sexta-feira, 4 de junho de 2010
"CORJA MALDITA" DE ALMEIDA VIEIRA
Nem lembraria ao diabo que um escritor português fizesse passar uma obra sua por uma obra dele. Mas foi o que lembrou a Pedro Almeida Vieira, autor de aplaudidos romances históricos (“Nove Mil Passos”, 2004; “O Profeta do Castigo Divino”, 2005; e “A Mão Esquerda de Deus”, 2009; todos do prelo da Dom Quixote, o último com reedição na Sextante do grupo Porto Editora). Tenho dois exemplares diferentes da mais recente obra dele (ou do diabo, que é, de facto, o narrador), “Corja Maldita” (Sextante, 2010): um deles tem a marca tridentina do demónio, distinguindo-se ainda por apresentar duas folhas rasgadas. A outra possui essas duas folhas, uma das quais é uma autorização à moda do século XVIII. A primeira, bastante rara, só pode ser autografada pelo autor na folha final e não, como é costume, no início.
A expressão “Corja maldita” é um dos vários insultos que foram proferidos contra os jesuítas no século do iluminismo. O mafarrico conta a história da expulsão dos jesuítas que se deu em Portugal a 3 de Setembro de 1759, por ordem do Marquês de Pombal, que quatro anos depois ocorreu na França e nove anos depois também na Espanha, para finalmente ser alargada a todo o mundo cristão com a extinção da ordem criado por Santo Inácio de Loiola em 1773 pelo papa Clemente XIV. A data do decreto pombalino de expulsão não foi escolhida por acaso: passava um exacto ano após o atentado ao rei D. José, cuja responsabilidade moral foi atribuída aos jesuítas. A meio desse intervalo de um ano, teve lugar a tortura e execução públicas do duque de Aveiro, do conde de Atouguia e da família dos Távoras, em Belém (no livro, o demo conta como foi, com pormenores tão realistas como horripilantes). E, na véspera dessa execução, foi preso o padre jesuíta Gabriel Malagrida, que haveria de ser executado por garrote em 21 de Setembro de 1761, num auto-de-fé no Rossio, sendo queimado na fogueira da Inquisição. Ele era culpado de ter dito que o grande terramoto de Lisboa em 1755 tinha sido “castigo divino”. Aliás, o romance anterior de Pedro Almeida Vieira, para o qual o mais recente de certo modo remete, conta a história atribulada desse padre italiano que, depois de andar pelo Brasil, teve o azar de ser a última vítima da fogueira do Santo Ofício. O caso correu a Europa e levou Voltaire a dizer que “um excesso ridículo e absurdo junto ao excesso de horror”.
O novo romance histórico distingue-se dos anteriores do mesmo autor por ter, na forma, maior dose de imaginação, mantendo-se o conteúdo fidelíssimo aos factos. Almeida Vieira tem estudado o século XVIII e os seus escritos denotam um bom conhecimento do período. Além de romance histórico, a omnipresença de Satanás, que em interlúdios dialoga com a alma penada do padre Malagrida (o qual quase cesgota o rol de nomes do diabo que vem no dicionário Houaiss!), torna-o uma peça de literatura fantástica, para além de, talvez acima de tudo, ser um escrito satírico-humorístico, uma paródia literária que também assume o género jornalístico uma vez que o autor, com a ajuda de um “wormhole”, é enviado ao século XVIII para fazer a cobertura em directo dos acontecimentos e escreve artigos que, no estilo, são perfeitamente modernos. Assina peças com o seu próprio nome e com engraçados nomes que são anagramas do seu, Mário Ladeira Pevide e Valério Piedade Mira. Por seu lado, Belzebu, porque viaja com facilidade no tempo e no espaço, consegue dar uma pincelada rápida da nossa situação política actual, comparando em linguagem barroca a marcha vagarosa e cheia de solavancos da carruagem do Marquês por estradas alentejanas a essa carruagem que é Portugal na via do progresso. Vale a pena ler um excerto aqui.
Quem foi, de facto, o Marquês de Pombal? Agustina Bessa-Luís foi autora de uma biografia literária do Marquês “Sebastião José” (Imprensa Nacional, 1981), onde descreve assim o personagem:
“Devia ser homem paciente, como são os que aspiram longe, ou ao céu ou ao poder, que é o céu aos quadradinhos. Não era um santo, Sebastião José. Mas não era medonho como às vezes querem mostrar. (...) Não é possível exercer o poder sem que a crueldade intervenha como uma espécie de elixir da longa vida. Ela tem razões para fazer durar o que parece efémero, e que é o poder dos homens”.
Se os romancistas tentam descrever e interpretar o primeiro-ministro de D. José (e, com isso, perceber melhor a nossa actualidade), o mesmo acontece, embora evidentemente com menor liberalidade, com os historiadores. O historiador britânico Kenneth Maxwell juntou ao título do seu livro “Marquês de Pombal” (Presença, 2001) o subtítulo “Paradoxo do Iluminismo”. Descreve os feitos do Marquês. Mas não deixa de incluir a descrição do Marquês antes de ele o ser, feita pelo embaixador britânico em Lisboa nos últimos anos do reinado de D. João V, deixando-nos dúvidas sobre se ele era, de facto, iluminado:
“É uma pobre cabeça de Coimbra como nunca vi outra; sendo tão teimoso, tão obtuso, tem a verdadeira qualidade do asno(...) Só devo dizer que um pequeno génio que tem o intelecto para ser grande génio em um país pequeno é um animal muito difícil.”
