segunda-feira, 21 de junho de 2010

ZERO A ZERO, OU O VALOR DO VAZIO


Nova crónica, em versão revista, de António Piedade, antes saído no "Diário de Coimbra" (na imagem o sorriso de Gioconda com 0 e 1):

Dois conjuntos numéricos encontram-se e, numa sobreposição, dois zeros falam entre si:

- “Não vales nada, és um zero à esquerda”,

diz o zero dos milhares, pertencente a um sistema de numeração posicional, para o zero de um eixo ortogonal. Responde este:

- “Estás completamente enganado, não percebes que eu sou essencial à simetria deste eixo? Tenho sempre valor pois tudo se refere em ralação à minha posição. Sou o tudo e o nada. E tu, caro zero real, tem cuidado: Mudam-te de posição e tu é que passas a ser descartável!

Zangado, com uma sobrancelha nos milhões e um pé nas centenas, o zero posicional avança com tudo o que tem:

- “Caro zero ortogonal, andas pelo e és vazio, por mais que possas ser derivado e integrado. E mesmo podendo seres uma referência, és um ponto vazio do tudo. Se não fosse o vazio, não valias nada.

Retorque o zero entre negativos e positivos:

- “Caro zero milhar, não te exaltes, pois vales, como eu, pela posição que temos. Eu estou sempre aqui. Tu bailas de valor consoante a aritmética que te façam. Coopera comigo, antes que sejamos resolvidos numa qualquer transformada ou tabuada. Lembra-te que sem nós, os zeros, pouca aritmética se poderia fazer. Nós é que damos sentido aos inteiros, e sem nós não há negativos! E sem negativos, os opostos positivos não se podem envaidecer por, ilusória e aparentemente valerem mais. E o que dizer dos cálculos integral e diferencial dos senhores Newton e Leibniz? Sem nós, o primeiro não teria teorizado a gravidade! E que dizer da teoria atómica? Como é que aqueles senhores, os físicos e os químicos, poderiam compreender o vazio cósmico e atómico, suporte de toda a matéria e energia? Une-te a mim, zero milhar, sem nós a noção de infinito seria uma mera abstracção! Sem nós as mentes humanas só olhariam numa direcção e não teriam horizontes infinitos! Ficariam lá no mito da caverna platónica, ah, ah, ah! Não vez que até tiveram de “deitar” o 8 quando te utilizaram como divisor!? Por outro lado, todos os números inteiros encontram a sua infinitude quando são por nós divididos! E não podem ignorar-nos: tornam-se zero quando por nós multiplicados! São os mesmos quando por nós somados ou subtraídos. Pois não “vês” que qualquer número pode ser representado com a nossa presença na adição e na subtracção e que somos nós lhe damos valor acrescentado? Como é que o 1 poderia aspirar a estar de peito altivo a dizer que é vale um bilião, se não estivesse acompanhado dos zeros necessários?".

- “Tens razão, zero ortogonal
”,

assenta o zero milhar.

- “Não tinha visto as coisas com essa resolução toda. E é verdade que até podemos ser muito quentes do ponto de vista térmico. É que mesmo a zero graus Celsius, como se diz, ainda somos muito, mas mesmo muito mais quentes em relação ao nosso primo zero, dito absoluto, que está lá para os -273,15 graus Celsius, bem quietinho abaixo de nós! É espantoso, realmente”.

- “Não tenhas incertezas quanto a isso”
,

continua o zero no eixo.

- “E o que dizer do código binário, base para a transmissão digital, linguagem desses processadores de computação que sustentam os humanos? Nós, os zeros, na companhia do nosso vizinho 1, somos suficientes para, em combinação, transmitir tudo o que os símios avançados quiserem: desde a explosão de uma super nova distante, passando pelo sorriso enigmático da Gioconda do Leonardo”.

- “Mas qual Leonardo, o que nos apresentou na Europa em pleno Renascimento?”,

questiona o zero milhar.

