Eis um post convidado da autoria de Ludwig Krippahl sobre um tema que tratei aqui em vários posts polémicos: a cópia digital gratuita.
«As palavras que profiro penetram os vossos sentidos de tal forma que todos as têm sem que nenhum as retenha dos outros. Sem as ter, as palavras não vos poderiam informar. E se as retivessem não poderiam informar outros. […] Não me preocupa que, por as dar todas a um, os outros sejam privados delas. Espero, em vez disso, que todos consumam tudo; que sem as negar a outra mente ou ouvido, as tomem todas para vós mas as deixem todas para os outros» Santo Agostinho de Hipona, 384-430, via Lessig Blog
«Tudo o que quero é chamar a atenção […] que é preciso pagar aos criadores. E que a maneira mais simples de o fazer é pagar quando usufruímos dos seus trabalhos. [… Q]uem quer usufruir dos produtos desse criador deve pagar.», Desidério Murcho, De Rerum Natura
Agradeço ao Desidério a oportunidade de discordar dele aqui. O Desidério propõe incentivar-se a criatividade pagando pelo acesso e pelo usufruto do que é criado. Segundo ele, é a forma mais simples de incentivar a criatividade e é um dever moral de quem usufrui de ideias alheias. Penso que o Desidério está enganado nestes três pontos. No dever, no incentivo e na suposta simplicidade da solução.
No domínio digital, uma vez paga a infraestrutura, o custo de copiar um ficheiro é irrisório. Por isso qualquer mercado competitivo arrastará o valor da cópia para zero. É o que acontece com os copos de água nos restaurantes, com as casas de banho nos centros comerciais e com o acesso aos programas de rádio. É caro construir uma estação de rádio e produzir programas mas, uma vez pago este custo, não há encargos adicionais por ouvinte. Cem ou cem mil não faz diferença. Por isso não é economicamente viável cobrar pelo usufruto. A solução do Desidério é inviável porque se passa o mesmo no domínio digital. Copiar ficheiros tem um custo marginal nulo, o que num mercado livre torna impossível lucrar com a cópia, o acesso e a distribuição. E dar valor à cópia de ficheiros por força da lei exige uma intromissão inaceitável na nossa vida pessoal, tal como seria se legislássemos custos de acesso a programas de rádio.
Outro problema é que, não se tratando de bens materiais que se desgastem, pagar o usufruto de conteúdos digitais só serve para recompensar a popularidade. E isto não é financiar a criatividade. Por exemplo, compare-se o sucesso comercial da máquina dos peidos com o da máquina de Turing. Não me importa o gosto de ninguém, e até acho que o sucesso comercial de uma aplicação para fazer esses sons no telemóvel é sinal de um mercado saudável. Nem defendo que as pessoas devam pagar por um formalismo matemático do qual nunca ouviram falar, por muito importante que seja. Mas a máquina de Turing está na base de toda a computação e é um exemplo importante da criatividade que queremos incentivar. A máquina dos peidos não. Isto demonstra a ineficácia de pagar pelo usufruto quando queremos incentivar a criatividade. É legítimo que se venda o acesso à máquina dos peidos a quem o quiser comprar. É a grande vantagem de um mercado livre. Mas é incorrecto defender que isto incentiva o progresso cultural, e ainda pior tentar forçá-lo como se fosse um bom meio para esse fim.
Finalmente, há a questão moral. O Desidério afirma que «quem quer usufruir dos produtos desse criador deve pagar». Estes “produtos” são sequências de números, como é tudo o que esteja no computador. São informação em abstracto. E a nossa civilização assenta no usufruto gratuito da informação e das ideias que outros tiveram. O acesso à informação é um direito fundamental. Tudo o que os nossos pais nos ensinam, o que aprendemos na escola e todo o conhecimento científico. Toda a cultura, que mais não é que o conjunto de ideias dos outros que podemos usar de graça. Usufruir de informação não obriga ninguém a pagar. A título de exemplo, peço ao leitor que estime quanto dinheiro me deve por ter lido até aqui. Quanto mais próximo de 0€ for a sua estimativa, mais de acordo estamos neste ponto.
Pagar pelo usufruto é aceitável como um acto voluntário, pois não prejudica ninguém, mas não é um mecanismo prático para incentivar a criatividade no mundo digital nem é aceitável obrigá-lo. Aceder à informação não cria o dever de pagar, recompensar a popularidade não é um incentivo eficiente à cultura e o serviço de cópia digital vale zero. O trabalho criativo deve ser pago como o serviço de criar e não como o serviço de cópia ou acesso. Se eu quisesse remuneração por este texto devia ter negociado com o Desidério quando ele me convidou. Agora que o escrevi e o pus à vossa disposição, de livre vontade e sem ninguém se comprometer pagar-me, não tenho justificação moral para exigir dinheiro.
Os autores e artistas devem trabalhar com orçamento e contrato, nem que seja verbal, como qualquer profissional. E se um músico ou escritor não arranjar umas centenas ou milhares de admiradores que se comprometam a pagar pelo seu próximo projecto então terão de viver de outra profissão. E se decidem criar mesmo sem ninguém lhes prometer pagamento então assumem-se como amadores. E tal como qualquer arquitecto, médico ou engenheiro, o artista e o escritor devem também estar preparados para passar uns anos a mostrar o que valem antes de haver compradores para o seu trabalho. E esqueçam a ideia de ganhar com a cópia daquilo que criaram em vez de pelo trabalho de o criar. Isso era quando imprimir um milhão de exemplares custava mais que escrever o livro. Agora, com o .pdf ao preço que está, é melhor venderem o que têm de valor.
Obviamente, o mercado não resolve tudo. Nunca será uma boa fonte de financiamento para a investigação fundamental ou para a filosofia. Por isso eu e o Desidério temos de dar aulas e trabalhar para o estado. Não é perfeito, mas é adequado. É o que se faz com escolas, hospitais e polícia. Há serviços que interessa garantir e que não se adequam aos caprichos do mercado. Esses exigem financiamento pelo estado. Não me parece que seja o caso do software ou da música, mas também não seria contra haver mais investimento público em escolas ou cursos avançados de formação que permitam aos jovens talentos mostrar o que valem enquanto encontram quem esteja disposto a pagar o seu trabalho.
No último século, o mais importante era financiar a cópia. Era caro copiar discos, imprimir livros e distribuí-los. Nessa altura o sistema do Desidério fazia sentido. Pagava-se pelo acesso. Hoje, tanto o músico como o programador criam coisas que se podem exprimir como números e distribuir sem custo por todos os interessados. Tal como sempre aconteceu com os matemáticos, não faz sentido cobrar pelo acesso, pela cópia ou pela distribuição. A proposta do Desidério é como querer curar a tosse deixando de tossir. Nem é prática de implementar nem resolve o problema.
