Numa entrevista à World Media, feita por Shoshana Gilbert, e publicada entre nós, em 1993, pelo jornal Público num caderno temático sobre educação, de grande interesse, esse professor mostra uma visão, mais do que crítica, politicamente incorrecta relativamente às correntes "pedagógicas" vigentes nos Estados Unidos. Passados quase vinte anos as suas palavras continuam a ter sentido em Portugal, por isso aqui reproduzimos algumas passagens:
World Media: Acha que o objectivo da educação deve ser o dar aos indíviduos um sentido comunitário mais forte?
Sam Pickering: Ensino há muito anos, mas não sou capaz de fazer grandes declarações acerca da educação. Estou sempre a ler artigos sobre como a educação molda o adulto, e simplesmente não acredito nisso. Acho que mais educação é melhor do que menos educação, e que se lermos livros, aprendemos coisas que enriquecem a nossa vida. Mas os livros não contêm receitas para viver, não resolvem os problemas do mundo. Se você for um ideólogo, a sua literatura torna-se um meio destinado a um fim. Quando ensino Milton, trago à baila as questões contemporâneas para tentar dar vida à literatura, mas vou servir-me da literatura como um meio para falar das questões contemporâneas. Recomendamos livros para crianças com base no que está mal na sociedade e, por isso, recomendamos livros onde há um bairro com uma pessoa verde, uma pessoa cor-de-laranja, uma pessoa branca e uma preta, mas só os recomendamos às crianças. Ora, se, de facto, estivéssemos convencidos de que eles têm poder para destruir os males da sociedade, recomenda-los-íamos aos adultos. Se uma mulher estivesse envolvida num caso de adultério, dar-lhe-íamos a "Ana Karenina" a ler, mas não fazemos isso, damo-los às crianças.
World Media: E o que acha do valor cada vez maior que se dá ao multiculturalismo nas escolas?
Pickering: É bom pensarmos que sim, mas, na realidade, não acredito que funcione. O multiculturalismo é muito superficial. Não sei se ele existe e de certeza que não acredito estou convencido de possa ser ensinado (...) temos tendência a falar de banalidades. O que pode realmente aprende, quando a primeira história que você lê é da autoria de WASP (branco protestante de origem anglo-saxónica) do Mississipi, a segunda é de uma índia americana lésbica, a seguinte, é de um Amã sobrevivente do Holocausto e, outra, de um escritor sul-americano? Fartamo-nos de ler histórias e os garotos não se lembram delas. Nem chegam sequer a afectá-los. Todos os anos, em todas as turmas, os meus alunos embirram com a matéria sobre os americanos índios, fartam-se daquilo, desprezam-nos, não querem ouvir falar dos índios. Em vez de os tornarmos mais sensíveis, maçamo-los. Nunca demos nada sobre os lituanos, os estónios, os ucranianos e, no entanto, temos montes de gente com essas origens.
World Media: Mas acha que a educação desempenha algum papel “mais elevado” no progresso da sociedade?
Pickering: Falamos muito sobre a educação poder curar a sociedade e sabemos que ela não cura. Eu gostaria que ela tornasse as pessoas mais conscientes das responsabilidades que têm em relação aos outros, mas creio que não é isso que acontece. Torna os indivíduos conscientes das possibilidades, mas será que os torna melhores? Veja os alemães: eram provavelmente a sociedade mais educada da época, e veja o que eles fizeram, veja para que lhes serviu que utilizaram a educação. É assustador. Temos uma sociedade educada e não sabemos como convertê-la de uma economia em tempo de guerra para uma economia em tempo de paz, sem que as pessoas percam os seus empregos. Estamos a construir submarinos de que não necessitamos para as pessoas não perderem os seus empregos.
World Media: Ensinar a ser "politicamente correcto" serve a algum objectivo social?
Pickering: Os ideólogos são perigosos. O problema do multiculturalismo é que não se torna multiculturalismo, torna-se etnocentrismo. As pessoas deixam de falar umas com as outras porque ficam nervosas com medo de que a outra pessoa se ofenda. Hoje, quando falamos com alguém de uma raça diferente, a conversa é tão vazia que nunca conversamos sobre as coisas que interessam, pelo receio de ofendermos a pessoa. Costumo dizer à minha turma que até ao fim da aula, vou insultar todos os grupos étnicos e todas as religiões. Na realidade, não faço tal coisa, mas afirmo-lhes isto porque não quero que concordem com o que eu digo. Não me importo que me odeiem, quero que tenham alguém contra quem testarem as suas ideias. Peço-lhes que procurem aprofundar um pouco para além das banalidades. Acho que há muitas outras coisas que são realmente importantes. Um determinado assunto pode ser importante para as classes médias altas, mas não tem nada a ver com os garotos das ruas de Harlem. Temos uma sociedade em que as drogas abundam, a violência abunda, a Sida se propaga, as pessoas estão desempregadas, os miúdos não comem o suficiente.
