sábado, 9 de maio de 2009

“A amizade pela ciência e pela arte”

O texto As duas culturas, da Sofia Araújo, fez-me lembrar uma belíssima expressão do grande professor, pedagogo, investigador, divulgador de ciência e poeta que foi Rómulo de Carvalho: “ciências e humanidades é tudo a mesma coisa”, afirmou ele.

É tudo a mesma coisa, porque tanto as ciências como as humanidades derivam dessa mesma necessidade que temos de conhecer e de manter vivo o conhecimento; é tudo a mesma coisa porque a nossa atitude face ao conhecimento deve ser semelhante em ambas as áreas; é tudo a mesma coisa, porque elas se interligam de forma hamoniosa, uma não encontrando sentido sem a outra.

Sobre esta ideia escreveu maravilhosamente Maria do Carmo Vieira num livro, acabado de sair pela mão da Quimera, que tem por título A arte mestra da vida: reflexões sobre a escola e o gosto pela leitura (páginas 18-20):

“Na aventura da palavra ouvida, ou lida, treinamos a imaginação, aprendemos a tocar com os olhos o que nos seduz, alimentamos a sensibilidade para o Belo, nele incluindo a Natureza, recolhemos experiências das situações vividas pelas personagens, estreamo-las na convivência com o mistério, que é preciso desvendar, actos que estimularão a criatividade e ajudarão a despertar a amizade pela ciência e pela arte.

O que sente o cientista perante a Natureza senão espanto e encantamento? Observando e folheando esse grandioso livro, estímulo da sua curiosidade, o cientista procura, como salientou Galileu, aprender a entender a língua, e a conhecer os caracteres em que está escrito, no intuito de interpretar com rigor aquilo que parecia impenetrável. Também nós, ouvindo quando crianças as histórias de fadas, desabrochamos para a ciência, valorizando a observação e descobrindo quão misterioso, belo e exuberante é o espectáculo da Natureza.

Aprendemos Geografia, acompanhando cavaleiros, príncipes e futuras princesas, e atravessando com eles aldeias e cidades, rios de corrente calma ou turbulenta, montanhas escarpadas, grutas tenebrosas ou planícies infindas, acabando por adormecer ao relento, sob o luar ou uma cúpula de estrelas; ou olhando, também preocupados, o caudal ameaçador do rio que a chuva torrencial engrossou, mas que o barqueiro ousará passar para salvar a princesa; ou ouvindo o uivo arrepiante e cortante do vento norte, que, condoído, se deitará a dormir para não fazer medo à menina, afligida com as tormentosas botas de ferro; ou assistindo, ainda, agradecidos, à bondade da lua cheia que serena a preocupação do cavaleiro perdido, alertando-o para o caminho, tortuoso e cheio de profundos abismos, que terá de percorrer antes do amanhecer. A Botânica surge nas ervas milagrosas que uma fada velhinha vai apanhar a lugar distante, e só dela conhecido, com as quais curará quem encontrar em aflição ou a procurar; também no bosque frondoso e enfeitiçado que é preciso atravessar, em busca de um imponente carvalho milenar que guarda o segredo de um tesouro; como ainda no florir deslumbrante de uma macieira, de cujas flores resultarão belas maçãs, milagrosamente doiradas e com o dom de satisfazer três pedidos. Num esboço de Zoologia, familiarizamo-nos com nomes de pássaros, reconhecendo o canto da cotovia ao amanhecer ou do rouxinol ao chegar a noite, a que se junta o piar de «mau agoiro» da coruja. Marcamos encontro com a Física e a Química, suspirando pela vinda do sol para derreter a neva que prende a perna da formiguinha, que quer «voltar para a sua vidinha», ou que isolou e aprisionou o rei caçador num velho casebre; ou quando presenciamos, também em aflição, o fogo da floresta e desejamos salvar os animais, que fogem assustados e em pânico por causa do fogo asfixiante. Visita-nos a Matemática em alqueires de trigo, arrobas de batatas, dúzias de ovos ou de maçãs mágicas, milhares de moedas de oiro, ou em números mágicos, como o 3, o 7 e o 40. Até a Mitologia nos presenteia a imaginação com monstros que, não existindo, existem e persistem no nosso imaginário: dragões, sereias e bichos-de-sete-cabeças.

O Tempo encarregar-se-á de sustentar e fortalecer gradualmente esse sentimento afectivo pela ciência e também pela arte.”

3 comentários:

Helena Ribeiro disse...

Boa noite Helena Damião:

Agradeço-lhe a generosidade de ter partilhado o seu tempo apresentando informção sobre um livro a não perder pelo interessante tema da ligação Ciência/Arte, com o encanto da personalidade de Rómulo de Carvalho.

Queria saber se posso usar um excelente parágrafo seu, devidamente identificado, para produção de material pedagógico. É sempre estimulante um português actual bem escrito e o exercício irá ser útil para os alunos trabalharem a Citação Bibliográfica, o que, para todos os Amantes da Comunicação, é necessãrio introduzir desde o ensino básico, se realmente queremos recomeçar a qualificar o ensino.

Desejo-lhe um excelente fim-de-semana

P.S. - Pessoal de Lisboa, reparem na exposição de Peter Kogler só até ao fim deste mês...!

carolus augustus lusitanus disse...

Embora o artigo e a própria palestra («démodée» e «ultra-reducionista) de Snow dessem pano para mangas... e reconhecendo a pertinência da questão de Sofia Araújo quanto ao caminho que se está a trilhar com a fragmentação do saber (o tal paradoxo ilimitado das ciências, a esgravatar os ovos da galinha de ouro de um menino (leia-se Humanidade) à procura de se «afirmar» na «realidade» que, ao que parece, lhe vai escapando cada vez mais (embora teorias, axiomas, dogmas, etc., tentem demonstrar o contrário) -- e aqui confrontamo-nos com um grande labirinto: ciências musicais, ciências pedagógicas, ciências jurídicas, ciências documentais (e um nunca mais acabar)... Está-se a falar de quê (ou «está-se» de que lado): ciência ou humanidades (ou ciências sociais, já agora)? (E a arte, onde é que fica?).

Aqui, claro, em vez da [...] total impossibilidade de estas duas culturas [ciência vs. humanidades] se compreenderem [...], responde lucidamente Rómulo de Carvalho/António Gedeão ao dizer que «ciências e humanidades é tudo a mesma coisa»...


[Aparte: não seria preferível estudarmos (mais a fundo) os nossos «cérebros» (que são tão bons como os melhores, diria eu), em vez de se citarem opiniões sectárias (ainda que com algum interesse e ponham o dedo na ferida) -- tal como o fez Helena Damião, e partirmos daí para a reflexão?]

Helena Damião disse...

Cara Helena Ribeiro
Pode usar o que é publicado no "De Rerum", pois, estando publicado, pode ser referido noutros contextos. A frase de Rómulo de Carvalho, que citei de cor, consta numa entrevista que o "Expresso" lhe fez e que, neste momento, não consigo encontrar. Mas, sei que a encontrarei e, nessa altura, teria muito gosto em lha enviar.
Um excelente fim-de-semana também para si.
Helena Damião

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