Certo é que o Marquês reconstituiu Lisboa, perante a inacção de um rei escondido numa barraca, e reformou a Universidade de Coimbra, por onde ele passou fugazmente como estudante, perante alguma degradação do ensino jesuítico (muito exagerada nos documentos da reforma). Essas marcas ficaram. Mas não menos certo é que, graças ao controlo da Inquisição e da Real Mesa Censória, os livros de Voltaire e de Locke eram proibidos em Portugal no século das luzes. Em contraponto, a auto-propaganda do Marquês foi imensa. O país conservou, em muitos aspectos, as luzes apagadas, e essas marcas também ficaram.
É, por isso, muito difícil - e, além do mais, redutor - dizer quem são os bons e os maus nesta guerra entre o Marquês e os jesuítas. Passados 250 anos após a expulsão dos jesuítas, as feridas não estão saradas pois uma revista dos jesuítas comparava, há poucos anos, os métodos do Marquês com os que foram usados por Estaline e por Hitler. O recente romance do talentoso Almeida Vieira, escritor nascido em Coimbra (e formado em Engenharia Biofísica na Universidade de Évora, que foi outrora dos jesuítas), lê-se muito bem e é mais uma contribuição, sob uma forma nada convencional, para a análise de um período histórico em que Portugal, para o bem e para o mal, foi singular no mundo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
FÁBULA BEM DISPOSTA
Se uma vez um rei bateu na mãe, pra ficar com um terreno chamado, depois, Portugal, que mal tem que um russo teimoso tenha queimado o te...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Meu texto num dos últimos JL: Lembro-me bem do dia 8 de Março de 2018. Chegou-me logo de manhã a notícia do falecimento do físico Stephen ...
-
Por Eugénio Lisboa Texto antes publicado na Revista LER, Primavera de 2023 Dizia o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, que ning...
8 comentários:
Helena Vasconcelos
Excelente texto, este.
Fiz a apresentação de "A Corja Maldita" na Feira do Livro. O que disse, passado à escrita, está em www.storm-magazine - O Lugar da Cultura, se quiserem dar uma vista de olhos.
Obrigada
Cara Helena Vasconcelos
Li agora, com gosto, o seu texto e foi curiosíssimo verificar que ambos falamos de Voltaire, de Agustina e de Maxwell. Há, de facto, coincidências, neste caso justificáveis por estarmos a falar da mesma obra...
Les beaux esprits se rencontrent.
Cordialmente
Carlos Fiolhais
Será que o Marquês teria que ser uma excrescência de Coimbra?!... JCN
"Et les mauvais... aussi"! JCN
Professor, hesitei desde a publicação em lhe dar a conhecer isto http://ponteirosparados.blogspot.com/2010/05/na-razao-inversa-do-quadrado-das.html
mas hoje atrevi-me a deixar-lhe este apontamento.
Não é para publicar, porque não tem contextualidade e, que desse conta (mas sou distraída) não existe endereço electrónico alternativo.
É só para que tenha conhecimento do lado bonito que envolve o pensamento, da mágoa que não atómica, desta espécie de 'partícula-de-Deus' sentimental. E da interrogação ao Físico.
Essa ciência de mistérios calculáveis, de adivinhação em fórmulas precisas.
Será provável que tenha uma resposta?
Não vou partir do princípio que seja impossível; secundando Feynman: " It is scientific only to say what is more likely and what less likely, and not to be proving all the time the possible and impossible."
Aquele é um blogue que muito admiro, de um casal de estupendos professores.
Os seus estilos, embora distintos, são ambos fascinantes para mim.
Espero que não desaprove este, digamos, atrevimento.
:)
COMPANHIA DE JESUS
Em certa altura, contra os reformistas
que pretendiam questionar a Igreja,
um reduzido grupo de humanistas
levanta a luva, entrando na peleja.
Tem como chefe Inácio de Loyola,
um capitão dos tércios de Castela
que abandonara a espada pela estola
e a tenda de campanha pela cela.
Chamou-se a Companhia de Jesus,
cuja missão, que assumem com ardor,
a mente lhes abrasa e os seduz.
Numa entrega total, que os inebria,
ao serviço de Cristo por amor
se fazem mutuamente companhia!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Ao Comentário das 20:14
Por curiosidade tentei entrar no sítio indicado no 1.º parágrafo mas o Google dá-me esta resposta:
* Verifique que nenhuma palavra contém erros ortográficos.
* Tente utilizar outras palavras-chave.
* Tente palavras-chave mais gerais.
Do 'comentário das 20:14' para João Boaventura :)
...pois terá sido qualquer lapso do sistema, mas procurando pelo blogue, não falha:
http://ponteirosparados.blogspot.com/
Aí, é só ir gostosamente descendo até segunda-feira, 17 de Maio, et voilá!
The million dollar question.
Dão-se alvíssaras.
:)
Enviar um comentário