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42 comentários:
Ó alemão, eu acho que nem tu nem o Desidério têm a solução para o problema, acho que é uma coisa que nem ainda existe. Mas curti o texto e acho muito bem que o Desidério faça estas coisas de mostrar o outro lado em vez de andar sempre a martelar na mesma tecla. Desidério, surprise: parabéns meu queriducho!
Ó alemão (desculpa o teu nome é multo difícil), se tudo são zeros e uns e isso deve ser de borla, porque é que a RTP nõ pode fanar esses zeros e uns e passar os jogos que passam na SportTV, e outras coisas que são exclusivas de outros canais?
luis
Luís,
«Ó alemão (desculpa o teu nome é multo difícil), se tudo são zeros e uns e isso deve ser de borla, porque é que a RTP nõ pode fanar esses zeros e uns e passar os jogos que passam na SportTV, e outras coisas que são exclusivas de outros canais?»
A RTP não pode fanar 0s e 1s porque isso é impossível. O máximo que pode fazer é copiá-los. Mas a lei que temos diz que isso é proibido.
Enquanto regulação de actividades comerciais, e se a lei afectar apenas empresas como a RPT e a SportTV, pouca diferença me faz. Isso para mim importa tanto como exigir uma taxa às pastelarias.
O meu problema é quando a lei proíbe indivíduos, na sua vida pessoal, de copiar e trocar entre si 0s e 1s. Isso é o mesmo que vir cá a casa a ASAE ver se eu estou a fazer bolos e cobrar-me por isso. O que oponho é a intromissão na vida privada de uma lei que, no máximo, seria útil como regulação comercial. Principalmente se fundamentada na ideia que quando alguém usa números está a usar propriedade alheia ou fica a dever alguma coisa.
Partido pirata
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1382740&idCanal=4870
Alemão, se alguém copiar os jogos e os puser na net tu achas que não há problema? Eu acho que há.
Imagina que eu sou um espião e tiro umas fotos de uma patente secreta. Se não me apanharem no acto, a seguir eu tenho a desculpa que as fotos são só 0's e 1's, porque eu não sou estúpido e usei uma máquina digital. Se fosse analógica era diferente?
Porque é que tem que se pedir aos juizes para fazer escutas telefónicas se a única coisa que nós vamos ouvir são CÒPIAS de 0's e 1's?
Se eu insultar alguém neste blogue há algum problema? É que são só 0's e 1's, não é berraria e mocada ao vivo.
Não me macei muito a pensar nestas perguntas, também temos que vos dar trabalho, é para isso que servem os filósofos.
Desculpa o tom pouco sério, mas são só 0's e 1's!
luis
luís:
O Ludwig não é alemão, e se é tão difícil escrever o nome dele podes sempre usar as ferramentas copy+paste.
Posto isto, acho que tens razão nesse ponto em particular dos 0s e 1s. Já tive essa discussão com o Ludwig e gastei muito latim sobre esse assunto. Mas isso é apenas um aspecto da argumentação dele. O aspecto essencial, que também merece ser discutido, é se o modelo de negócio alternativo que o Ludwig propõe (se os artistas querem ganhar dinheiro com a obra garantam pagamento antes de a tornar pública, e uma vez pública perdem o direito a ela - o mesmo que acontece com as anedotas, cujo criador não me pode impedir de a contar a outros) é vantajoso face ao actual.
Isto é que não é nada claro. Nem que sim, nem que não.
Obviamente os criadores não perdem direito à obra "física" mesmo quando a tornam pública. O papel do livro, ou a pedra da escultura continuam a ser deles. Mas, de acordo com o Ludwig, devem perder o direito às suas reproduções*, por muito exactas que sejam.
Querem ganhar dinheiro com a música façam concertos, ou garantam o pagamento antes de tornar público o mp3.
*Exceptua-se alguma regulação no comércio de formas de reprodução. Mas tanto quanto entendi o objectivo disto é proteger a distribuição por essa via, mais do que o autor.
E por essa razão esta regulação não se deve aplicar à reprodução sem fins comerciais.
Isto de acordo com o Ludwig, se bem entendi a posição dele.
Ó João, sei lá se ele é alemão ou austríaco, ou o quê. Apeteceu-me porque ele me pareceu suficientemente descontraido. Eu também não sou Luís e foi da maneira que ele me tratou, mas não interessa, isso não interessa nada, se ele se chatear ele que diga que eu aplico já um copy paste.
Pois, eu não acho nada clara a questão e acho que no futuro tem que se arranjar uma solução. Eu não percebo muito disto mas acho que a solução parte por tornar a pirataria um bocado mais difícil e por preços razoáveis nas coisas e não andar por aí a vender pdf's ao preço de livros reais! Se um pdf ou um mp3 passar a custar 1 euro, e se a pirataria for um bocadinho difícil, de maneira a que certas pessoas não se deiam ao trabalho de estar a fazer traquinices malucas em vez de simplesmente desmbolsarem o tal euro, a coisa vai passar a funcionar porque muitas mais pessoas vão passar a comprar livros e música. Além disso os intermediários vão passar a ganhar muito menos, ou zero, como acontece já com muitas as coisas à venda na net, e realmente o autor continua a receber o mesmo que receberia, ou mais, se vende-se os produtos em formato físico.
Já é possível comprar óculos graduados na net por 20 euros, por exepmlo, exactamente porque essas empresas não têm os gastos de ter lojas caríssimas nas ruas das baixas das cidades.
Acho que a solução passará por alguma coisa desse tipo.
luis
Luis(?):
O Ludwig é português, mas tens razão quando dizes que é suficientemente descontraído para não se importar com isso. Eu é que achei que a desculpa da difuldade do nome não colhia :p
Chamou-te Luis porque é assim que assinas. Pelo menos é a última palavra dos teus textos, e parece ser a tua "assinatura".
Quanto ao que afirmas, só resta explicar como é que tornas a pirataria mais difícil sem violar a privacidade das pessoas, ou a liberdade de expressão e comunicação.
Ao contrário do Ludwig, se explicares isso sou capaz de achar que a tua solução é bastante boa.
João, o que eu acho é que se as editoras não tivessem sido gananciosa e tivessem começado há muito tempo a vender a preços baratos, os torrents se calhar nem existiam. Agora vão ter que andar a gramar e a perder tempo até os seus sites terem a popularidade dos torrents.
