quinta-feira, 14 de maio de 2009

O projecto “Carte du Ciel”, uma oportunidade perdida de modernizar a Astronomia portuguesa


Como este ano é o Ano Internacional da Astronomia, publicamos novo post sobre história da Astronomia recebido do historiador António Mota de Aguiar (na imagem telescópio do Observatório de Paris no final do século XIX):

Na década de 80 do século XIX a França era dos países do mundo mais desenvolvidos na área da astronomia e o Observatório Astronómico de Paris (OAP) era um dos seus centros mais notáveis. O seu director Urbain Le Verrier (1811-1877) tinha calculado a posição do planeta Neptuno, que veio a ser descoberto pelo alemão Johann Gottfried Galle (1812-1910), da Universidade de Berlim. Após o falecimento de Le Verrier foi nomeado director do OAP Amédée Ernest Mouchez (1821-1892).

Até ao começo do século XIX, a astronomia só tinha podido estudar o sistema solar e as leis dos movimentos dos seus astros, sobretudo os que estavam mais próximos da Terra. Não obstante a singeleza dos instrumentos de precisão disponíveis, conseguiam-se obter as posições astronómicas com alguma exactidão, e conheciam-se as circunstâncias em que os astros descreviam as suas órbitas em torno do Sol, em obediência à lei da gravitação universal. As observações astronómicas já se faziam com fotografias, mas a tecnologia empregue era ainda absoleta. Tornava-se necessário fotografar grandes extensões do céu por meio de chapas fotográficas, que eram inexistentes na altura.

Todavia, no final desse século, a astronomia deu um importante salto qualitativo. Em 1885, os astrónomos franceses irmãos Paul Henry (1848-1905) e Prosper Henry (1849-1903) construíram nas oficinas do OAP diversas objectivas acromáticas e iniciaram com elas uma série de observações fotográficas com grande sucesso. Era o princípio da chapa fotográfica, capaz de fotografar imensas áreas do céu, onde cabiam multidões de estrelas. Essas fotografias foram reunidas em catálogos estelares.

Referindo-se a esta nova tecnologia, o britânico H.H. Turner, professor de Astronomia na Universidade de Oxford, disse:

“(…), modern improvements in the construction of photographic plates have made them sensitive to yellow light under certain conditions, so that visual telescopes can be used to take photographs if a yellow screen cuts out the unfocussed blue rays, leaving only those for which the telescope has been properly focussed. When a suitable plate is then put behind the screen, pictures of the moon and stars can be and have been obtained quite as good as thoseobtained with a telescope specially made for photography. But in 1882 this had not been realised, and the Brothers Henry saw no way of using the new and promising photographic method but to make a new lens specially adapted for it. This they set about with great skill and determination. After a few trials on small lenses they at last succeeded in producing a photographic lens of 18 inches aperture, a veritable triumph of optical workmanship at this time. (…) It was the work of the lens thus produced by the Henrys that led directly to the inception of the Project we are considering. The specimen maps of small regions of the sky which they soon obtained suggested the possibility of producing such maps for the whole sky. At least 10.000 maps would be required to cover the whole sky; and a labour of this magnitude was beyond the ressources of a single observatory(…)”
[1]

Amédée Mouchez apresentou na Academia das Ciências de Paris as primeiras fotografias astronómicas realizadas pelos irmãos Henry, enfatizando as enormes vantagens da realização de um atlas da totalidade do céu.

“Amédée Mouchez, who realized the potential of the new technology of photography to revolutionize the process of making maps of the stars. He conceived of a project that would take 22.000 photographic plates of the entire sky, each 2 x 2, and enlisted the aid of numerous observations around the world, who were each assigned a separate section of the sky to work on. (…) [2]

Motivado pelo acolhimento positivo dado pela comunidade científica francesa e internacional da época, Amédée Mouchez organizou uma conferência internacional realizada no OAP de 16 a 27 de Abril de 1887. O projecto foi posto em marcha, prevendo-se que levaria entre oito e dez anos. De facto, levou muitos mais. Sobre a relevância do projecto, o próprio Mouchez diz-nos:

