“Duas coisas inspiram à mente uma admiração e um temor tanto maiores quanto mais vezes e mais detidamente reflectimos sobre elas: o céu estrelado por cima de nós e a lei moral dentro de nós”.
Immanuel Kant (1724-1804).
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Já foi dito, mas não é de mais repetir: a crise actual, mais do que económica e financeira, é moral. Pode falar-se de crise moral em muitos sentidos, mas há um que em geral não reconhecemos hoje como um perigo. Mas é. Refiro-me à tendência para um excessivo subjectivismo moral. Ou seja, a ideia hoje dominante de que as questões morais são exclusivamente subjectivas e pessoais. O que conta é o que cada um sente em relação a situações e problemas, e as boas atitudes são as que cada um entende como tal. E como também muitos consideram que os valores dependem da aceitação ou rejeição individual, cada um acha-se com direito a ter os seus, ou até a não ter nenhuns. São assim, consideradas, como legítimas, quase todas as atitudes, desde que, com justificações pessoais, as achemos correctas.
Esta tendência é uma evolução dos filósofos iluministas do século XVIII, sobretudo Kant, que promoveram a autonomia dos cidadãos relativamente às tradicionais tutelas de natureza religiosa e política. Fizeram-no em nome da Razão, e na suposição de que todos os homens tinham uma capacidade racional que era suficiente para captar, no seu intelecto, a lei moral. A razão era capaz de descobrir, em cada um, a lei e a norma. E como a Razão era universal e idêntica em todos, os seres humanos tinham, através da Razão, acesso a essa lei. E a que obedeceriam pela vontade de serem justos e não pelo medo do Inferno ou a esperança do Paraíso. Foi um movimento ideológico e filosófico da maior importância, que tornou o mundo anterior incompreensível para os novos, e o posterior irreconhecível pelos os velhos. Mas originou um enorme progresso humanístico e científico, porque proporcionou, a cada indivíduo, com o estatuto de pessoa moral autónoma, o direito de decidir pela sua consciência, podendo assim ser pessoalmente responsabilizado. As consequências, a nível jurídico, foram também enormes.
Esta evolução, condição da vida moral autónoma, caiu, porém, numa subjectividade e individualização que desvalorizou a dimensão cultural e social da moral. A qual determinou, durante milénios, leis e normas e, portanto, a avaliação dos comportamentos individuais. O nosso tempo tem vindo a desprezar esta dimensão da vida moral e a referida mentalidade já ataca o domínio penal e jurídico.
Mas desprezá-la tem graves consequências. As comunidades são, e sempre foram, condição para uma vida sociável e sustentável do ser humano. E o facto de ter havido nelas, sempre, normas a respeitar, devia levar-nos a pensar que é uma dimensão não desprezível, porque é a condição do funcionamento social e, em última análise, da nossa própria vida. O facto de muitas vezes serem injustas não altera a sua indispensabilidade.
Por razões de dialéctica sociocultural e psicológica, o nosso tempo abomina a educação como socialização, as morais de base social e a regras que os costumes nos impõem. É compreensível que estejamos ainda na fase de reagir a este domínio, porque durou milénios e foi quase sempre excessivo. Mas a dimensão social nos comportamentos, e estes em função das normas sociais, não pode suspender-se nem desaparecer. Pode e deve melhorar-se para mais justiça e igualdade, mas nunca desprezar-se, porque não podemos viver sem ela.
Face à desvalorização que se sente nas conversas e nas atitudes, e à crise mundial que é o resultado da individualismo levado ao extremo, e do desprezo pelo comum, e pelo comunitário como valor; face à moleza das leis sociais e das sanções, consequência já dessa mentalidade, é necessário revalorizar a dimensão social das normas morais. Mesmo que não seja por ora um discurso politicamente correcto, é bom começar a pensar nisso.
Esta tendência é uma evolução dos filósofos iluministas do século XVIII, sobretudo Kant, que promoveram a autonomia dos cidadãos relativamente às tradicionais tutelas de natureza religiosa e política. Fizeram-no em nome da Razão, e na suposição de que todos os homens tinham uma capacidade racional que era suficiente para captar, no seu intelecto, a lei moral. A razão era capaz de descobrir, em cada um, a lei e a norma. E como a Razão era universal e idêntica em todos, os seres humanos tinham, através da Razão, acesso a essa lei. E a que obedeceriam pela vontade de serem justos e não pelo medo do Inferno ou a esperança do Paraíso. Foi um movimento ideológico e filosófico da maior importância, que tornou o mundo anterior incompreensível para os novos, e o posterior irreconhecível pelos os velhos. Mas originou um enorme progresso humanístico e científico, porque proporcionou, a cada indivíduo, com o estatuto de pessoa moral autónoma, o direito de decidir pela sua consciência, podendo assim ser pessoalmente responsabilizado. As consequências, a nível jurídico, foram também enormes.