Não sei como se pode tornar a pirataria mais difícil, isso é uma coisa que muita gente gostaria de saber. Talvez usando uma técnica psicológica em vez de uma técnica técnica (softwarica), dizendo que por cada euro de música comprada 1 cêntimo vai para a cruz vermelha, contando histórias de músicos que vivem na miséria por causa dos piratas dos torrents, e apelando ao brio e à honestidade das pessoas. E como eles são os gajos que têm as novidades em primeira mão tem que aproveitar isso para atrair atenções e vender. Também podem fazer aqueles truqes de supermercado, por cada álbum ganhas 1 ponto e quando tiveres 10 pontos tens um de graça, e além disso ficas habilitado a ganhar um carro ou uma viagem a Nova Iorque com direito a tomar um café com o Lou Reed! Aposto que até havia pessoal que nem queria ouvir a música e que comprava só para se habilitar aos prémios! Sei lá, eles é que sabem.
Mas parece-me que é por aqui e não como diz o alemão, que pelos vistos é teu amigo, e que pelos vistos é mais importante do que tu, e que´pelos vistos é por isso que tu gostas de mostrar que o defendes! Estou a brincar, não ligues às minhas maluquices.
Claro que os gajos dos torrents, quem têm sempre lá aquelas gajas nuas todas, também podem começar a usar a mesma técnica e oferecer determinados prémios...
luis
Luís,
«Não me macei muito a pensar nestas perguntas,»
Sim, também me parece.
Os problemas que apontas relacionam-se com a privacidade e a pessoa, não com direitos de propriedade sobre esses números.
Se escreveres todos os números de 0000 a 9999 um desses será o meu PIN do multibanco. Mas é meu só no sentido de ser privado e não no sentido de ser dono dele. Como tal, tenho o direito que tu não saibas qual desses números eu uso como PIN mas não tenho o direito de te proibir de o reproduzires.
Se eu publicar na minha página o número que corresponde ao meu PIN perco esse direito à privacidade e não ganho um direito de propriedade sobre esse número. Fico apenas com o direito que não me roubem o cartão nem me tirem dinheiro do banco.
Se eu componho uma música há um conjunto de números que a descrevem detalhadamente. Tenho o direito de não dizer a ninguém quais são esses números. Mas se disponibilizo a música ao público, seja de que forma for (paga ou não) perco esse direito de privacidade, e o direito de propriedade sobre os números nunca tive nem faz sentido. Nesse caso resta-me o direito que não venham cá a casa apagar-me as gravações que fiz nem me proibam de cantar a minha música, mas não tenho quaisquer direitos de propriedade sobre os números que a descrevem.
Espero que isto te ajude a pensar melhor na questão.
Luis (? se não és Luís, de onde vem o "luis" no fim dos teus comentários?)
Eu concordo contigo no que toca às várias formas de vender os ficheiros ou os CD. Desde que a compra e venda sejam actos voluntários dos participantes, tudo bem.
O que oponho é a que se restrinja por imposição legal o acesso a sequências de números com o propósito de inflaccionar o valor da cópia e da distribuição que, hoje em dia, são gratuitas.
E oponho também essa noção de "propriedade intelectual" que defende ideias como coisas com dono.
O que os autores e criadores têm de vender não é um produto que mude de dono, como uma saca de batatas. É o serviço que eles prestam. Nisto são como os cirurgiões, os electricistas, os treinadores de futebol e muitos outros profissionais cujo serviço tem mais valor que os bens físicos que possam mudar de dono no processo.
Caros,
Estou sem tempo para aprofundar e não tenho opinião definitiva sobre o assunto (muito interessante e complexo para o jurista). Não queria no entanto deixar de felicitar o Desidério por ter dado espaço para este texto.
Boa continuação.
Pouca controvérsia, tou a ver....
Caros,
So umas achegas em reacção ao ultimo comentario do Ludwig Krippahl.
Muitos sistemas juridicos distinguem entre o direito dito "moral", que protege essencialmente o nome do autor e a integridade da obra, ou seja protege-as na sua qualidade de criação de um (ou varios) individuo(s) de quem prolonga a personalidade, e o direito patrimonial, que inclui a faculdade de ceder o uso da obra, normalmente atravês de um suporte que, até hoje, era quase sempre um objecto apropriavel (livro, tela, etc.). Nalguns sistemas juridicos, a distinção não é feita, e então o direito de autor tende a confundir-se com uma licença de uso.
Embora seja polémico à luz da doutrina hoje dominante, é possivel pôr em causa a legitimidade do conceito de "propriedade intelectual". Pode por exemplo apontar-se-lhe que mistura duas coisas diferentes, que em nada devem seguir o mesmo regime. Por um lado, procura proteger direitos da personalidade, que a priori têm pouco a ver com bens comercializaveis (por exemplo o direito moral subsiste mesmo depois da obra estar no dominio publico). Por outro lado, procura proteger o direito a uma retribuição pelo trabalho realizado, em termos que podiam (deviam ?) ser os do direito comum.
De facto, se olharmos para a realidade, constatamos que a esmagadora maioria das pessoas remuneradas por criarem bens do espirito (obras), são remuneradas em moldes muito proximos da remuneração do trabalho. Isto é particularmente gritante no que toca aos autores de livros. Geralmente, os poucos autores que tiram o essencial dos seus rendimentos de "direitos de autor" propriamente ditos, são aqueles que atingiram ja uma enorme notoriedade.
Ou seja : o direito "moral" interessa a todos, mas não tem nada a ver com a remuneração do trabalho. E o direito "patrimonial" é uma realidade que so diz respeito, na pratica, a uma infima parte dos autores, geralmente privilegiados.
Outro argumento para se pôr em causa a legitimidade do conceito, é apontar-se que se trata de uma construção recente. Basicamente, a noção de direito de propriedade intelectual nasceu nos séculos XVIII e XIX (mas aqui também ha polémica, pois ha autores que defendem que o conceito existia antes, mesmo em Roma, o que eu acho bastante discutivel).
Bom haveria muito ainda para dizer.
Em todo o caso, chamo a atençao para o facto de existirem conceitos juridicos que permitem ajudar a responder às questões (legitimas) levantadas por Ludwig Krippahl. E a questão da copia também merece ser aprofundada juridicamente. No fundo, os direitos de autor, na sua vertente patrimonial, podem ser equiparados a uma licença de uso. Ora, neste particular, sera que a Internet é assim tão diferente dos suportes pré-existentes ? Sera que na Internet, não é possivel conceder licenças de uso privativo ? As editoras técnicas ja trabalham ha muito tempo dessa forma. Eu hoje, no meu trabalho de advogado, subscrevo varias licenças para ter em linha textos, artigos, doutrina, etc. Mas isto não invalida que bens possam ser disponibilizados gratuitamente na Internet. Da mesma forma que a faculdade de reservar os direitos de autor de um livro nunca impediu um autor de publicar as suas obras gratuitamente…
Bom tenho que parar, mas tenho pena.
Bom tema. Boa continuação.
João Viegas,
Eu penso que no domínio digital não é desejável nem possível fazer a partição que se fazia no domínio analógico.