“Cette Carte, qui sera formée des 1800 ou 2000 feuilles necessaires pour représenter, à une échelle suffisament grande, les 42.000 degrés carrés que comprend la surface de la sphère, et séparément, à plus grande échelle, tous les groupes d’étoiles ou tous les objets présentant un intérêt spécial, léguera aux siècles futurs l’état du Ciel à la fin du XIXème siècle avec une authenticité et une exactitude absolues. (…) Cette Carte donnera, en outre, dès qu’elle sera terminée, la possibilite d’étudier la distribution des étoiles dans l’espace, c’est-à-dire la constituition de l’univers visible; les célèbres jauges par lesquelles les deux Herschel avaient tenté de les classer par régions et grandeurs, à l’aide de leur grand télescope, se trouveront du coup bien dépassées et randues inutiles. Les astronomes les plus compétents sont unânimes à reconnaître que c’est une transformation complete qui va s’opérer dans l’Astronomie et une nouvelle ère qui s’ouvre pour cette science.” [3]

O que estava em causa nessa conferência era, de facto, essencial para o futuro da astronomia. Vejamos ainda a opinião do representante norte-americano:

“Sir: The great progress achieved in celestial photography and the remarkable star-photographs, recently taken at the Paris Observatory by Messrs. Henry, have led a number of astromers to believe that the time has come to undertake the construction of a chart of the heavens by photography. This grand undertaking, which would be of so great an importance to astromers of the future, would be easily accomplished in a few years if ten or twelve observatories, well distributed on the globe, could make a proper division of labor and work with methods identical in character, in order that the various parts of the chart might have all the essential homogeneneity. (…)” . [4]

O projecto da Carte du Ciel foi dividido entre os 18 observatórios participantes [5]. A cada observatório era atribuído uma parte do céu, tendo cada um de realizar entre 1000 e 1500 chapas fotográficas. Para registar as chapas fotográficas foi fabricado um aparelho pela firma M. Gauthier que, naturalmente, era necessário comprar, para além da contratação de pessoal habilitado para o seu manuseamento.

Entre os 58 membros presentes no congresso, encontrava-se o português Frederico Augusto Oom, uma vez que Portugal era um dos países convidados. Mas, na lista dos observatórios que deveriam proceder à leitura dos céus com a nova tecnologia das chapas fotográficas, não figurava nenhum observatório português.

Resumindo: os 18 observatórios que tinham aderido ao projecto, dividiram entre si a totalidade do céu e trocaram entre si os conhecimentos astronómicos mais avançados do tempo. Todos eles passaram a trabalhar com enormes catálogos do céu onde estavam recenseadas milhares de estrelas e, pela via da astrofotografia, avançaram para estudos de astrofísica mais sofisticados.

Embora Portugal estivesse representado nessa conferência, o Observatório Astronómico de Lisboa (OAL) não aderiu ao projecto. E a razão deve ter sido que Portugal não tinha dinheiro, em 1887, para modernizar a astronomia, aderindo às novas tecnologias da chapa fotográfica. Perdemos a oportunidade de associar o OAL às observações astronómicas mais desenvolvidas daquele tempo. Se nessa altura tivéssemos dado o salto para a astrofotografia, que exigia a aquisição de novos instrumentos e a formação avançada de astrónomos, teríamos certamente dado o salto adequado para a astrofísica, teríamos obtido os progressos astronómicos que, desde essa altura, de forma continuada, outras nações alcançaram. Em vez disso, fomos mantendo a astronomia de posição, uma ciência aquém daquilo que estava previsto para o OAL. Segundo Oom, o OAL foi concebido para estudar o espaço sideral, mas, estudar o espaço sideral implica necessariamente instrumentos para estudar as estrelas mais onerosos do que os utilizados para estudar o Sol, “que é generoso em luz”, como dirá mais tarde Costa Lobo. Portanto, não foram comprados novos instrumentos para observações siderais, nem foram admitidas pessoas com formação científica avançada. Felizmente que tivemos no OAL Campos Rodrigues, que, até 1919, ano da sua morte, foi executando notáveis trabalhos no domínio da astronomia de posição.

António Mota de Aguiar

NOTAS
[1] H.H. Turner, The Great Star Map, Abemarle St. W., London, 1912, pp. 16-18,
[2] Wikipédia, em inglês, Carte du Ciel.
[3] Amédée Mouchez, La Photogrphie Astronomique à l’Observatoire de Paris et la Carte du Ciel, Gauthier-Villars, Paris, 1887, pp.6-7.
[4] Relatório do representante do governo norte americano na conferência, in John G. Wolbach Library, Harvard-Smithsonian Center of Astrophysics – Provided by NASA Astrophysics Data System, p.6.
[5] O 19º observatório é o de Nizamia, na Indía, embora este não figure em todas as listas .

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