Nova crónica, em versão revista, de António Piedade, antes saído no "Diário de Coimbra" (na imagem o sorriso de Gioconda com 0 e 1):
Dois conjuntos numéricos encontram-se e, numa sobreposição, dois zeros falam entre si:
- “Não vales nada, és um zero à esquerda”,diz o zero dos milhares, pertencente a um sistema de numeração posicional, para o zero de um eixo ortogonal. Responde este:
- “Estás completamente enganado, não percebes que eu sou essencial à simetria deste eixo? Tenho sempre valor pois tudo se refere em ralação à minha posição. Sou o tudo e o nada. E tu, caro zero real, tem cuidado: Mudam-te de posição e tu é que passas a ser descartável!”
Zangado, com uma sobrancelha nos milhões e um pé nas centenas, o zero posicional avança com tudo o que tem:
- “Caro zero ortogonal, andas pelo e és vazio, por mais que possas ser derivado e integrado. E mesmo podendo seres uma referência, és um ponto vazio do tudo. Se não fosse o vazio, não valias nada.”
Retorque o zero entre negativos e positivos:
- “Caro zero milhar, não te exaltes, pois vales, como eu, pela posição que temos. Eu estou sempre aqui. Tu bailas de valor consoante a aritmética que te façam. Coopera comigo, antes que sejamos resolvidos numa qualquer transformada ou tabuada. Lembra-te que sem nós, os zeros, pouca aritmética se poderia fazer. Nós é que damos sentido aos inteiros, e sem nós não há negativos! E sem negativos, os opostos positivos não se podem envaidecer por, ilusória e aparentemente valerem mais. E o que dizer dos cálculos integral e diferencial dos senhores Newton e Leibniz? Sem nós, o primeiro não teria teorizado a gravidade! E que dizer da teoria atómica? Como é que aqueles senhores, os físicos e os químicos, poderiam compreender o vazio cósmico e atómico, suporte de toda a matéria e energia? Une-te a mim, zero milhar, sem nós a noção de infinito seria uma mera abstracção! Sem nós as mentes humanas só olhariam numa direcção e não teriam horizontes infinitos! Ficariam lá no mito da caverna platónica, ah, ah, ah! Não vez que até tiveram de “deitar” o 8 quando te utilizaram como divisor!? Por outro lado, todos os números inteiros encontram a sua infinitude quando são por nós divididos! E não podem ignorar-nos: tornam-se zero quando por nós multiplicados! São os mesmos quando por nós somados ou subtraídos. Pois não “vês” que qualquer número pode ser representado com a nossa presença na adição e na subtracção e que somos nós lhe damos valor acrescentado? Como é que o 1 poderia aspirar a estar de peito altivo a dizer que é vale um bilião, se não estivesse acompanhado dos zeros necessários?".
- “Tens razão, zero ortogonal”,
assenta o zero milhar.
- “Não tinha visto as coisas com essa resolução toda. E é verdade que até podemos ser muito quentes do ponto de vista térmico. É que mesmo a zero graus Celsius, como se diz, ainda somos muito, mas mesmo muito mais quentes em relação ao nosso primo zero, dito absoluto, que está lá para os -273,15 graus Celsius, bem quietinho abaixo de nós! É espantoso, realmente”.
- “Não tenhas incertezas quanto a isso”,
continua o zero no eixo.
- “E o que dizer do código binário, base para a transmissão digital, linguagem desses processadores de computação que sustentam os humanos? Nós, os zeros, na companhia do nosso vizinho 1, somos suficientes para, em combinação, transmitir tudo o que os símios avançados quiserem: desde a explosão de uma super nova distante, passando pelo sorriso enigmático da Gioconda do Leonardo”.
- “Mas qual Leonardo, o que nos apresentou na Europa em pleno Renascimento?”,
questiona o zero milhar.
