da poda e já tinham visto o tombo. Mais disseram, após a apologia da coisa,que nos competia, a nós avaliadores, zelar pela idoneidade do processo. Que quando algo corresse mal se mandava rever, apreciar, sugerir, talvez, novas competências mais elásticas...
Assisti a quatro ou cinco cerimónias públicas de "defesa/apresentação" (já consumada, quando chega a esse estádio de desenvolvimento) do trabalho dos formandos adultos. O que vi e ouvi de todos (formandos, formadores e até do avaliador externo - cheio de dúvidas a deshoras)foi suficiente para me lembrar do Medina Carreira e decidi não comer (nunca) daquela gamela.
Como aqui já disse um formador lúcido, haja um pingo de decência no modo como se desqualificam as pessoas, enganando-as -- e ao país.
Tirando honrosas excepções (que, certamente, existirão), as Novas Oportunidades nem tradução do verdadeiro ensino são; nem calão!: são a certificação total e estatal da incapacidade nacional de acreditar no valor da Educação.
Levem um abraço solidário e triste.
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