Esta evolução, condição da vida moral autónoma, caiu, porém, numa subjectividade e individualização que desvalorizou a dimensão cultural e social da moral. A qual determinou, durante milénios, leis e normas e, portanto, a avaliação dos comportamentos individuais. O nosso tempo tem vindo a desprezar esta dimensão da vida moral e a referida mentalidade já ataca o domínio penal e jurídico.
Mas desprezá-la tem graves consequências. As comunidades são, e sempre foram, condição para uma vida sociável e sustentável do ser humano. E o facto de ter havido nelas, sempre, normas a respeitar, devia levar-nos a pensar que é uma dimensão não desprezível, porque é a condição do funcionamento social e, em última análise, da nossa própria vida. O facto de muitas vezes serem injustas não altera a sua indispensabilidade.
Por razões de dialéctica sociocultural e psicológica, o nosso tempo abomina a educação como socialização, as morais de base social e a regras que os costumes nos impõem. É compreensível que estejamos ainda na fase de reagir a este domínio, porque durou milénios e foi quase sempre excessivo. Mas a dimensão social nos comportamentos, e estes em função das normas sociais, não pode suspender-se nem desaparecer. Pode e deve melhorar-se para mais justiça e igualdade, mas nunca desprezar-se, porque não podemos viver sem ela.
Face à desvalorização que se sente nas conversas e nas atitudes, e à crise mundial que é o resultado da individualismo levado ao extremo, e do desprezo pelo comum, e pelo comunitário como valor; face à moleza das leis sociais e das sanções, consequência já dessa mentalidade, é necessário revalorizar a dimensão social das normas morais. Mesmo que não seja por ora um discurso politicamente correcto, é bom começar a pensar nisso.
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João Boavida
9 comentários:
Muito bem, optimo texto.
O vicio do raciocinio esta no passo que damos inconscientemente entre ser "razoavel" e ser "perceptivel pela razão do individuo". Isto tem consequências tremendas, entre as quais o absurdo de considerarmos que as nossas regras morais e juridicas radicam em criações da "vontade individual" (se fosse o caso, em quê que seriam regras ?).
Pessoas que, como eu, se interessam por filosofia do direito, esbarram constantemente com esta falacia e, infelizmente, isto é a vulgata ensinada nas faculdades de filosofia, de maneira que os filosofos parecem estar condenados a falar do direito de maneira radicalmente incompreensivel para o jurista que o pratica.
Porquê ? Penso que, em grande parte, porque subsiste entre nos uma certa desconfiança em relação à filosofia moral, onde continuamos a ver uma espécie de doutrina religiosa. Por exemplo, recusamos instintivamente a ideia que o direito radica na moral e que as regras juridicas não são mais que uma categoria de regras morais. Existe uma espécie de medo atavico da Inquisição. Mas quem é que disse que a moral devia ser religiosa ?
Por tras desta atitude, vejo de facto o triumfo de uma filosofia de cariz individualista, que concebe as convicções morais como intuições irracionais (dado que não obedecem a uma racionalidade geométrica).
Haveria ainda muito a dizer. Bom tema.
Este é, de facto, um bom tema, ainda que muito delicado. Do meu ponto de vista, a crise de que o João Boavida fala, considerando - e bem - ter efeitos muito mais gravosos do que a económico-financeira de que tanto se fala, foi gerada em torno de uma suposta perfeição social assente num conceito paternalista de tolerância que, em nome do politicamente correcto, vem induzindo de forma - primeiro quase subliminar, mas ora perfeitamente explícita - em toda a gente o valor supremo de um, também suposto, direito à tal subjectividade de valores e princípios morais. Em nome de coisas muito nobres como a democracia e a rejeição de uma visão moralista da sociedade, acabou confundindo-se moral social com moralismo, ao mesmo tempo que os valores e princípios são olhados como puros assomos de imposição política e/ou ideológica.
Chegámos, desta forma, a uma espécie de império do relativismo ético que, no limite, silencia ou pretende silenciar toda e qualquer análise séria que pretendamos fazer relativamente aos desmandos de que diariamente tomamos conhecimento - venham eles dos diversos poderes instituídos por esse mundo fora ou do mais comum dos cidadãos.
Assim, à sombra dos subjectivismos do politicamente correcto, todos os dias nos confrontamos com um crescente nivelamento por baixo, vindo, quase sempre, daqueles que, por inerência das funções públicas que desempenham, deveriam ser os primeiros a colocar a fasquia lá no alto.
Suponho, ainda, que as sociedades terão, muito rapidamente, que tentar encontrar um equilíbrio, por precário que comece por ser, entre as esferas individual e colectiva. O exacerbamento de um ou outro dos polos será sempre ruinoso; se o individualismo selvagem contribuiu para a ruína do bem colectivo - nomeadamente no que respeita à especulação desenfreada que acabou nesta crise financeira mundial - também é verdade que as experiência de sociedades colectivistas que nos tem sido dado observar conduzem ao aniquilamento da pessoa enquanto tal, logo, ao da liberdade do exercício da tal razão que Kant acreditava ser bastante para fornecer ao Homem a lei moral.
