quarta-feira, 9 de junho de 2010

Miguel Esteves Cardoso, o futebol e a política

“No futebol tudo fica mais complicado através da presença da equipa adversária” (Jean-Paul Sartre, 1905-1980).

É atribuída ao falecido e notável jornalista desportivo Cândido de Oliveira, o “Mestre Cândido”, como era tratado pelo seu muito saber no meio futebolístico, esta análise sobre a instável vida do treinador de futebol que tanto pode estar nos píncaros da lua num dia como ser remetido para as profundezas do inferno no dia seguinte.

Falando do que sabia por experiência própria (foi treinador e seleccionador nacional de futebol), escreveu sobre uma e a mesma pessoa em função das circunstâncias: “O treinador quando ganha é bestial, quando perde é uma besta”.

No Campeonato Mundial de Futebol na África do Sul, pode ser esse o destino que espera Carlos Queiroz, de pouco ou nada lhe valendo o elogio que lhe fez, anos atrás, Carlos Miranda, ao tempo director de “A Bola”, na circunstância emocional de um desporto que desperta paixões de amor e ódios de estimação, quando escreveu: “Carlos Queiroz é um caso de predestinação comparável ao de Mozart que aos quatro anos já tocava cravo e aos cinco ensaiava os primeiros passos da composição”.

Quando da sua nomeação para seleccionador nacional, num post aqui publicado, “O Regresso de Carlos Queiroz" (19/07/2008), dava eu destaque à sua formação e docência académica ao serviço do “pontapé na bola”: uma licenciatura pelo ISEF (actual Faculdade de Motricidade Humana) da Universidade Técnica de Lisboa - tal com José Mourinho, seu antigo aluno – e posterior magistério na disciplina de Opção de Futebol.

Apesar destes pergaminhos académicos, num exercício profissional exercido por práticos na maioria dos casos, dava-me conta da necessidade de Carlos Queiroz ser bafejado por um destino venturoso com a pergunta que fiz no post supracitado:“Não é a bola redonda e o futebol sujeito à sorte e aos azares da fortuna? Seja como for, Carlos Queiroz merece bem um voto de confiança a longo prazo pelo seu passado de grandeza”.

Realizou-se ontem (dia 8) um jogo de preparação para o Campeonato Mundial de Futebol 2010 entre Portugal e Moçambique, com o resultado favorável por 3-0 para a equipa das quinas. Se tivesse perdido este match Carlos Queiroz estaria a esta hora a ser crucificado na praça pública ou mesmo a servir de pasto a abutres do pessimismo nacional que tudo perdoam menos a derrota da equipa do “seu coração”. Neste mesmo dia, foi publicada uma belíssima crónica de Miguel Esteves Cardoso, em “O Jogo”, com o título “Que ganhe Moçambique”.

Trata-se de um texto escrito com a razão acima de uma paixão exacerbada que pudesse desejar para as cores de Portugal uma vitória que se sobrepusesse, a todo o custo, a um passado que, para o bem ou para o mal, irmana Portugal e Moçambique, e vice-versa.

Pedindo desculpa ao seu autor e aos possíveis leitores desta minha descolorida introdução procuro lenitivo na transcrição integral da apaixonante prosa de Miguel Esteves Cardoso que merece ser lida por amantes ou indiferentes do futebol, intelectuais ou simples letrados, enfim, como diriam os brasileiros, “por todo o mundo”. Reza ela:
“Eis a previsão futebológica-sentimental para o Portugal Moçambique de hoje, de acordo com indicadores de “O JOGO”e outros pessoais, mais sanguíneos.

Como fruto de uma união luso-anglicana que teve a sorte de visitar Moçambique em 1971 (com o meu pai) e 1989 (sozinho como um cão), tenho pretensões de adivinhar o que vai na cabeça moçambicano-luso-britânica-sul-africana de Carlos Queiroz.

Queiroz, no Manchester United, conheceu a raça escocesa de Ferguson e a Inglaterra rebelde e orgulhosa de Manchester. O Norte, na Inglaterra, é como o Norte em Portugal. É melhor. Dá cartas. É insubmisso. Mourinho, em contrapartida, apenas conheceu Londres.

Daí que Queiroz não esteja a ser demagógico quando disse que Portugal vai jogar com Moçambique e não contra Moçambique. Seria ridículo se as circunstâncias pessoais de Queiroz não fossem as que são. Queiroz conseguiu apurar a selecção de África do Sul para o Mundial 2002 – uma façanha. Antes disso, foi consultor técnico da Federação de Moçambique.

Se Portugal não se safar neste Mundial, Queiroz poderá vir a ser o seleccionador de Moçambique e, acredito, treinar uma selecção que chegue ao próximo Mundial. Está-lhe no sangue. Moçambique é um país maravilhoso com gente maravilhosa. São dignos e orgulhosos, secos e sérios.

