domingo, 17 de outubro de 2010

"Não sabem o que é uma emoção"


"Tem uma irritação nos olhos, que a faz estar sempre a tirar e a pôr os óculos de massa vermelha. Interrompe a entrevista para mostrar o papel de jornal que guarda na carteira, com uma fotografia que a imortaliza ao lado de Saramago, frente à Casa dos Bicos, onde será a sede da fundação a que preside há três anos. De voz embargada e de lágrimas nos olhos recordará o homem; irritada e nervosa recordará as críticas daqueles que "não sabem o que é uma emoção".

(Interrompe para mostrar uma foto do La Vanguardia, tirada em 2008, que tem dentro da mala. Não é uma foto linda?, pergunta.)

Percebeu imediatamente que tinham coisas em comum?

O encontro está narrado na "Jangada de Pedra", quando uma mulher e um homem se conhecem e o homem sente que a terra treme. Sabia que a minha vida tinha mudado, não sabia era exactamente o quê.


Mas sente que de facto transformou o homem?


A verdade é que as pessoas quando vão crescendo vão ficando mais fechadas, distantes, antipáticas, aborrecidas. No caso do meu marido foi tudo ao contrário, mas não por minha causa. Nunca perdeu a curiosidade. Todos os dias tinha vontade de experimentar, aderiu às novas tecnologias, recebia pessoas em casa. Era uma pessoa viva, dinâmica. A cada dia era mais aberto. Estava a chegar à linha pura, ao caminho da perfeição."
Este é um excerto de uma entrevista muito interessante de Pilar del Río ao jornal "I", sobre ela própria e sobre o falecido matido, José Saramago.
Eu pessoalmente descobri Saramago muito tarde.
Descobri-o por acaso, com os dedos, na mala da Martha.
E roubei-lhe o livro.
Um livro que pouca gente menciona quando se fala de Saramago: "A Viagem do Elefante".
Descobri um autor genial.
Tive de ler tudo o resto.
Não porque fosse obrigatório.
Mas porque Saramago coloca sentimentos na escrita como ninguém, escreve como se tudo lhe saísse em jorro pelas pontas dos dedos, e é tão profundamente genuíno e frontal que torna a leitura dos seus livros uma enorme aventura de partilha e reflexão.
Saramago é um autor genial que está na história da literatura mundial por mérito próprio: e que mérito! Mas, acima de tudo, ele era um homem, filho, pai, marido, activista. Tinha a sua visão do mundo muito pessoal e marcada, e por isso discutível.
Não é preciso concordar com Saramago.
Eu não concordo com algumas coisas (com cada vez menos coisas, por sinal).
Mas não ser capaz de o ler com a atenção e profundidade que a sua obra merece revela uma abertura de espírito confrangedora e triste.
Pior.
Utilizar as suas posições pessoais sobre política, sobre organização social, economia, etc., para denegrir a sua obra literária é um sinal de intolerância inaceitável no século XXI.
É, como diz muito bem Pilar del Río, "não saber o que é uma emoção".
Eu tenho um ENORME orgulho de ser do mesmo país que José Saramago e de ter tido o privilégio IMENSO de o ter encontrado, naquele Verão de 2009 em viagem com um elefante, e de o ter descoberto, finalmente, para sempre.

PS) Aníbal Cavaco Silva não foi ao funeral de Saramago. Segundo Pílar, foi digno, e não deveria ter ido. Discordo. Percebe-se porquê, certo? Eu teria ido, teria dado um abraço a Pilar. Mas eu, depois de ter descoberto Saramago, teria ido em privado a Lanzarote e dado um abraço a Saramago e dito simplesmente: "eu sei o que é uma emoção". E ficava entre nós.

1 comentário:

Bartolomeu disse...

Concordo na generalidade, com a análise que J. Norberto faz, da personalidade literária de Saramago.
Concordo com a afirmação final de Pilar: "Estava a chegar à linha pura, ao caminho da perfeição".
A acuidade, a forma clara, directa e transparente com que Saramago traduzia as observações pessoais que publicava, provocam em nós, leitores, a necessidade de o ler.
Troquei alguma correspondência com Saramago, a que, pela ocupação do tempo de que dispunha, demorava em responder. Sempre que esse atraso se verificava, iníciava da sua carta-resposta, escrevendo; "Responder, quase sempre, responder a tempo, quase nunca. Nem mesmo para agradecer, como manda a urbanidade e já devia estar feito..."
Numa das cartas que lhe enderecei, referi-me ao facto de, em minha opinião, a sua escrita, comportar reflexões que sem estarem completamente construidas, ou estando, deixávam espaço ao leitor, para poder construir as suas próprias. Dando como exemplo figurativo, o estar-se a assistir a um filme, por detrás de uma cortina que nos deixa perceber a cena, mas que nos estimula a descobri-la.
Respondeu a esta abordagem "mística", com a seguinte frase:"Julgo compreender o que quer dizer quando se refere a «algo que está e não está encoberto», mas a isso chamaria eu o «indizível da vida», a que as palavras não conseguem chegar, simplesmente porque não as temos todas»

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