domingo, 17 de maio de 2009

A decadência das virtudes

Texto de João Boavida, antes publicado no jornal As Beiras, e que deve ser lido na sequência de um outro: Crise moral e sociedade débil.

"A natureza não nos oferece a virtude: ser bom é uma arte."
Séneca

A moral tem vindo a subjectivar-se, isto é, a ficar na dependência dos sentimentos individuais, da vontade de cada um e, portanto, a perder muito da sua componente social e colectiva.

Um forte sintoma disso é a decadência das virtudes. A própria palavra virtude perdeu qualidade, deixou de ser respeitada, ou, digamos, de se dar ao respeito. Talvez as duas coisas. Quase já não se usa, a não ser para lhe acentuarmos o ridículo ou a falsidade. Interpretações que lhes foram sendo dadas para denunciar e pôr a ridículo os que se faziam de virtuosos para enganar os outros. A nossa literatura, desde Gil Vicente, está cheia desta gentinha virtuosa mas sem moral. A muita virtude de certas pessoas, em Eça de Queirós, por exemplo, é sinónimo certo de beatice, ou obtusa, ou sonsa, às vezes pérfida. Ou seja, falsa e exterior, não compreendendo o valor do que diz, nem fazendo o que diz fazer.

Numa sociedade espiritualmente punitiva e temerosa, e socialmente encostada à subserviência e à dependência, a hipocrisia é a atitude que alimenta virtudes. Que, por isso, são geralmente falsas. São o modo dos devassos e corruptos serem aceites, sem o merecerem, ou de usufruírem da liberdade de manobra para as suas vilanias. Mas sem precisarem do sacrifício e da coragem que a qualidade moral exige, e podendo, assim, fugir às merecidas punições. Felizmente tivemos um Eça que mostrou a miséria de que é feita esta gente.

Porém, se muita desta fauna queiroziana, sobretudo na política, se mantém actual, noutros aspectos já não. Ridicularizar as virtudes, sobretudo espirituais, com a laicização generalizada que se operou na sociedade portuguesa, em muitos aspectos positiva, é hoje um tiro sem alvo pois não corresponde já à mentalidade dominante.

Penso que podemos dizer que a real decadência das virtudes e do próprio conceito, que pode entender-se como consequência do esboroamento das morais autonómicas, na linha kanteana, e da fragmentação ética da pós-modernidade, está a revelar-se muito perigosa pela alegre e despreocupada entrega de cada um a si mesmo.

É pois necessário revalorizar as virtudes enquanto qualidades, sem destruir o contributo de Kant, que nos emancipou. Precisamos de recuperar do desvio semântico que a palavra virtude sofreu. A terapêutica queiroziana foi eficaz, mas agora convinha-nos voltar ao sentido original da palavra virtude.

Virtude vem do latim virtus, que significa força interior, energia. A evolução do sentido para o domínio moral revela muita da dimensão social – e pessoal – dos comportamentos e das atitudes, e também a infinidade de aspectos que a força interior contém. Ou seja, não uma moral onde cada um decide o que é bem e mal, ou o que deve fazer, mas sim o que é entendido pela maioria, como sendo o bem e o mal. E, portanto, o que deve fazer nas situações a partir de quadros de dever e de qualidade na acção.

Mas, se as virtudes, como qualidades objectivas, são referências claras que orientam a acção e a educação, não deixam de ter um grande potencial de aperfeiçoamento subjectivo. E de poderem ser postas ao serviço de uma moral autonomizadora.

Precisam as virtudes de ser sentidas como qualidades, para merecer o nosso respeito e sacrifício, mas é para isso que funciona a educação, que nos faz ver o valor intrínseco delas e a necessidade pessoal e social de as seguir. Se conseguirmos compreender e sentir o valor e a necessidade, pessoal e social, de palavras como prudência, temperança, coragem, fidelidade, justiça, generosidade, humildade, simplicidade, gratidão, boa-fé, compaixão, etc., e se começarmos a educar - e a ser educados - nestas qualidades, solucionaremos imensos problemas.

Imagem: Fresco de Giotto di Bondone (1267-1337). Alegorias das virtudes e dos vícios (Cappella degli Scrovegni, Pádua).

10 comentários:

Anónimo disse...

"se começarmos a educar - e a ser educados - nestas qualidades, solucionaremos imensos problemas."

Solucionaremos todos os problemas.

Qualquer crise, seja ela económica, social, política, etc, é apenas um sub-tipo. Todas as crises são morais.

A Filosofia, de que a Moral é principal componente, é causa de tudo o que se faz de bom e de mau. Quer seja o homicício em massa, a defesa dos direitos humanos, a descoberta das Leis da Gravitação Universal ou a composição de uma 9ª Sinfonia.

Ainda bem que citou Séneca, finalmente. Seria bom que se lembrassem dele pelo menos uma vez por ano.

Tiago.

maria disse...