World Media: Há muitas pessoas que pensam que foi precisamente em relação a esses garotos, que vêm de meios desfavorecidos, que a educação fracassou. Que fazer?
Pickering: Emprega-se a todo o momento, a palavra crise, há anos que se emprega e eu estou cansado dela, é uma litania do tipo “Perdoa-nos meu Deus, perdoa-nos meu Deus”; sempre que alguém faça de educação e quer obter mais dinheiro, é a palavra-chave, hás sempre uma crise. A maior parte das respostas à questão de como educar os alunos desfavorecidos são mero paleio. Estarmos aqui sentados e pontificarmos acerca do que é bom para os bairros pobres seria prova da maior arrogância do mundo. Não sei o que a escolas podem ensinar aos garotos que vivem em bairros em que os amigos deles levam tiros. Não conseguem aprender e eu não tenho nenhum tipo de solução para isso.
World Media: Há quem pense que é necessário mudar o modo como se ensina e começar a juntar, na mesma aula, crianças de origens diferentes. Defendem o ensino "colaborativo" e o deixar uma abordagem centrada no professor. Isso é positivo?
Pickering: É uma grande frase, soa maravilhosamente conseguirmos pôr pessoas com aptidões diferentes a trabalharem juntas. Mas o meu filho está numa dessas turmas e a verdade é que é excelente para os que não são lá muito bons, mas é terrível para os alunos espertos, sobretudo porque acabam por ser eles a fazerem o trabalho todo. É como no atletismo: ninguém quer ficar com os piores atletas da equipa, mesmo que eles tenham outros talentos. Chegámos a um ponto em que a sociedade não quer fazer de juiz. Mas acho que há muitas maneiras de ser “dotado” e penso que os programas educacionais se deviam concentrar mais em identificar o conjunto de talentos que um aluno pode ter.
8 comentários:
Se o entrevistado fosse um professor português realmente preocupado com o ensino e não com ideologias, a entrevista não seria diferente.
No curto tempo que passei na "escola" pública pude verificar que, de facto, os melhores alunos são os mais prejudicados pelo sistema paternalista, romântico, marxista-leninista, rousseauniano, burocrático, acrítico, ternurento, vazio, inócuo, experimentalista, eleitoralista e populista. Por outro lado, este sistema beneficia, descaradamente, os alunos oportunistas, preguiçosos, egoístas, indisciplinados e mal educados.
Claro que estando nós numa economia parecida com uma economia de mercado, alguns (poucos) dos alunos com maiores recursos financeiros conseguem superar tal sistema de "ensino" através da frequência de aulas privadas paralelas, como não podia deixar de ser.
Outro fenómeno curioso (ou talvez não) foi a criação das escolas russas ou de leste em Portugal. Estas escolas nasceram para ensinar as línguas e culturas russa e ucraniana tendo mais tarde optado por preencher o vácuo do "ensino" público português com aulas ao Sábado de Matemática, Física e Ciências. Segundo alguns docentes, estas aulas são uma necessidade, uma vez que durante a semana os alunos de leste brincam nas "escolas" portuguesas e depois ao Sábado trabalham nas escolas russas ou de leste.
Esta frase é deveras importante e acho que a devo sublinhar: "os alunos TRABALHAM nas escolas russas".
Em Portugal, alguma vez se ouviu a expressão: "Os alunos TRABALHAM na escola"? O mais próximo que se pode ouvir ou ler é qualquer coisa como: "Os alunos socializam e aprendem brincando na escola"!!!
Quantos amigos nossos se preocupam mais com aquilo que o filho realmente sabe do que com "onde deixo o meu filho"? Não sei se é egoísmo, se é só mediocridade ou uma um pouco de ambos; mas uma coisa eu sei, esta é uma situação explosiva! Porque com recursos humanos qualificados apenas no papel, o nosso empobrecimento tornou-se inevitável e como tal...
Agradeço a profundidade, as reflexões e a mensagem deste artigo que é tão actual.
Gosto deste professor Sam Pickering, pena é que os professores que escrevem por aqui, não se identifiquem muito com as suas ideias.
Citando Sam Pickering:
Estou sempre a ler artigos sobre como a educação molda o adulto, e simplesmente não acredito nisso”
“O multiculturalismo é muito superficial. Não sei se ele existe e de certeza que não acredito estou convencido de possa ser ensinado”
“Falamos muito sobre a educação poder curar a sociedade e sabemos que ela não cura. Eu gostaria que ela tornasse as pessoas mais conscientes das responsabilidades que têm em relação aos outros, mas creio que não é isso que acontece.”