- “Não, meu caro”,

diz o zero ortogonal,

- “O Leonardo de Pisa, que bebeu o zero, de fonte árabe e que, no seu “Liber Abbaci”, fez ver aos europeus seculares que nós somos números com valor aritmético e que, paradoxalmente, também podemos representar o vazio que há em todas as coisas. O vazio abstracto antecâmara do pensamento, da orbita electrónica, indelével a elevar uma sonata de Bach. Foi este Leonardo que apresentou à então mediana Europa, como nos usar de forma apropriada.


- "Mas então, de onde viemos? Dos Gregos? Dos Romanos?”

- “Não, nem Gregos nem Troianos, nem Romanos. Tanto quanto os historiadores sabem, foram os Babilónios, há cerca de 4500 anos atrás, no actual território iraquiano, a primeira civilização que percebeu como somos necessários para posicionar correctamente os valores numéricos que precisavam de representar. Mas a civilização Maia também nos simbolizou. Curioso, não é? Eles, os babilónios que até tinham um sistema sexagenal, ou seja de base 60, em vez do sistema actual, que vingou, que é decimal, ou seja, de base 10”.

- “Bom, de qualquer forma, em qualquer dos dois sistemas, lá estamos nós a servir de base”. “Não tenhas dúvidas. Mas este sistema actual em que tu, zero milhar, estás inserido, e a nossa forma simbólica, tem raízes hindus: e quem nos simbolizou como uma linha fechada foi o hindu Brahmagupta, que apresentou a nossa relação com os outros números que, como nós, são reais”.

- “E o nosso nome?”.

- “Também de origem hindu: vem de shúnya
, que significa vazio entre outras coisas. Depois os árabes, muito afoitos nas coisas dos algarismos, rebaptizaram-nos por shifr. Depois veio a latinização, como não poderia deixar de ser: zephirum, zéfiro, zefro e, no fim, zero”. “É uma longa história, não é? Agora dêem valor a qualquer zero: é que ele tanto pode ser e não ser e tem valor enquanto vazio”.

- “Ser e não ser, eis o zero. Como teria dito Shakespeare se fosse mais inclinado para os números!”.

- “Deixa lá. O Camões, quando rimou a mudança, a ventura e o amor, lá foi implicitamente falando de nós. É que somos mais que paradoxo e vazio: somos o zero.”


António Piedade

8 comentários:

Leonardo disse...

Excelente crônica! Não sou o de Pisa, mas acho que tenho um post aqui sobre o assunto (bem interessante):

http://www.leonardovalverde.com/matematica-vedica-zero-origem/

Obrigado!

António Piedade disse...

Caro Leonardo,

Muito Obrigado pelos seus dois "posts" sobre essa angular obra - śulba sūtra - tão importante para a história da matemática. Diz que já traduziu. Vai publicar? Se sim onde, ou por onde?

Cumprimentos

António Piedade

Leonardo disse...

Caro António Piedade,

Obrigado pelo belo texto. Sim, o śulba sūtra já está traduzido, estou querendo trabalhar com um matemático para publicá-lo. Não sei ainda quando, nem onde. Mas isso acontecerá.

Meus cumprimentos.

Anónimo disse...

Tudo se pode reduzir a zero,
ou seja, a nada, por assim dizer;
mas dele não se pode prescindir
em termos de riqueza e de poder!

JCN

António Piedade disse...

Caro Leonardo,

Espero que essa tradução saia do prelo assim que possível. Nessa altura, agradeço, desde já, que me informe, se ainda se recordar deste pedido, como obter a obra traduzida.

O meu email é antonio@takethewind.com

Obrigado

Cumprimentos gratos

António Piedade

António Piedade disse...

Caro JCN

Agradeço a quadra. É fantástico a capacidade da poesia em dizer tanto com tão poucas palavras. É também e simultaneamente, uma economia de substrato e uma explosão de horizontes sensitivos. Sem a referencia do vazio, do nulo, não há percepção, mesmo que coada, do tudo e fascínio pelo infinito intangível.

Um abraço

António Piedade

Anónimo disse...

Corrijo o 1º verso da minha quadra, a saber:

Tudo se pode a zero reduzir,

JCN

António Piedade disse...

à Versão revista, rebaptizei por "Diálogo entre zeros".

Obrigado

António Piedade

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