Peço desculpa pelo abuso , mas ontem dei com esta palestra de um prof. inglés , num blogue , e penso que gostará de ouvir ( se é que não ouviu já ) . Muito a propósito do que deve a escola ensinar.
Penso que o Rui Batista também vai achar muito interessante.


http://www.meninaidalina.blogspot.com/2009/05/ken-robinson-vale-pena-ver.html

Anónimo disse...

Tito Lucrécio Caro nunca reclamou qualquer inspiração divina, era um louco e suicidou-se.

Jesus Cristo afirmou ser Filho de Deus, era um sábio, morreu e ressuscitou dos mortos.

nuvens de fumo disse...

Hoje em dia, por muito que custe pelos vistos a muita gente, vivemos uma moral de liberdade do plano individual, mas não de individualismo, é muito diferente. O individualismo é mais o estilo americano, nós somos muito pouco parecidos com os valores americanos, que se baseiam no culto do self-made man , da luta pelo trabalho, do valor intrínseco etc. por cá somos fracos nesse nível de valores de trabalho, mas há causas profundas e culturais e tais valores nunca se enraizaram na nossa sociedade. O estado novo muito fez para nunca haver uma verdadeira revolução de mercado pelo que estamos muito atrasados e sem essa cultura. Mas há sinais de que partilhamos valores colectivos e não individualistas, nunca os apoios sociais foram tão grandes, nunca houve em Portugal tanta escolarização, boa ou má isso é uma questão resolúvel , mas a escola chega hoje mais longe. Nunca houve como hoje uma sensação de que de facto as Pessoas tem direitos, as minorias como os homossexuais ou os imigrantes ilegais tem mais voz e aparecem sem o escândalo e a segregação que o moralismo tanto adora. Assistimos à expressão de muitos tipos diferentes de formas de estar , de penteados e maneiras de se ser diferente, mas trabalhando, mas estando na mesma sociedade, apenas de forma diferente. Há mais divulgação cultural, mais acesso à informação. As pessoas não toleram intromissões na sua esfera privada, vivemos dentro de portas mais livremente. Os papões judaico-cristãos do moralismo bacoco de sacristia pertencem cada vez mais às beatas a caminho do criador, e os padrs falam cada vez mais para um número menor de pessoas. Isto porque o que dizem está fora do tgempo, ninguém liga a campanhas contra os preservativos, estão 50 anos fora do tempo, essas discussões há muito acabaram.
Vivemos uma democracia, onde não há, como nunca houve , consenso sobre tudo, mas partilhamos valores positivos e eu acho que este artigo confunde diversidade cultural com perda de valores. Há mais maneiras de viver a nossa cidadania , e isso é bom.

O valor que falta à geração anterior ou às mais antigas, é o que foi retirado pelo antigo regime e o espírito salazarento : a tolerância.
E já agora esta crise, como a de 30, a de 70’s ou a de 90’s não são crises de valores, são crises económicas, crise de valores é não arranjar melhor argumento para vender um peixe que ninguém que comer.

Anónimo disse...

"A moral tem vindo a subjectivar-se, isto é, a ficar na dependência dos sentimentos individuais, da vontade de cada um e, portanto, a perder muito da sua componente social e colectiva."

E no entanto, Deus é o padrão absoluto de bondade e justiça. Devemos ser bons e justos, porque Deus é bom e justo.

joão viegas disse...

Caros,

Concordo com a critica feita à ideologia da autonomia individual, que é a moral reinante.

Parece-me no entanto que dizer "Ou seja, não uma moral onde cada um decide o que é bem e mal, ou o que deve fazer, mas sim o que é entendido pela maioria, como sendo o bem e o mal" é continuar a pensar da mesma forma, como se houvesse uma verdade absoluta em termos de bem e de mal, que devesse ser imposta a todos. Esta ideia pressupõe que existem um "bem" e um "mal" absolutos, sendo a sua determinação uma questão de autoridade (a da razão, a da maioria, a dos melhores, etc.), com o risco obvio de se sacrificar completamente a liberdade individual.

Mas a moral antiga (a tal moral das virtudes) não punha as coisas nesses termos, pelo menos tanto quanto eu percebo. Nas éticas de Aristoteles, ou no De officiis de Cicero, ou mesmo no De rerum natura de Lucrécio, nada ha que se assemelhe à ideia de um conhecimento perfeito do "bem" e do "mal" em si. Ha apenas modelos, que valem somente na medida em que auxiliam as pessoas a viver melhor. Para descrever esses modelos, é obvio que os filosofos antigos olhavam para o que viam à sua volta (é o principio da Etica de Nicomaco : para onde tendem as pessoas? para onde tendem as coisa?), mas não me parece que esses autores defendiam a ideia de que existe um "bem" absoluto que se pode definir perfeitamente a partir daquilo que é procurado pela maioria das pessoas.

Esta ideia implica uma maneira de encarar a filosofia que põe em primeiro plano a sua função de desvendar a verdade do universo, ou a sua racionalidade, e vê nas questões éticas ou morais questões secundarias, ou mais precisamente questões que são apenas relativas a uma parte do universo.

