Novo texto de João Boavida.
Há livros que são como cometas: passam nas nossas vidas com grande brilho, causam profunda emoção e deixam caudas luminosas para o resto dos nossos dias. Por isso as grandes obras se devem ler e reler. Mas, como a vida é curta, nunca chegamos a ler tudo o que queríamos, menos ainda a reler tudo o que desejávamos. Às vezes, chegado ao fim de um livro empolgante, releio-o logo de seguida. Fiz isso, por exemplo, com O grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, A obra ao negro, de Marguerite Yourcenar e outros. Mas o mais frequente é voltar de vez em quando e ler algumas passagens, saboreando a felicidade na beleza reencontrada: a Via sinuosa, de Aquilino, A sibila, de Agustina, Tchekov, por onde quer que se lhe pegue, o Lawrence Durrell, do Quarteto de Alexandria, os clássicos russos quase todos e tantos, tantos mais.
Livros haverá, que foram encanto de juventude, e que talvez seja melhor não voltar a ler, para não sofrer desilusão. Suponho que está nesta categoria - mas não quero ser injusto – uma obra que me encantou na juventude, que emprestei a amigos e colegas, em várias saídas, até regressar, por fim, em lastimável estado, e donde a tive de recuperar a engenhos de amor e goma-arábica.
Era um livro de Peréz Lugín, editado pela Portugália, na colecção Romances Sensacionais, com uma capa aos anos cinquenta, mas sem referência ao desenhador nem à data de impressão. Era A casa da Rua de Tróia, adaptado, anos antes, em folhetim radiofónico pela Emissora Nacional.
Passava-se na Galiza, no ambiente estudantil de Santiago de Compostela, nos finais do século XIX. Penso que não é grande literatura, mas o amor pelas Rías Bajas, a pluviosidade de Santiago, a morrinha galega, os amores doces entre Carmen de Castro Retén e Gerardo Roquer y Paz, o ambiente estudantil, fizeram-me lê-lo e relê-lo, detrás para a frente e da frente para trás. Ainda por cima fora traduzido por um Boavida-Portugal, que pensei logo ser ainda meu parente.
Encontrei este nome em algumas crónicas, suponho que no Diário Ilustrado (alguns se lembrarão ainda, em papel cor-de-rosa, e que era distribuído por todo o país em carochas vermelhos e amarelos, numa dinâmica nada conforme a esses tempos portugueses), mas nunca cheguei a confirmar a parentela.
Foi um livro de encanto, para mim, mas não tenho coragem de o reler, pelas razões apontadas.
Há anos, estando eu em Madrid, num hotel próximo da Gran Via, descobri, ali perto, a Calle de los libreros. Uma rua pequena, escura, com muitas livrarias à antiga, estantes em madeira, escaparates envidraçados, livros encavalitados até ao tecto, com patine nos armários e neblina pelos recantos. Daquelas que já vão rareando, mas onde ainda se encontram preciosidades que a comercialização dos sucessos a metro e da literatura às toneladas, dos centros comerciais, vão fazendo desaparecer. Percorri várias delas como quem anda por um mundo perdido e maravilhoso até que, de repente, ao sair duma, dou de caras, no outro lado da rua, a toda a largura da fachada e a toda amplitude do meu ânimo, com La casa de la Troia - librería. Como era possível? O nome dela era o título original da minha encantada A Casa da rua de Rua de Tróia, que tanto me fizera sonhar na passagem da adolescência para a juventude. Imaginem a minha emoção: foi como se, no estrangeiro, encontrasse, ali, na rua, um amigo perdido desde o tempo de escola.
Não é, pois, em vão, que se diz que os livros são nossos amigos - fieis e pacientes. Consultando a Internet vejo, agora, que há toda uma romagem de afectos instituídos, em Santiago e noutros lugares, a partir deste livro e deste título. Não o sabia, mas esta comunhão de amores e sentimentos é uma forma prática de fazer teoria da literatura, e, já agora, uma razão para teorizar sobre a literatura.
João Boavida
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