Por parte de uma personalidade de destaque na vida cultural portuguesa, este sentido e comovente preito de homenagem de Eugénio Lisboa aos seus professores do liceu é bem demonstrativo que um bom ensino exige bons professores, sendo um capital precioso com juros mais do que compensatórios independentemente da época e da situação decorrentes.
Frequentei o liceu de Lourenço Marques entre 1940 e 1947. Foi, posso dizê-lo, uma experiência mágica. E foi também uma festa. Muito do que sou e muito do que depois fui tiveram origem nesses anos de formação e descoberta.
O liceu de Lourenço Marques, de que era nessa altura reitor o inesquecível Eurico Cabral, o Penca, foi um dos mais notáveis liceus do antigo império. Dizia-se, com orgulho e farronca, que havia nele um único professor sem exame de Estado: o António Jardim, o qual, curiosamente, era o professor da famigerada cadeira de Organização Política e Administrativa da Nação.
Havia mestres inesquecíveis e, quanto a mim, inesquecidos. O Reis Costa, o Jaime Rebelo, o Duarte Marques, o Cardigos dos Reis, a Maria Luísa Soares, o Esquível, o Bernardino Gracias (ou Bi Gi), o Álvaro de Matos (vaidosão, falso terrorista, mas dando aulas interessantíssimas de Inglês), o Rosa Pinto, o César Fontes (excelente professor de Ciências Naturais, preocupadíssimo com a dimensão das testas e dotado de uma linguagem forte, estrumada e vicentina), o Vieira Júnior – são alguns exemplos, entre outros que poderia citar.
O Jaime Rebelo ensinava-nos Francês e metia-nos no coração. Como ficávamos amigos dele (ensinava-nos também futebol e canto), tínhamos pudor de o desapontar, se não estudássemos. E, em alguns de nós, o pudor foi tão grande que ficámos óptimos alunos. E era vê-lo, todo pimpão, a ir às provas orais de Francês, no fim do primeiro ciclo, pedir ao examinador que, para nós, “puxasse” nos exames: para podermos brilhar, dizia ele com um sorriso sedutor... assim nos obrigando a arrancar alguns dezoitos não programados.
Em Português, o Jaime Rebelo dava-nos lições minuciosas e alongadas sobre a odiada pontuação. De aí o Reis Costa, língua de prata e viperina, chamar-lhe “o rei da vírgula”. Seria – mas era também um óptimo professor, competente, empenhado, sedutor, e um camarada que amávamos e respeitávamos. Falava-nos de escritores, naquela altura novos e excitantes (quase proibidos ou por aí perto): Jorge Amado, Graciliano, Manuel da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes. Mas lia também a George Eliot (da qual não nos falava). E martelava sabiamente o piano, fazendo-nos cacarejar, com pouco jeito, o Frère Jacques. Era tão bom professor que se tramou: arranjaram-lhe uma transferência compulsiva para a Índia ou para Macau (já não me lembro), e ele, para não ser forçado à transferência, teve que abandonar o posto e ir para o ensino particular. No fundo, a verdadeira razão era que os rapazes do poder tinham imenso medo da influência que o Jaime Rebelo pudesse ter e tinha sobre todos nós: a maioria da rapaziada não era do regime, e ele também não...
O Duarte Marques foi meu professor de Português no terceiro ano, e acabámos por ficar amigos. Mais tarde, já em Lisboa, era eu aluno do Técnico, deparei de novo com o Caçador, como nós lhe chamávamos, já reformado, e desatámos a encontrar-nos e a dar longos passeios aos Domingos. Ele falava-me de Balzac (“Ah, Balzac!”). e eu falava-lhe de Stendhal. O nome de Caçador teve a seguinte origem: tendo, em Portugal, concorrido para um lugar em Lourenço Marques e tendo conseguido ser nomeado, imaginou que o vestuário em África era como nos livros e nos filmes americanos e apareceu-nos no liceu com um capacete de caçador. Era um homem bom, entusiasta e mesmo veemente. Quando lia, no Herculano, ou no Júlio Dinis, uma passagem que particularmente o tocava, repetia-a com vigor, sacudia a cabeça num êxtase dinâmico, e os olhos fitavam o infinito, num brilho de lágrimas. A voz que tão bem sublinhava, em itálico, a passagem privilegiada penetrava em nós com força e dava-nos uma ideia aproximada do que ele nos queria transmitir. O seu entusiasmo comunicava-se prodigiosamente. Deu-me o amor genuíno da literatura, embora quase me estragasse o estilo. Gostava destemperadamente de certos clichés (“E então – cena digna do pincel de um artista –“) e não detestava uma prosa florida, cheia de metáforas, ramalhetes e rodriguinhos. Mas amava sinceramente a literatura e a sua paixão por Balzac tem muito que se diga a seu favor. Acho que estranhava um pouco a minha por Stendhal, mas tinha a cortesia de mo não dizer. Admirava-se só (nunca lhe disse que o Stendhal é que me curou dos floreados e dos rodriguinhos: cortesia por cortesia).