"Mas a dimensão social nos comportamentos, e estes em função das normas sociais, não pode suspender-se nem desaparecer."
Porquê?
Pelo menos nos privados não vejo motivos para isso.
O facto dos valores serem relativos não implica, necessariamente, que qualquer acção possa ser aceite. Por outras palavras, apesar de todas as acções serem justificaveis não implica que tenhamos que as aceitar sem a elas resistir. Afinal a questão é que temos todos de viver uns com os outros e é esse equilibrio que se estabelece. Dizer que há uma "lei moral" superior ao individuo parece-me impôr um constrangimento mecânico ao sistema desnecessário.
E que moral será esta ? quem a imporá ?
com que meios ? por ordem de quem ?
e que limites á minha liberdade individual devem ser legislados ?
a moral não é por acaso que está ligada à religião, não é pelo social que se verifica esta ligação , mas pelo privado.
Confunde-se neste texto moral com moralismo, o que se quer é que as relações sociais sejam . No campo privado, pessoal e íntimo quer-se longe o tempo do padre, no fundo , do moralista a dizer o que eu devo fazer.
se eu gosto de orgias é problema meu e se for com pessoas maiores de idade e com consentimento azar de quem não goste.
seu eu for sado maso , problema meu cumpra-se o supra mencionado.
Estes textos são interessantes mas nunca nos oferecem um vislumbre da solução.
Com boas intenções destas está o inferno cheio.
Nota : a crise actual não está relacionada com o individualismo, não compreendo a relação. è uma crise económica que encontra os seus fundamentos nos anos 80, e que está relacionada com o sistema financeiro e com noções políticas, acho sim que estamos perante a falencia dos modelos políticos e daí a descrença generalizada das pessoas em que se possam encontrar soluções.
mas isso penso eu
E sobre este título (crise moral...), eis que os que insistiram em sua auto-proclamação, inevitavelmente assistem agora à sua auto-destruição, embora e ainda numa qualquer tentativa (e por que consciência) de lhe escapar à mesma memória!
Seria isto contudo, razão dessa mesma Razão ?
Caros,
Relendo o meu comentario, penso que teria sido mais certo falar no passo que damos (abusivamente) entre "razoavel" e "perceptivel e aceitavel numa perspectiva individual".
Acho que o texto do João Boavida apenas salienta esta verdade : a razão não é senão a faculdade que temos de perceber em que medida a nossa apreensão das coisas é limitada (e coagida) pela realidade exterior. Uma filosofia, como a Kantiana, que radica na ideia de que a moral se esconde no coração do homem, acaba num contrasenso, fechando-se à ideia de que a razão tem acesso ao que move, e ao que limita, a acção humana.
Noto que as filosofias antigas não incorriam em semelhante erro. Penso que as principais correntes de filosofia antiga estavam muito mais conscientes do que nos, de que a filosofia começa por ser moral, que ai reside todo o seu sentido, o resto vindo por acréscimo, ou por consequência.
Curiosamente, essas correntes filosoficas estavam muito longe de conceber a razão (ou a moral) como uma "imposição", contrariamente ao que nos fazemos muitas vezes inconscientemente (e esta ideia parece-me estar por tras de alguns comentarios acima).
O que eu quero dizer com isto é que o texto do João Boavida não me parece poder resumir-se ao discurso muitas vezes caricaturado da "perda dos valores" diante do triunfo do individualismo moderno.
Ha também, quanto a mim, uma verdadeira e importante reflexão sobre a aptidão da filosofia moderna para produzir uma reflexão moral consistente, que não se limite no formalismo e na defesa de uma "liberdade individual" sem conteudo.
E o jurista pratico que sou tem que lhe dar razão num aspecto : a ficção que pretende fazer derivar as regras morais e juridicas da vontade ou do consentimento individuais (o tal mito da autonomia da vontade) impede-nos de perceber o que é uma regra, ou seja uma realidade que, por essência, leva o individuo a modular a sua acção, ou o seu comportamento, por padrões que lhe são exteriores...
Bom, mas isto é so a minha modesta opinião e estou ansioso por conhecer outras...
Respeitar os outros , reconhecer o seu mérito e desta forma competir saudavelmente não pode ser imposto, mas é moralmente correcto.
O assédio moral é uma constante neste mercado de trabalho, moralmente desprezável , mas muitas vezes entre sermos a preza ou o predador...
Belo texto.
As regras são restrições à liberdade dos indivíduos. Porém são fundamentais para a vida em sociedade, pois é necessário encontrar um meio termo que possibilite esta convivência.
Neste contexto não cabe a vontade total do indivíduo, mas um consenso.
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