Não é desejável porque qualquer sequência de números, ou qualquer função ou funções matemáticas que as gerem, já eram domínio público antes dos CD e MP3.
E não é possível porque, ao contrário do suporte analógico, o suporte digital tem uma codificação arbitrária e infinitamente maleável.
Com o viníl era fácil especificar que um disco é cópia da música X se, tocado daquela forma, se ouvir a música X. Se fizermos uma transformação qualquer ao disco de forma a que só dê ruído num gira discos convencional não é considerado uma cópia dessa música.
Com o formato digital não é possível fazer isto, senão basta zipar o ficheiro mp3 que deixa de ser uma cópia da música. Mas aqui temos o problema de ser possível, e trivial, por operações algébricas transformar qualquer sequência finita de números em qualquer outra sequência finita de números (é essa a base da criptografia e da compressão, por exemplo). Por isso é matematicamente impossível distinguir as sequências que codificam a música X das sequências que não a codificam.
A única razão porque parece haver distinção é que muitos utilizadores (e, infelizmente, os juristas e legisladores) não compreendem a tecnologia e só se guiam pelos bonecos que vêm associados aos ficheiros no Windows. Mas é fácil de ver o problema pela impossibilidade de criar um teste específico para decidir se um certo ficheiro descreve uma certa obra.
Felizmente, é desnecessário fazer isto no domínio digital porque a distribuição digital é efectivamente gratuita. Assim não é preciso estar a proteger o negócio dos intermediários, que deixam de ser necessários, e pode o criador vender o seu trabalho ao consumidor em vez de o vender ao intermediário que cobra pela cópia.
Acompanho essa discussão de longe, apesar do interesse direto, tanto como consumidor de informação quanto como produtor de informação, com livro (em papel) publicado e tudo.
Nunca pensei em ganhar dinheiro com publicação de livro, até porque tenho outra profissão que me sustenta (juiz e professor). Fiquei feliz em ter recebido, em quatro meses, praticamente dois mil euros com a venda do meu primeiro livro. E ele continua vendendo. Até onde sei, ainda não está no emule, nem no scribd ou algo parecido. Pela experiência que tenho, os livros que são “copirateados” são os livros que fazem mais sucesso entre os alunos. Ainda não tenho esse privilégio.
Os escritores (não sei os músicos) terão mercado por algum tempo, pois os computadores ainda não conseguiram substituir os livros.
Mas, já especulando, penso que, no futuro, a informação deverá ser totalmente gratuita sem qualquer restrição. Conhecimento objetivo não deve ter dono. O pior tipo de discriminação que pode existir é a discriminação de conteúdo.É inconcebível que uma pessoa seja melhor do que a outra só porque não teve condições de pagar por uma informação. Todos devem ter o mesmo acesso às mesmas informações. Penso isso como proposta ética, sem pensar num utilitarismo de curto prazo. Talvez eu esteja sendo ingênuo. Pode ser que o Desidério tenha razão ao dizer que isso torna inviável a própria produção do conhecimento objetivo. Não sei. De minha parte, produzi mais depois que comecei a me utilizar da informação disponibilizada pela internet do que na época em que tinha acesso apenas aos livros da biblioteca. Hoje, não me imagino pagando por uma informação pela internet. Posso até não ter a melhor informação, mas tenho sem dúvida tanta informação gratuita que será impossível consumi-la até o fim da minha vida.
É o que penso.
George Marmelstein
Caro Ludwig Krippahl,
De facto sou bem representativo da minha classe no que toca a conhecimentos informaticos (portanto sou um zero à esquerda nessa matéria). Ainda assim, estou a tentar compreender em que medida as nossas categorias tradicionais continuam a poder aplicar-se.
Vamos supor que eu escrevi uma obra prima, no papel. Posso ficar com ela na gaveta, ou guarda-la para os meus familiares. Mas posso também escolher uma editora e ceder-lhe o direito de imprimir e publicar a tal obra prima em livro. Neste caso, poderei exigir que sejam respeitados os meus direitos :
a) morais (em todos os casos): direito de ser citado como autor, de não ver a minha obra desvirtuada, ou adulterada, de não ser plagiado, etc.
b) patrimoniais (se fôr caso disso): direito de receber a contrapartida em troca da qual cedi ao editor o direito de publicar a obra (em x exemplares, ou em n exemplares durante y anos, pelo preço z, etc.)
Repare que, mesmo quando o autor reservou os seus direitos patrimoniais (para o editor nas condições estipuladas), havera sempre uma certa margem de liberdade no uso dos livros postos à venda. Por exemplo, o autor não podera andar atras das pessoas que emprestam a terceiros os livros que compraram. Também não podera protestar contra quem conta o que se passa no livro num jantar de amigos, etc. No entanto, vai dispôr de meios para impedir que a obra seja editada por outras pessoas (mesmo com o seu nome), e isto mesmo se se tratar de formas de edição mais ou menos veladas. Este problema-se levanta-se com as famosas fotocopias (criticaveis a partir do momento em que excedem largamente o âmbito de um uso "privativo"), levanta-se talvez também com algumas formas de obras "derivadas" tais como resumos, versões para crianças, adaptações etc.
Ora, se eu bem percebi o que você esta a dizer, o problema com as obras disponibilizadas na Internet é que é impossivel impedir a copia, e mesmo impossivel determinar se estamos ou não perante uma copia.
1/ A questão da prova parece-me secundaria. Quem consegue encontrar a chave, conseguira provar que a pessoa que detinha os dados, detinha também o processo de reproduzir a obra sem autorização. Bom admito que haja aqui uma dificuldade técnica, mas não sei até que ponto é determinante.
2/ Quanto à questão de não haver direitos sobre o “suporte” (« porque qualquer sequência de números, ou qualquer função ou funções matemáticas que as gerem, já eram domínio público antes dos CD e MP3 ») receio que se trate de uma falsa questão. Repare que também poderiamos defender que quem imprime em papel uma obra editada (que não esta no dominio publico) não lesa ninguém, porque não esta a utilizar papel e tinta roubados. A questão não esta no papel, nem na tinta, nem na sequência de numeros, mas sim na propria reprodução da obra em detrimento do direito exclusivo cedido ao editor. Desde que a obra seja reconhecivel, parece-me dificil negar que ha reprodução, e é quanto basta para haver infracção, pelo menos na medida em que a reprodução vier impedir, ou restringir, o exercicio do direito adquirido pelo editor (ou reservado pelo autor).
3/ A questão de saber em que medida a copia digital (?) pode ser considerada uma forma de utilização privativa parece-me ser mais pertinente.
Bom não sei se fui claro mas, resumindo, continuo com duvidas...
Abraços
Acho que o que o Ludwig diz é que como tudo é codificado como uma sequência numérica basta um conjunto de macacos a martelar para originar, no tempo, a sequência de qualquer obra. E como não pode ser proibido ter macacos em casa a martelar é absurdo salvaguardar qualquer sequência de números.