Acho que se pode defender que é exactamente o contrario que sucede. A tentativa de compreender e explicar os fenomenos do universo é uma preocupação secundaria, auxiliar, instrumental. So tem sentido na medida em que nos ajuda a viver melhor, que é o objecto principal da filosofia.

Acostumamo-nos a conceber as escolas antigas como diferentes formas de representar ou de compreender o universo : o idealismo de Platão, o materialismo de Epicuro, etc. Mas sera que essas teorias eram vistas assim pelos antigos ? Sera que eles não se limitavam a conceber essas teorias como meros "exercicios" ? Não sera por isso que vemos tantas vezes os filosofos antigos recorrer às concepções dos seus adversarios e não hesitar em tomar apoio nelas nas suas discussões ?

Pessoalmente, rendo-me completamente aos autores (por exemplo, em França, Pierre Hadot) que procuraram mostrar como as "teorias" eram tidas pelos antigos como secundarias, o essencial consistindo em levar uma vida filosofica, ou seja uma vida boa.

Nesse aspecto, as correntes antigas aproximavam-se bastante mais do que pensamos de outras filosofias, nomeadamente orientais.

Quando lemos Confucio, por exemplo, vemos que ele alerta expressamente contra a ideia de que existe um "bem" absoluto. E diz : Depende, para o meu discipulo X, acho bem uma coisa, mas ja para o meu discipulo Y acho que o bem de que ele precisa é diferente.

Pessoalmente, acho que a moral das virtudes de que fala João Boavida (moral que foi muito tempo dominante, veja-se por exemplo, em Portugal, um texto como o Leal Conselheiro, e tantos outros) implica voltarmos às origens da especulação filosofica e reflectirmos sobre o seu sentido profundo. Vivemos hoje, nomeadamente graças a Kant, na ideia de que a filosofia tem apenas como função esclarecer conceitos para ajudar ao desenvolvimento da ciência, e do conhecimento da realidade objectiva.

Duvido que consigamos atingir parecido com uma "realidade objectiva" em termos éticos ou morais. Duvido, alias, que ideias morais se tenham imposto em razão das suas caracteristicas "objectivas"...

Precisamente por isso é que a filosofia faz sentido, porque o saber nem sempre se impõe...

Anónimo disse...

Concordo plenamente com o Artigo de João Boavida e pergunto-me como foi possível chegarmos a este ponto de "imoral social". A reposta a esta questão poderá eventualmente assustar-nos, mas deveríamos investir na sua busca com urgência e determinação, antes que seja demasiado tarde.


Concordo igualmente com o João Viegas, se bem que me pareça estar a discutir aspectos algo diferentes, ou pelo menos marginais à questão nuclear que o Artigo coloca.


E os meus Parabéns por este espaço de reflexão e partilha de opiniões, de uma forma educada e intelectualmente elevada.


António das Neves Castanho.

Anónimo disse...

"A RESPOSTA a este questão..."

Helena Ribeiro disse...

A componente social e colectiva da virtude que se pretende regresse à humana condição foi-se perdendo na directa proporção em que a boa literatura foi desaparecendo do ensino, bem como o estudo da Filosofia, confinado ao secundário e apenas em alguns cursos.

A “terapêutica queirosiana” é eficaz porque tem ela resquícios da tragédia grega (nomeadamente em Os Maias, do programa do 11º ano) e da ironia sarcástica das cantigas de Escárnio e Mal-dizer, que foram retiradas dos programas.

Parece-me uma boa estratégia regressar à etimologia, assim como seria incalculavelmente eficaz regressar aos mitos e às tragédias gregas. Quem já leu as tragédias gregas conhece o seu enorme poder catártico, e nada mais eficaz para induzir o ser humano na vertente colectiva da moralidade.

Curiosamente, no programa do 5º ano estão contemplados dois autores de referência igualmente eficazes em relação ao objectivo que se pretende alcançar: Grimm e Perrault. É preciso permitir às crianças exorcizarem os seus receios, dando-lhes a hipótese de colocarem os seus inimigos no Inferno, como fez Miguel Ângelo quando pintou a Capela Sistina. Mas que fazer quando professores e editoras praticamente ignoram os contos de Grimm e Perrault por entenderem que as criancinhas podem ter pesadelos? Lembro-me de ouvir essas histórias e ficar perfeitamente suspensa nesse húmus de obscuridade, convidativo às primeiras reflexões morais, ainda que num processo obviamente inconsciente. E quanto mais perturbadoras as histórias eram, mais eu pedia à doce senhora que mas contava que as repetisse, noite após noite.

“E nós ouvíamos com adamantino espanto, sorrindo para afugentar o terror, mas conduzidos pelo terror, a justa noção ontológica.” (Agustina Bessa-Luís, Dicionário Imperfeito, p. 57)

Anónimo disse...

da mais pura misantropia,gostei!

CARTAS DE AMOR RIDÍCULAS

Ainda e sempre Eugénio Lisboa. Um dos sonetos que nos confiou. Alguns escritores, preocupados com serem muitíssimo escritores, sujeitam-s...