segunda-feira, 14 de junho de 2010

Excelsa Bio-Sinergia (2)

Nova crónica do bioquímico António Piedade, saída antes no "Diário de Coimbra" (continuação de anterior sobre o mesmo tema):

Estamos algures e abstractamente, num charco lamacento no nosso planeta, há muitas centenas de milhões de anos atrás. Inúmeras variações de seres unicelulares competiam pela sua sobrevivência. Tinham ao seu dispor diversas moléculas, elementares e compostas que assimilavam como fonte de matérias-primas para os seus processos bioquímicos. A energia geotérmica de um planeta geologicamente ainda muito activo, deveria catapultar uma grande variedade de compostos inorgânicos e orgânicos que alimentavam inúmeras formas de vida celular, muitas delas verificando-se inviáveis na árdua competição. O campo electromagnético terrestre protegia (e protege) as formas vivas de muita radiação cósmica letal. Entretanto, a atmosfera do planeta inicialmente redutora, aumentava a sua concentração em oxigénio molecular, produto de excreção (“lixo” molecular) de bactérias, as cianobactérias, que tinham conseguido utilizar a energia solar em reacções fotoquímicas para, a partir dos abundantes dióxido de carbono e água, sintetizarem os seus próprios blocos de construção e assim ganharem “uma independência” vantajosa na competição unicelular por "alimento". Para além disso, o oxigénio molecular que excretavam para o meio ambiente, revelava-se, para as outras células, uma substância altamente perigosa e destruidora. Ionizado quer pela radiação ultravioleta solar, quer reacções químicas intracelulares, o oxigénio oxidava os componentes celulares alterando-lhe a forma e função.
Neste momento crítico da evolução da vida no nosso planeta a poluição, na forma de oxigénio, causada pelas cianobacterias modelou o futuro. O carácter oxidante e electrofílico do oxigénio progressivamente difundido pelo planeta (o oxigénio é um gás nas condições de pressão e temperatura que se pensa terem se verificado nos últimos milhões de anos na Terra), fez com que só sobrevivessem aquelas células que lhe adquirissem tolerância (ditas hoje ou aeróbias tolerantes) e/ou que dele tirassem algum proveito (aeróbias).

De entre elas, hoje sabemos, a partir de estudos sobre os ácidos nucleicos (ADN e ARN - ver por exemplo: Andersson SGE et al., The genome sequence of Rickettsia prowazekii and the origin of mitochondria. Nature 1998, 396:133-140.) que existiram umas bactérias ancestrais das que hoje designadas por alfa-proteobacterias, que apresentam a capacidade de utilizar o poder oxidante do oxigénio e fazer dele a força motriz para a produção de energia bioquímica.

Análises comparadas dos ácidos nucleicos presentes nas mitocôndrias comprovam que estes organelos das nossas células eucarióticas, descendem daquela linhagem bacteriana. Isto suporta a hipótese endossinbiótica, da bióloga norte-americana L. Margulis (formulada em 1981), para a incorporação de precursores da mitocôndria (ver, por exemplo: Yang D. et al., Mitochondrial origins. Proc Natl Acad Sci USA 1985, 82:4443-4447) no interior das formas ancestrais das nossas actuais células eucarióticas. Repare na vantagem competitiva desta associação primordial: o antepassado do actual organelo mitocondrial, não só reduzia o perigoso oxigénio como fornecia à célula "hospedeira" uma substancial quantidade da tal moeda energética bioquímica de que já falamos: o ATP. Em troca, a ancestral célula eucariótica conferia protecção contra predadores celulares ao seu interessante hóspede e inundava-o de matéria-prima derivada de açúcares, estes produzidos ou sendo constituintes de cianobactérias assim como de outros seres unicelulares potencialmente sujeitos a predação (mais em rigor poderíamos dizer endocitados, ou melhor ainda, fagocitados).

Progressivamente, esta relação de cooperação foi sendo afinada no sentido de uma maior eficiência com benefícios mútuos.