- “Não, meu caro”,
diz o zero ortogonal,
- “O Leonardo de Pisa, que bebeu o zero, de fonte árabe e que, no seu “Liber Abbaci”, fez ver aos europeus seculares que nós somos números com valor aritmético e que, paradoxalmente, também podemos representar o vazio que há em todas as coisas. O vazio abstracto antecâmara do pensamento, da orbita electrónica, indelével a elevar uma sonata de Bach. Foi este Leonardo que apresentou à então mediana Europa, como nos usar de forma apropriada.”
- "Mas então, de onde viemos? Dos Gregos? Dos Romanos?”
- “Não, nem Gregos nem Troianos, nem Romanos. Tanto quanto os historiadores sabem, foram os Babilónios, há cerca de 4500 anos atrás, no actual território iraquiano, a primeira civilização que percebeu como somos necessários para posicionar correctamente os valores numéricos que precisavam de representar. Mas a civilização Maia também nos simbolizou. Curioso, não é? Eles, os babilónios que até tinham um sistema sexagenal, ou seja de base 60, em vez do sistema actual, que vingou, que é decimal, ou seja, de base 10”.
- “Bom, de qualquer forma, em qualquer dos dois sistemas, lá estamos nós a servir de base”. “Não tenhas dúvidas. Mas este sistema actual em que tu, zero milhar, estás inserido, e a nossa forma simbólica, tem raízes hindus: e quem nos simbolizou como uma linha fechada foi o hindu Brahmagupta, que apresentou a nossa relação com os outros números que, como nós, são reais”.
- “E o nosso nome?”.
- “Também de origem hindu: vem de shúnya, que significa vazio entre outras coisas. Depois os árabes, muito afoitos nas coisas dos algarismos, rebaptizaram-nos por shifr. Depois veio a latinização, como não poderia deixar de ser: zephirum, zéfiro, zefro e, no fim, zero”. “É uma longa história, não é? Agora dêem valor a qualquer zero: é que ele tanto pode ser e não ser e tem valor enquanto vazio”.
- “Ser e não ser, eis o zero. Como teria dito Shakespeare se fosse mais inclinado para os números!”.
- “Deixa lá. O Camões, quando rimou a mudança, a ventura e o amor, lá foi implicitamente falando de nós. É que somos mais que paradoxo e vazio: somos o zero.”
António Piedade
8 comentários:
Excelente crônica! Não sou o de Pisa, mas acho que tenho um post aqui sobre o assunto (bem interessante):
http://www.leonardovalverde.com/matematica-vedica-zero-origem/
Obrigado!
Caro Leonardo,
Muito Obrigado pelos seus dois "posts" sobre essa angular obra - śulba sūtra - tão importante para a história da matemática. Diz que já traduziu. Vai publicar? Se sim onde, ou por onde?
Cumprimentos
António Piedade
Caro António Piedade,
Obrigado pelo belo texto. Sim, o śulba sūtra já está traduzido, estou querendo trabalhar com um matemático para publicá-lo. Não sei ainda quando, nem onde. Mas isso acontecerá.
Meus cumprimentos.
Tudo se pode reduzir a zero,
ou seja, a nada, por assim dizer;
mas dele não se pode prescindir
em termos de riqueza e de poder!
JCN
Caro Leonardo,
Espero que essa tradução saia do prelo assim que possível. Nessa altura, agradeço, desde já, que me informe, se ainda se recordar deste pedido, como obter a obra traduzida.
O meu email é antonio@takethewind.com
Obrigado
Cumprimentos gratos
António Piedade
Caro JCN
Agradeço a quadra. É fantástico a capacidade da poesia em dizer tanto com tão poucas palavras. É também e simultaneamente, uma economia de substrato e uma explosão de horizontes sensitivos. Sem a referencia do vazio, do nulo, não há percepção, mesmo que coada, do tudo e fascínio pelo infinito intangível.
Um abraço
António Piedade
Corrijo o 1º verso da minha quadra, a saber:
Tudo se pode a zero reduzir,
JCN
à Versão revista, rebaptizei por "Diálogo entre zeros".
Obrigado
António Piedade
Enviar um comentário