Isto dos direitos de autor chega ao absurdo de haverem registros de autor do cancioneiro popular português, isto é, caramelos que andaram por ai a trotear o país e a registar o que as pessoas cantam e depois registara-no como seu. Se isto não é absurdo...
Caros,
O comentario do Kyriu aponta na direcção certa, mas parece-me errar no essencial.
Tratando-se do cancioneiro, ha que distinguir. Por um lado existem as proprias historias, lendas, lemas, etc. (o tema, o enredo, a moral) que podem ser, e normalmente são, de autoria "popular" ou seja difusa e em relação às quais ninguém nega, pelo menos tanto quanto sei, estarem no dominio publico. Por outro lado existem transcrições, que podem ser objecto de propriedade intelectual exactamente como uma tradução (tradução que apenas reproduz noutra lingua uma obra original).
Mais uma vez, o que me parece faltar em muitos comentarios, é uma noção precisa do objecto do direito de propriedade intelectual. Não é a ideia, é apenas a forma particular de a materialisar num texto, ou numa obra pictorica, ou musical. Trata-se portanto de uma realidade essencialmente formal, mas que não se confunde com a ideia. Platão não é dono do idealismo, nem Walt Disney dono da ideia de representar um rato com traços antropomorficos (exemplo dado na Wikipédia, a que aludi no outro dia em conversa com o Vitor Guerreiro). Platão é autor de textos como "O Sofista", "O banquete", etc. que expõem (superiormente) uma filosofia idealista. Walt Disney é o autor do boneco que conhecemos por Rato Mickey. Essa autoria acarreta direitos e deve ser respeitada, excluindo que outros reproduzam esses textos, ou esse boneco, como se fossem eles os autores. E esses direitos têm, como tentei explicar acima, uma vertente "moral" e uma vertente "patrimonial".
Quanto a mim, a forma como o Kyriu resumiu a tese exposta por Ludwig Krippahl mostra bem o que ela tem de falacioso. E' certo que, em teoria, qualquer pessoa pode encontrar por si, espontaneamente, sem qualquer tipo de copia ou de aproveitamento indevido da obra de outrem, a sequência de numeros que permite representar na tela uma obra pré-existente. Mas parece-me a mim (que sou leigo) que a probabilidade disso acontecer é proxima da probabilidade de uma pessoa escrever o texto de "O Sofista" atirando ao calhas para uma folha de papel palavras que foi buscar ao dicionario(e que estão do dominio publico).
Por isso continuo a pensar que as especifidades da Internet em relação ao que existia antes nem são assim tão importantes.
E, mais uma vez, continuo a pensar que a faculdade de reservar direitos não é, nem nunca foi, uma obrigação. Ha, sempre houve, e sempre havera escolha. O autor de um texto pode reservar-se (ou a uma editora) o direito de o editar (reservando-se mais concretamente o direito de explorar directamente os rendimentos da edição). Mas também pode decidir que disponibiliza o texto para o uso de todos, sem qualquer contrapartida. E é bom que assim seja.
O que é complicado, é perceber o que é que implica exactamente uma publicação na Internet : tratar-se-a de uma publicação de tipo classico, com a possibilidade de reservar direitos (assim é que me parece ser entendida usualmente), ou antes de uma forma de utilização "privada" de obras pré-existentes, que não deve ser entendida como uma restrição aos direitos de edição objecto da licença conferida pelo autor ao(s) seu(s) editor(es) em papel ou noutros suportes.
Pelo que me toca, acho dificil de defender esta segunda posição.
E finalmente, nada do que foi exposto obsta a que nos interroguemos sobre a coerência do conceito de "propiedade intelectual".
Boa continuação
Caro João, alguns comentários:
- primeiro, sobre os macacos, acho que deve haver um balanço, concedido por todos, de comum acordo, e assim traduzido na lei, de algo que em linguagem de leigo chamaria "tive esta ideia primeiro", que é uma metáfora para "gerei esta sequência numérica primeiro". Isto apenas porque reconheço que o incentivo a reconhecer o "cheguei cá primeiro" fomenta o interesse por estar na corrida. Mas este cheguei cá primeiro deve ser balançado pelo facto que ninguém chega primeiro a lado algum sem comer digerir o espinafre marinado na cultura em que está imerso. É por isso que o direito de autor deve ser limitado no tempo. E o ponto onde ele deve ser limitado é aquele que permite que haja incentivo há criação sem cortar as pernas aos outros que querem criar. Situação que não existe neste momento. Porque todos falam em "direitos morais" e a maior parte equaciona "direitos morais" como "direitos" concedidos no alto do Sinai a um gajo barbudo e, por isso, intocáveis.
Há um aspecto sobremaneira importante referido pelo "direitos fundamentais". Que a qualidade/quantidade do que criou aumentou exponencialmente com o acesso livre à informação. Desconheço realidade histórica em que a selectidade do acesso à informação tenha promovido uma taxa maior de desenvolvimento humano que a sua disponibilização generalizada. E acho também que de forma objectiva é por aí que se deve partir. Afinal esta lenga-lenga toda parece-me um bando de senhores no clube de cavalheiros a tirar hipóteses do cucuroto da cabeça sem números de suporte. Penso que estão aqui nozes para o pensamento que justificariam vários estudos em economia/sociologia não? Da dinâmica cultural e económica. Porque o balanço parece-me ser esse. Disponibilizar a baixo custo aumenta, potencialmente, o nível mínimo de conhecimento global, a sopa torna-se mais rica, e cria-se mais. Segregar e isolar funciona no sentido contrário. O argumento colocado pelo Desidério será o de "num mundo em que não se comercializa o que se cria, não há incentivo a criar", que peca por esquecer que a maior parte das pessoas cria "porque sim" e depois vê formas de capitalizar essa criação. E outra forma de prova disto é mesmo ver que o grupo de autores que vive exclusivamente do que criou é diminuto. Para a imensa maior parte os rendimentos acabam por vir, não da venda da cópia mas da oportunidade de contacto humano (conferências, entrevistas, pareceres, etc). Assiste-se, ou vê-se, cada vez mais, que as pessoas têm mais facilidade em largar patacos pelo social do que pelo concreto e real...
Acho importante a linha do Ludwig porque, como ele, não acredito que alguém seja "dono" de nenhuma obra do pensamento. Autoria sim, dono, no sentido de proprietário da casa em que só entra quem eu quero, não. Porque isso é negar que outra pessoa, por acaso ou outras circunstâncias, possa gerar e ter as mesma ideias. Acho sim que é útil reconhecer-lhe alguns direitos temporários, uma concessão a dizer "espremer lá o teu poço de pitról por cinco anos" como incentivo a ter tido a ideia e a pô-la em prática. Mas se a concessão for absurdamente comprida, apenas uns eleitos podem usar aquele pitról para alimentar o seu motor. O que leva a um taxa menor de criação e, em determinados aspectos, a um verdadeiro controlo do que pode ser criado por quem tem o dinheiro para o fazer.