“Temos uma sociedade em que as drogas abundam, a violência abunda, a Sida se propaga, as pessoas estão desempregadas, os miúdos não comem o suficiente.”
“Não sei o que a escolas podem ensinar aos garotos que vivem em bairros em que os amigos deles levam tiros.”
Fim de citação
É muito raro encontrar por aqui a defesa de ideias como estas, mas já as comparam com a ideia de escola do professor Agostinho da Silva?
Ao longo dos 13.000 anos de história nunca a escola estabelecida teve qualquer papel relevante na resolução dos problemas da sociedade no seu tempo, antes pelo contrário, e não me parece que seja agora que venha a desempenhar qualquer papel significativo.
Vivemos tempos de mudança, vamos ter de encontrar novas formas de sociedade e novas formas para a escola. A última vez que foi preciso resolver problemas com a dimensão dos que agora se colocam, inventámos a guilhotina, mas os tempos eram outros.
Obrigado professora Helena Damião por tão refrescante post.
Caro José Gabriel,
Será que podia indicar a que "professores que escrevem por aqui" se refere?
Eu sou professor e identifico-me com a generalidade das ideias referidas no "post" assim como com a extensão/transposição feita para a realidade portuguesa por Fartinho da Silva.
O que se tem feito na escola pública, em Portugal, é fundamentalmente ideologia barata. Ou melhor, cara, demasiado cara, exorbitantemente cara...
E pagam-na com língua de palmo sobretudo os (mais) pobres. E o país, que é um país de pobres, em todos os sentidos...
"Ao longo dos 13.000 anos de história nunca a escola estabelecida teve qualquer papel relevante na resolução dos problemas da sociedade no seu tempo, antes pelo contrário, e não me parece que seja agora que venha a desempenhar qualquer papel significativo."
Nunca não diria. Quase nunca.
A escola serve apenas para impor a visão actual do que são as normas sociais. Por isso esta velharada se insurge contra as palhaçadas de hoje sem nunca sequer pensarem nas palhaçadas do seu tempo.
Cada época, cada palhaçada.
Meus caros.
Aqui vai a lista dos que eu considero "professores que escrevem por aqui"
Alexandra Azevedo (classicista)
Carlos Fiolhais (físico)
David Marçal (bioquímico)
Delfim Leão (classicista)
Desidério Murcho (filósofo)
Helena Damião (pedagoga)
Jorge Buescu (matemático)
José Fragata (médico)
Norberto Pires (engenheiro)
Nuno Crato (matemático)
Palmira F. Silva (química)
Paulo Gama Mota (biólogo)
Rui Baptista (professor)
Sofia Araújo (bióloga)
Agradeço que me indiquem em que post os professores acima defendem as ideias do professor Sam Pickering aplicadas nas nossas escolas ou na nossa educação.
Abraço,
"Sam Pickering [disse]: Ensino há muito anos, mas não sou capaz de fazer grandes declarações acerca da educação."
Aliás é uma pecha o uso distraído do paradoxo e da contradição, porque afinal Pickering acabou por fazer grandes e pequenas declarações sobre a educação, sobre as quais pedagogos, educadores, psicólogos, filósofos e sociólogos, também já teceram sobre a matéria.
Muitos dos comentários ínsitos nos inúmeros posts lançados neste blog, expuseram as mesmas ideias aqui expendidas, com ou sem ideologia, porque Pickering também é um ideólogo contra outros ideólogos. Mas aqui a ideologia funciona como uma etiqueta.
Simplesmente já esquecemos o que ficou para trás.
Quando a Ana diz:
"Agradeço a profundidade, as reflexões e a mensagem deste artigo que é tão actual",
porque continua a abordar um tema já aqui bastante escalpelizado, mas que a memória vai esquecendo ou obliterando, por cansaço ou desânimo de uma luta que perdura desigual.
Embora a educação seja o núcleo duro de Pickering, a ideologia é apenas o meio de transporte de que se serve para articular os argumentos que uma simples entrevista permite.
De novo nada trouxe ao que a Helena Damião, e muitos comentadores, já aqui têm escrito.
Pickering escreveu de uma maneira diferente da de Helena Damião e da de muitos comentadores.
Ou, como dizia Pascal:
"Qu'on ne dise pas que je n'ai rien de nouveau: la disposition des matières est nouvelle: Quand on joue à la pomme, c'est une même balle dont on joue l'un et l'autre, mais l'un la place mieux."
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