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O Vieira Júnior apareceu-nos no segundo ano de matemática e foi connosco até ao fim do liceu. Era um pedagogo exímio e mostrou-nos, como quem brinca, que a matemática era a cadeira mais fácil e também a mais bonita do mundo. Tinha a pedagogia na ponta dos dedos e na palavra sonora e precisa. Ficámos positivamente viciados. Alguns colegas iam pilhar livros de problemas à Minerva Central como os drogados assaltam as farmácias para poderem tomar a dose que lhes falta. Não ter mais problemas para resolver era um verdadeiro e intolerável inferno. Trocavam-se cadernos de problemas para se ter sempre à mão a dose necessária. O professor de Português e de Latim, quando nos via, pelos cantos, a resolver problemas como quem come bolos roubados, resmungava, enciumado: “Só pensam na Matemática!" Como se isso servisse para alguma coisa...” Quando agora leio nos jornais os resultados apocalípticos nos exames desta cadeira, pergunto-me se já não haverá no mercado alguns Vieiras Júniores que nos acudam. Se não há, porque não haverá? Não será possível voltar a produzi-los?
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O Esquível era a encarnação do homem bom e torturado e do sábio distraído. Às vezes, cansado de não dormir ou atormentado de dificuldades, era visto, em plena rua, a dormitar, exausto, dentro do carro. Era professor de Físico-Químicas e de Ciências Geográficas. Fizera investigação original sobre manchas solares e produzira o primeiro estudo sistemático sobre o clima em Moçambique. Era bom, como disse, mas tinha fúrias sagradas: isto é, havia limites precisos para a sua tolerância. Tinha um código de honra muito claro, e ai de quem o infringisse. Desiludido da República, tornara-se um situacionista sincero e não aproveitador. Mas odiava oportunismos. Um dia em que, à porta de entrada da sala de professores, alguém distribuía propostas para candidatura forçada a membro da União Nacional, o Esquível teve uma reacção violenta; ia tendo uma síncope. Aquelas coisas não se faziam... Embora destemperado, os alunos sentiam-lhe a bondade intrínseca e a inteligência profunda e torturada e tinham por ele um respeito sem mácula. Perdoavam-lhe tudo, até uma certa dificuldade em se exprimir. Até o situacionismo, que, aliás, nunca se exteriorizava e do qual, repito, jamais se aproveitou.
A Maria Luis Soares – a Mamba, não pelo feitio, mais por uma certa postura física – era professora de tudo: imensamente inteligente, versátil e culta, o Penca aproveitava-a para tapar qualquer buraco, quando algum professor se ausentava, de licença graciosa, que chegava a ter duração de um ano. A Maria Luísa Soares ensinava tudo, com vivacidade, amor e competência. A mim, calhou-me em Filosofia, no sétimo ano. Dava-nos o Eugénio Aresta, claro (era o livro adoptado), mas falava-nos, com sedução e brilho, dos grandes filósofos, que nos mandava ler em casa, para apresentarmos, depois, sobre eles, um pequeno ensaio. Foi assim que me pus a ler, para lhe ser agradável, o Platão, o Voltaire, o Schopenhauer e não sei quantas histórias da Filosofia, para meu genuíno gozo e proveito. No final do ano, depois de tanto deboche intelectual, um tanto sobre o anárquico, fui fazer o exame um bocado complexado: tanto gozo intelectual não podia levar a nada de bom. Confiadamente, a Mamba, no último período, que precedia imediatamente o exame, dera-me um dezassete, que não pouco me oprimiu: iria justificá-lo, na prova final? Afinal, o “deboche” rendeu-me um dezoito: a anarquia e o prazer tinham frutificado. Ou: nem só de Arestas vive o homem.
Eugénio Lisboa
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Na imagem: Liceu Salazar da antiga Lourenço Marques.
(CONTINUA)
1 comentário:
O EL não estudou no edifício que se vè no topo, que só foi inaugurado em Outubro de 1952. Ele estudou no velhinho Liceu 5 de Outubro, na 24 de Julho, atrás do qual foi edificado o Liceu Salazar. Após 1952 no edifício foi instalada a Escola Comercial, que ali funcionou até ser demolido no início dos anos 70, para dar lugar a novas instalações. Cumprimentos A B de Melo
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