- eu percebo o que diz sobre "traduções" mas gostava que o explica-se a uma velhinha da Beira Alta a quem um janota da capital assomou de gravador em punho e fixou a sua voz no magnetofone, que as palavras que acabou de cantar já não pertencem a todos e, no limite, em tribunal de lei, se as voltar a cantar em público, tem de pagar contas de direitos ao dito caramelo.
desculpem ter-me alargado assim
Caro Kyriu,
Concordo com muito do que você diz. Ja expus longamente (noutros posts) porque é que a forma como o Desidério encara a questão me parece redutora : as trocas comerciais são apenas uma maneira de trocar bens.
A tese do Ludwig Krippahl parece-me cair noutro tipo de excesso. E' que o proposito dos direitos de autor não se resume a privilegiar quem foi o primeiro a encontrar uma sequência numérica. Pretende-se se proteger, não uma ideia (as ideias são bens comuns), mas a forma particular como se encontra materializada, na dupla medida em que i) tem o cunho pessoal de quem criou a obra (direito moral) e ii) custou trabalho ao autor e é legitimo que ele pretenda ver esse trabalho remunerado (embora possa renunciar a isso).
Se entendi bem a tese do Krippahl, deveriamos entender que quem publica, precisamente porque publica, renuncia definitivamente ao direito de controlar as reproduções da obra (a não ser, talvez, na medida em que pode opôr-se a que a obra seja desvirtuada, ou referida como criação de outrem). Então, de facto, o preço a pagar para poder dispôr de uma copia da obra seria unicamente função do custo de reprodução.
Isto parece-me excessivo, e contraproducente. Um autor que quisesse viver da sua arte, teria de renunciar, pelo menos num primeiro momento, a torna-la publica e que inventar outras maneiras de obter uma contrapartida pelo seu trabalho junto daqueles que manifestam interesse pelas suas obras...
Quanto ao que diz sobre a falta de legitimidade para alguém se apropriar uma obra do pensamento, não me parece reflectir o estado do direito. Em rigor, se alguém puder provar que inventou por si, sem recorrer à copia, uma obra literaria que coincide exactamente com o Memorial do Convento, não pode ser sancionado se a publicar. Num dos seus melhores contos, Borges imagina um individuo (Pierre Ménard) que tenta re-escrever o "dom Quixote" de Cervantes, pondo-se em situação de o criar, como se inventasse a obra ab initio. Trata-se de uma hipotese absurda, mas supondo que o Pierre Ménard conseguisse escrever o romance sem nunca recorrer à obra de Cervantes, teria criado uma obra original, protegida como tal...
Isto para dizer que o que é censurado na copia ilicita, não é a reprodução da ideia ou do pensamento, é antes o facto de se copiar uma obra pré-existente, aproveitando-se do trabalho de outrem (trabalho que consiste em criar uma determinada forma, original,de ordenar palavras, notas, tons, numeros, etc.). Portanto a censura so tem sentido, e so existe em teoria, na medida em que existe copia, ou seja utilização indevida de um bem sobre o qual existem direitos exclusivos. Ninguém é sancionado pelo simples facto de contar a historia do Memorial do convento. O que pode suceder é uma pessoa ser sancionada por ter copiado, indevidamente, o texto escrito por José Saramago. E repare que não basta copia-lo para ser sancionado. Se eu recopiar num caderno o texto do Memorial do convento, porque me agrada lê-lo escrito com a minha letra, e me limitar a guardar o caderno na minha gaveta, não me acontece nada, mesmo que a policia venha a saber da existência desse caderno...
Dito isto, é legitimo questionar se o nosso sistema de protecção dos direitos de autor, sistema relativamente recente, é ou não a melhor forma de proteger os interesses legitimos dos autores, tais como foram caracterizados acima.
Nessa perspectiva, não deixa de ser interessante notar que o sistema apenas funciona em relação a uma infima parte das obras criadas e publicadas, o que parece indicar que se apoia numa certa hipocrisia.
E, digo eu, mesmo em relação às poucas obras para as quais funciona plenamente, o sistema tem efeitos perversos : por exemplo permite que os herdeiros possam opôr-se à publicação, ou à re-edição de uma obra, mesmo quando é liquido que o autor teria dado o seu consentimento, etc.
Boa continuação
mais algumas nozes para trincar:
http://www.huffingtonpost.com/gary-shapiro/copyright-needs-limits-as_b_208064.html
João Viegas,
No domínio analógico ou da língua natural temos formas consensuais de distinguir o que é a cópia de alguma expressão artística e o que não é a cópia mas mero comentário, descrição ou algo não relacionado.
Por exemplo, uma cópia deste texto será algo que, nesta ou noutra língua, se leia de forma semelhante. Mas uma tabela que indique as coordenadas x e y de cada ocorrência de cada letra do abecedário neste texto não será uma cópia do texto mas apenas uma descrição.
Ou se eu pintar num quadro um conjunto de figura geométricas uma fotografia ou fotocópia serão cópias da minha obra mas o conjunto de equações matemáticas que definem essas figuras não é uma cópia do quadro.
No domínio digital só lidamos com números e operações algébricas. Tudo neste domínio são descrições numéricas e nada é cópia a não ser de números. E copiar números sempre foi lícito, desde que não se violasse a privacidade ou segredo.
O que eu defendo é que tomar a descrição como sendo uma cópia transforma o "direito" patrimonial do autor em censura. Isto é inaceitável, ainda para mais porque este aspecto dos direitos de autor não é um direito no pleno sentido da palavra mas uma forma de incentivo à criatividade. Os direitos morais são direitos. Os patrimoniais são negócio, e podem ser vendidos, alugados, etc.
Mas nada impede que se incentive os autores regulando a exploração comercial da sua obra. Porque, nesse caso, não precisamos lidar com problemas de liberdade de expressão, distinguir cópias e descrições ou tentar retalhar a matemática em coutadas proprietárias. Basta estipular que o autor de uma obra tem direito, durante algum tempo, a receber comparticipação dos lucros que resultem da exploração dessa obra, seja de que forma for.
Mas isto assumindo que queremos esse mecanismo de incentivo. Melhor ainda é o autor receber pelo seu trabalho, com um contrato. Isto porque quem tem uma ideia e a divulga tem todo o direito moral de lhe ser reconhecida a autoria e de não atentarem contra a sua criação mas, por outro lado, quem faz algo que ninguém lhe encomendou e o divulga não tem justificação nenhuma para exigir dinheiro por isso.