Mal me licenciei (em Manchester, em 1979), escrevi ao Presidente Samora Machel a oferecer os meus serviços. Ele não respondeu – e fez bem, porque, à parte a minha boa vontade, pouco podia fazer pelos moçambicanos. Segui directamente para o meu doutoramento e agradeço-o por isso.

Em 1989, voltei a Moçambique e voltei a ficar muito impressionado (humilhado até) pelos moçambicanos e por Joaquim Chissano. Eram pobres mas não pediam. Eram altivos. Mais aristocratas do que os aristocratas ingleses, Pela primeira vez na vida – mas para sempre – tive vergonha do colonialismo português, fora a luta contra a malária, heróica mas apenas temporariamente ganha.

O meu pai, socialista mas patriota, quando leu a reportagem que escrevi para “O Independente”, escreveu-me uma carta comprida a lamentar a minha condenação dos portugueses em Moçambique, com factos concretos. Mostrei-a a um amigo moçambicano e ele disse logo: 'O teu pai, nesses aspectos, tem razão'.

Carlos Queiroz é de Nampula – que nem sequer é a Manchester de Moçambique. Não interessa. É um moçambicano e um português que conheceu mundo. Treinou os Emirados Árabes. Se tivesse treinado também Israel e o Japão e a China, seria o treinador mais cosmopolita e Benetton do mundo inteiro, de sempre. Falta pouco.

Queiroz avisou que não quer lesões. Quer, mais do que um jogo amigável, um amistoso. Mas sabe também que os moçambicanos, por muito que possam gostar dele, não são verbos de encher. Vão jogar para ganhar, como a Frelimo para o Portugal colonial.

Os jogadores portugueses também são valentes e não os vejo a protegerem-se das lesões. Vão ser desafiados, mais do que pensam. Mas não vão resistir a responder. Portugal pode facilmente perder, mesmo esforçando-se. Se não perder é porque esforçar-se-á mais do que seria sensato.

Angola é um grande país e tem uma grande selecção. Mas, a médio e longo prazo – mesmo esquecendo a magnífica entrevista que Eusébio deu anteontem ao “Guardian”– acho que é Moçambique que vai distinguir-se.

Moçambique é a Inglaterra de África. Conhece a África do Sul (e Portugal) com sangue frio e distância, mas sem reverência. Nunca se deixou abusar. Limitou que tirasse partido dele, por necessidade.

O Mundial 2010, na África do Sul, é futebol mas também é política. O sonho de Carlos Queiroz – de apertar a mão de Nelson Mandela pela segunda vez – é tão bonito e tão certo e tão sentido que até faz chorar os incréus e sabichões, como eu.

Que ganhe Moçambique, com todas as letras”.
Quer Portugal vá longe neste Campeonato Mundial (e porque não encarar a hipótese de o ganhar num país mergulhado numa “apagada e vil tristeza”?), quer seja eliminado na sua fase inicial, Carlos Queiroz, com as suas qualidades e os seus defeitos, com as suas vitórias ou as suas derrotas deve merecer de todos os portugueses igual respeito: nem bestial, nem besta. Apenas humano.

Felicidades para Carlos Queiroz e para a equipa de todos nós!

4 comentários:

harness disse...

muito bom!

Anónimo disse...

Equipa de todos nós, ponto e vírgula. Divertir-me-ei bastante se perder já com a Costa do Marfim.

Rui Baptista disse...

Caro Anónimo:

Cada um gostará de se divertir à a sua maneira. É uma questão de opção. Quanto à Selecção Nacional de Futebol, que irá representar Portugal no Campeonato do Mundo 2010, não ter a sua concordância é outra opção sua.


Permita-me, todavia, que mantenha a minha opção de votos do meu post (alterando apenas as letras minúsculas para letras maiúsculas):"FELICIDADES PARA CARLOS QUEIROZ E PARA EQUIPA DE TODOS NÓS".


Equipa de todos nós - embora se possa discordar que jogue "a" em vez de "b" ou “b” em vez de “c”, etc. - por representar as cores nacionais numa competição mundial que arrasta multidões mesmo que, por vezes, algo de destrutivo surja pretendendo menosprezar uma força avassaladora que opções políticas ou credos religiosos, diferenças rácicas, ou sequer desníveis económicos ou culturais, podem travar e que em muito contribui para a fraternidade humana: o DESPORTO.

jpt disse...

Isto vem atrasado mas ... o bom do MEC quando escreve sobre Moçambique (e aqui repega coisas já há anos escritas) é uma desilusão de pobres lugares-comuns. Mas há que encher o jornal ...

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