Contudo, isto foi conseguido à custa da perda das identidades originais. É que hoje não conseguimos definir uma célula eucariótica sem nos referirmos como condição a de possuírem mitocôndrias, nem conseguimos encontrar mitocôndrias “naturalmente livres". Esta incorporação das identidades primevas ocorreu profunda e intrinsecamente. Hoje verificamos, que alguns dos genes inicialmente pertença do ancestral mitocondrial foram incorporados no genoma nuclear da célula eucariótica. Isto significa, num exemplo muito interessante, que cerca de uma dezena das proteínas que formam os quatro complexos da cadeia respiratória mitocondrial (a tal que utiliza o oxigénio) são codificadas por genes que se encontram nos cromossomas nucleares! Ou seja, a mitocôndria não consegue “montar” sozinha a sua cadeia respiratória!

E vice-versa. Sabemos hoje que a mitocôndria é um organelo muito sensível ao estado de saúde e á funcionalidade da célula estando envolvida no desencadear dum processo de morte celular programada conhecido por apoptose (é também por apoptose que se formam as fendas que dão origem à abertura da boca, dos olhos, narinas, etc.).

O seu papel chave na bioenergética celular e na determinação do “fado" celular exige uma elevada estabilidade genómica entre o cromossoma circular mitocondrial e os 46 cromossomas nucleares da célula. Pode ser este um dos factores que impõem a destruição selectiva pelo óvulo das mitocôndrias presentes no espermatozóide aquando da fecundação. O resultado final é que herdamos só do lado materno todas as mitocôndrias que possuímos e, portanto, a capacidade de respirarmos oxigénio!

António Piedade

6 comentários:

Anónimo disse...

Excelente post, do melhor que já li por aqui, muitos parabéns.
luis

António Piedade disse...

Obrigado Luís pelas palavras elogiosas.

José Batista da Ascenção disse...

E as figuras são muito bonitas.
De quem será a autoria da primeira?
Porém, reltivamente à segunda, tenho uma dúvida:
Se, ao lado dessa figura, traçássemos uma seta com sentido vertical teríamos representado o tempo, desde a origem da vida, no fundo, até à actualidade, no topo.
A atmosfera primitiva era redutora, isto é, não tinha oxigénio. O oxigénio livre foi uma consequência da fotossíntese realizada pelas cianobactérias. Certo?
Só depois de haver oxigénio livre terão sido seleccionadas bactérias ancestrais com capacidade de o utiizar, as quais passaram a evoluir como bactérias aeróbias.
Se assim foi, as legendas "chloroplasts" e "mitochondria" não deviam estar trocadas, para respeitar a sua ordem de aparecimento no tempo?
Ou estou a ver/pensar mal?

António Piedade disse...

Caro José

O aumento de Oxigénio molecular na bioesfera, tanto quanto podemos inferir pelos dados geológicos (presença "tiras" de óxidos em minérios de ferro em estratos bem definidos), parece ter ocorrido entre 2,6 e 1,6 biliões de anos atrás.
Tanto quanto conseguimos verificar, as alfa-protobactérias provem de uma biosfera redutora, em que o aceitador final de electrões e hidrogeniões seria o enxofre. Como sabe, ainda hoje existem em yellowstone e nas chaminés marinhas, ambientes sem oxigénio ricos em biodiversidade. Por isso obriga aos antepassados das mitocôndrias de terem surgido antes dos antepassados dos cloroplastos.
Por outro lado, se notar bem na figura, temos uma mesma a origem temporal para os ramos legendados com mitocôndrias e cloroplastos. O que a figura sugere é a posterior incorporação de cloroplastos nas plantas como que sugerindo que a endossimbiose com as mitocôndrias precedeu o mesmo fenómeno nas plantas mas com os cloroplastos. Pela figura, poderíamos dizer que seres eucariótas anaeróbios heterotróficos terão "convivido" com bactérias fotossintéticas durante muito tempo antes da evolução das plantas e algas pluricelulares. Não duvido que uma contribuição de um evolucionista e microbiologista nos ajudaria a fazer um quadro mais rigoroso sobre este assunto.
Relativamente à primeira imagem ela é de Hunter Cole e pode ser visitada aqui: http://www.huntercole.org/artgallery/biologypaintings/endosymbiosis.html

Um abraço

António Piedade

José Batista da Ascenção disse...

Muito bem.
Tinha-me esquecido das bactérias capazes de respirar enxofre.
Muito obrigado.

Um abraço.

José Batista da Ascenção

Anónimo disse...

O Dr. António Piedade continua a fornrcer matéria... para os Homeros do futuro. JCN

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