Caro Ludwig,
Interessante.
Intuitivamente, parece-me que o que conta (ou pelo menos o que devia contar) é saber se estamos perante uma reprodução de uma obra pre-existente, ou perante a representação de uma obra original. De facto, o que você diz levanta uma questão para o jurista, pois estamos habituados à ideia de que a obra é uma realidade (formal) que tem uma existência propria, e merece protecção, independemente do suporte. Esta portanto implicito que é sempre possivel identificar a "representação" da obra, seja qual fôr o suporte, e que a obra não passa a ser outra se reproduzida em suporte diferente, nem alias quando passa a estar integrada numa obra mais ampla, como parte dela.
Isto levaria a concluir que a sequência de numeros que permite obter uma reprodução da obra, desde que obtida a partir da obra original (ou de uma copia desta), constitui uma forma de aproveitamento da obra (portanto uma copia). Mas você diz, se bem entendi, que isto não se passa assim no universo digital...
Ha depois a questão de saber se o facto de a pôr na Internet é uma utilização privativa ou não, mas esta questão é distinta, pelo menos conceptualmente.
Bom estou sem tempo para pensar. Vou tentar voltar para a semana, aqui ou no seu blogue (ja vi que tem um), se me der licença.
Bom fim de semana.
O Ludwig levanta umas questões interessantes. É de facto um pouco ridículo, que os autores possam reclamar direitos sobre todas as representações numéricas das suas obras. Se uma obra for um 5, como pode o autor ter direito a sequências como 11111, 221, etc, que se podem transformar em 5 somando-se todos os algarismos? É uma simplificação mas já temos aqui várias sequências numéricas passíveis de serem consideradas “reproduções da obra” mesmo sem sairmos dos números inteiros e da operação algébrica mais simples.
Mais! Que direito tem o autor de processar os intervenientes ou organizadores de sistemas em que os utilizadores enviam uns aos outros alguns algarismos de uma destas sequências até que todos consigam reconstituir o 5? É este basicamente o funcionamento do BitTorrent e outros sistemas de partilha de ficheiros. Ninguém envia a ninguém o ficheiro completo, apenas uma parte.
Porém, no caso de uma obra real, grande e extensa, como um filme, é praticamente impossível gerar uma sequência numérica representativa sem ser a partir da obra. Podemos meter todos os macacos do mundo a digitar sequências de 5,6 mil milhões de 1s e 0s (700MB x 8) que jamais chegariam a digitar uma sequência passível de ser descodificada, através dos algoritmos conhecidos e em uso corrente, na “workprint” do filme do Wolverine que circulou na net antes do filme estrear. Não… quem meteu o filme a circular teve acesso à obra, não digitou a sequência por si. Mesmo que se metessem todos os computadores do mundo a trabalhar nesta tarefa teríamos de esperar uns anos (milhares? milhões?) para se conseguir essa proeza. É um pouco como a física quântica, em que pode se calcular a probabilidade de alguém desaparecer e voltar a aparecer do outro lado de uma parede. É possível, mas teríamos de esperar mais tempo do que a idade do universo para vermos tal coisa acontecer. No caso de um livro ou uma música, ficheiros muito mais pequenos, seria mais fácil, mas mesmo assim…
Sim, é verdade que uma vez obtida uma sequência que represente uma obra, a podemos transformar de infinitas formas. Há um número infinito de funções matemáticas que se podem aplicar, e podemos sempre voltar atrás e reconstruir a obra se soubermos quais foram essas funções (é o principio da criptografia). Podemos dizer que se eu encriptar o texto de um livro, desde que eu saiba como o descodificar não deixo de ter a obra. Já se não o souber, tenho apenas uma sequência de caracteres sem sentido.
Ludwig, eu concordo com a tua posição que os direitos de autor têm de ser alterados face às novas realidades, mas não me parece que este argumento consiga convencer muita gente (excepto talvez alguns matemáticos :D). A própria lei confere protecção às obras independentemente da forma em que forem fixadas.
Quanto aos outros argumentos, espero cá vir mais tarde pronunciar-me.
Muitos autores e artistas, pelo menos no cinema, TV e na música, já trabalham com orçamento e contracto (podendo depois eventualmente receber também uma percentagem das vendas). Aos escritores mais conhecidos, as editoras também fazem “adiantamentos”. Ou seja, são empresas que produzem ou contratam a produção dos conteúdos, com a expectativa de depois os conseguirem vender ou rentabilizar de outras formas.
O princípio de “quem quer usufruir dos produtos [de um] criador deve pagar” começa logo a cair por aqui. Todos vemos TV e ouvimos rádio sem pagar nada directamente aos autores/criadores. As rádios pagam por nós uma taxa à SPA, que por sua vez a distribui (ou devia), e sustentam-se com publicidade. Os canais de TV contratam a produção de programas, séries, etc, com vista a atrair espectadores, vendendo depois publicidade nesses conteúdos. Nos jornais e revistas idem aspas. O preço de capa mal paga a impressão e distribuição. A publicidade paga a produção. Na informação online os leitores nem pagam nada. Há muita gente nessas actividades a achar que está no “negócio dos conteúdos”. Acham que vendem conteúdos. Mas não. Vendem sim aos patrocinadores o acesso aos seus leitores/espectadores/ouvintes.
Ninguém paga directamente para usufruir desses conteúdos (excepto nos canais cabo), e não está a “roubar” os criadores por isso. Nem que vão à casa de banho ou mudem de canal no intervalo da novela. É tudo uma questão de modelo de negócio; de arranjar formas alternativas de financiar as coisas.
O problema é que ainda há muita gente a apostar na venda directa de cópias de conteúdos como a música, livros ou filmes, e esse modelo de negócio já não funciona muito bem. Quando a capacidade de fazer e distribuir cópias só estava ao alcance de meia dúzia de empresas, a coisa funcionava. Vendiam o que o simples cidadão não podia fazer por si – a obra num suporte de qualidade. O simples facto de se produzir centenas ou milhares de cópias era um investimento avultado que precisava ser recompensado. Este foi um modelo de negócio tornado possível pela tecnologia (que permitiu gravar e reproduzir conteúdos). Mas o que a evolução tecnológica deu a certa altura, agora tirou. Agora todos têm hipóteses de produzir cópias de qualidade a custo zero ou muito reduzido e distribui-las entre si. O preço atribuído pelo mercado a uma cópia caiu efectivamente para zero, por muito que esperneiem aqueles que querem continuar a vendê-las a preço avultado.
