segunda-feira, 14 de junho de 2010

“Neurónios Cinéfilos”


Nova crónica de António Piedade, saída antes n' "O Despertar":

Neurónios são as células do sistema nervoso responsáveis pela transmissão dos impulsos ditos nervosos (em rigor, devemos falar da propagação de potenciais de acção, quais ondas de sais que se propagam entre neurónios). Mas igualmente importante é a sua função integradora e processadora das informações transportadas através desses impulsos, ao longo de milhares de milhões de neurónios que formam as designadas redes neuronais. Em cada neurónio podem convergir em dendrites centenas de ramificações provenientes de milhares de neurónios, localizados em zonas diferentes do cérebro. Do resultado, num determinado momento, do processamento que um dado neurónio faz dos impulsos que a montante lhe chegam, resulta o desencadear de um potencial de acção, impulso nervoso, que envia através de um filamento especializado, designado por axónio, até à jusante de um delta de terminações nervosas que desaguam essa informação, quer a outros neurónios, quer a outras células diferenciadas como sejam células musculares.

Imagine o percurso que é feito pela informação que os seus olhos estão a captar neste momento: da retina dos seus olhos, através do nervo óptico, até diferentes zonas do seu cérebro, para que o seu cérebro descodifique e perceba o que está a ver e ordene, por exemplo, também através de impulsos nervosos que chegam até aos músculos que controlam o movimento dos seus olhos, que estes se devem contrair e relaxar coordenadamente para que as suas duas pupilas convirjam sincronizadamente numa direcção e sentido que permita a leitura e a mudança de linha ou de parágrafo.

Agora pense na tarefa inversa, ou seja, a detecção de movimento. Os seus olhos estão “parados” fixando o horizonte que os banha com informação luminosa (radiação electromagnética) que será “traduzida” para informação química (que envolve uma mudança, reversível, na forma de uma proteína especifica) e, novamente traduzida para impulsos nervosos, enviada até cérebro através de ondas de sais ao longo dos axónios que compõem o nervo óptico. Se nada se mexer no nosso horizonte, o cérebro traduz a informação nervosa que lhe chega para a imagem estereoscópica que é aquilo que estamos a ver. Mas e se algo se move no nosso campo visual? Como é que o cérebro, ou melhor, os milhares de neurónios que dão sentido ao que estamos a ver, percebe que algo se moveu e se isso tem importância, por exemplo, para a nossa segurança? Será uma abelha? Estará a afastar-se ou a aproximar-se? Tudo deve tornar-se ainda mais complexo se nós nos estivermos também a mover. Neste caso, o cérebro terá de ter em conta o nosso movimento ou então poderá iludir-nos e isso poder-nos-á ser fatal.

O trabalho efectuado, ao longo das últimas três décadas, pelos investigadores norte-americanos J. Anthony Movshon e William T. Newsome sobre este processo de processamento e interpretação espacial do que nos chega à retina, foi agora premiado pela Fundação Champalimaud (aqui).

De facto, nós precisamos do cérebro não só para ver mas, e principalmente, para perceber e dar significado ao que vemos. E neste processo complexo estão envolvidos diferentes tipos de neurónios em zonas específicas do nosso cérebro. E estes cientistas identificaram circuitos de neurónios numa zona do cérebro (Lobo Temporal Médio) que são responsáveis por analisar a informação que lhes é transmitida a partir dos olhos e detectar que algo se move no nosso campo visual. São uma espécie de neurónios agrupados funcionalmente num circuito neuronal e que “apreciam” o movimento. Julgo que deverão estar especialmente activos quando percepcionamos um filme (o que vemos é uma sucessão de uma trintena de fotogramas por segundo). São por isso, digo eu, neurónios “cinéfilos”, ou seja, que são particularmente sensíveis e dedicados aos movimentos, mesmo que de longos planos fixos se trate… Mas também são eles que nos iludem relativamente ao aparente movimento do Sol em volta da Terra. E contudo, eles estão fixos, em constelações neuronais no nosso cérebro.

António Piedade

2 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Muito interessante. Afinal o mundo, como o vemos, é uma construção do nosso cérebro. Pelo que é necessária uma grande uniformidade entre todos os seres da mesma espécie, por exemplo nós, para percepcionarmos uniformemente o mundo.
Se conseguíssemos falar com os animais, ficaríamos decepcionados com os toiros porque, afinal, eles nem sequer vêm o vermelho. E as abelhas poderiam rir-se de nós, porque podem orientar-se por radiações que os nossos olhos não detectam...

José Batista da Ascenção disse...

Ó meu Deus! O que os meus olhos vêem no que eu próprio escrevi!
Perante todos me penitencio.

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