Não creio que sejam apelos à moral e ao respeito pela “propriedade intelectual” que vão contrariar isso de forma eficaz. Pelo contrário, os instintos morais de muita gente (eu incluído) dizem-lhes que agora finalmente podemos tornar realidade o velho ideal de que todos tenham acesso à informação e cultura independentemente das suas posses, e que a “propriedade intelectual” não se pode sobrepor a isso. Já é por isso que existem as bibliotecas, e excepções na legislação actual para elas. Além disso ninguém tem dinheiro para comprar tudo o que deseja. Por outro lado também não é possível obrigar ao respeito pela PI sem entrar na vida privada das pessoas e atropelar uma série de direitos fundamentais.
Cada vez estou mais convencido que esta questão não é um “problema” legal ou moral. É um problema de modelos de negócio obsoletos, que têm de mudar para se adaptarem às novas realidades do mercado. Há que aproveitar por exemplo a distribuição gratuita dos conteúdos para promover e/ou dar valor a outras coisas pelas quais as pessoas estejam dispostas a pagar. No campo da música já há gente a fazê-lo com sucesso. Até aqui usava-se a música gratuita na rádio para promover a venda dos álbuns completos. Agora é dar um passo à frente e usar os álbuns em MP3 gratuitos para promover concertos, edições especiais com DVDs, posters autografados, acesso aos artistas, etc, etc. Há uma variedade de artistas a fazerem experiências neste campo. E mesmo assim ainda conseguem continuar a vender os seus álbuns em CD ou MP3; como os Nine Inch Nails, cujo álbum de 2008 foi o 2º mais vendido na loja de MP3 da Amazon, apesar de o terem colocado legalmente no Pirate Bay e outros sites. Outros recorrem aos admiradores mais fanáticos para financiarem com donativos os seus próximos álbuns. Tudo modelos que aproveitam as características da internet em vez de as tentarem matar.
Também na literatura há quem disponibilize os livros gratuitamente na internet para promover a venda de livros físicos (o Paulo Coelho por exemplo tem um blog onde agrega os vários torrents dos seus livros).
E a verdade é que apesar de todas as queixas contra a “pirataria”, todas as acusações de “roubo”, todas as previsões catastrofistas, os únicos sectores de conteúdos a sofrer quebras acentuadas de receitas nos últimos anos, são a venda de rodelas de plástico com música e o aluguer de filmes. E essas quebras (além de terem outros motivos de relevo) são compensadas com o crescimento de receitas de concertos, toques para telemóveis, idas ao cinema, etc, pelo que globalmente tanto a música como o cinema continuam saudáveis.
Nelson Cruz,
Concordo que com uma obra normal podemos, em teoria, determinar pela origem da sequência ou pelo seu uso se se trata de uma descrição daquela obra. Digo em teoria porque, na prática, com encriptação, isso já não é verdade. Mas não disputo o princípio que medir as coordenadas de uma centena de milhar de pontos à superficie de uma estátua é uma descrição da estátua e não uma sequência qualquer.
O que disputo é que alguém possa ser considerado proprietário dessa descrição, de qualquer descrição dessa descrição e assim por diante até ao infinito.
Proibir que se crie, sem autorização, discos de vinil com riscos tais que naquele leitor soem àquela música pode ser uma forma aceitável de financiar a distribuição destes discos.
Mas proibir que se distribua sob qualquer forma informação suficiente para recriar a música passa da regulação de formas específicas de fixar a obra para regular qualquer expressão acerca da obra. E isso é uma violação inaceitável da nossa liberdade de expressão.
É nesse patamar que está a lei destes "direitos" de autor no domínio digital. Não na regulação de formas específicas de distribuir a obra mas na censura de toda a informação detalhada acerca da obra.
Ludwig,
Do ponto de vista jurídico, creio que a coisa será ou poderá ser vista de outra forma. Não é que o autor seja “proprietário” ou tenha direitos sobre todas as descrições matemáticas da sua obra, mas que estas ao serem criadas a partir da sua obra, requerem sua autorização. Por exemplo um filme em DVD, tem a um sequência binária própria. Ao ser convertido para DivX é criada uma nova sequência (mais curta), uma nova descrição da obra. Esta nova sequência é criada a partir da “original”, e pode ser usada para reproduzir ou usufruir da obra (tal como os riscos num disco de vinil, ou as covas num CD). A analogia com a tradução de um livro não é totalmente descabida. Claro que na prática a distinção entre ser “propriedade do autor” ou ter sido criada a partir da sua obra sem autorização é pequena. Embora do meu ponto de vista já se possa questionar a legitimidade dos autores para perseguirem quem distribui estas cópias e não apenas quem as criou.
Porém não nos podemos esquecer que a chamada “propriedade intelectual” não passa de um conjunto de regulações de um mercado e de trocas comerciais, disfarçadas de “direitos”. São monopólios impostos por lei. Os juízes e legisladores têm tendência a ignorar estes argumentos mais “filosóficos” e “teóricos” e focarem-se nos práticos (“os pobrezinhos dos artistas têm de ganhar a vida”).
Quanto aos direitos de autor colidirem com a liberdade de expressão não discuto (e é uma questão que já começa a ser colocada em alguns casos nos EUA). E na internet estão a ser usados para atentar não só contra a liberdade de expressão, mas também contra o direito à privacidade e à confidencialidade das comunicações. Os direitos de autor estão até a servir de barreira à criação (em vez de a incentivar como originalmente concebidos) quando são usados para proibir por exemplo a inclusão de uma música ou parte dela num vídeo no youtube, ou numa nova música. Estas constituem novas criações que geralmente em nada interferem com a exploração comercial das obras originais, podendo até divulga-las, e a questão de eventualmente “desvirtuarem” a obra original… é uma questão de gosto. Ainda na semana passada conheci uma música nova que adorei só porque alguém a usou como banda sonora num vídeo no youtube. E ninguém vai deixar de gostar do White Album dos Beattles só porque o DJ Danger Mouse o misturou com o Black Album do Jay-Z.
Mas a maioria dos problemas surge do facto dos direitos (patrimoniais) dos autores terem sido criados como uma regulação de trocas exclusivamente comerciais, e que agora estão a ser tratados quase como se tratassem do 11º mandamento entregue a Moisés, e a serem aplicados à vida privada de cada um e a trocas não comerciais. Pior ainda, passaram de uma curta excepção ao domínio público que durava 14 anos, para agora variarem entre 50 após a gravação até 70 após a morte do autor. O domínio público (o acesso livre a todos) que era tido como desejável e o ideal, é agora tratado como se fosse um bicho papão que vai comer as obras se esses prazos não forem aumentados! É uma usurpação à cultura que é (ou devia ser) de todos. As grandes multinacionais mascaram os seus interesses com os “pobrezinhos dos artistas” e os legisladores lá vão abrindo mão daquilo que é de todos.
(cont.)
Ocorre-me que talvez precisemos nesta era da internet de um novo equilíbrio, não com o domínio público, mas com o domínio privado. Que tal um período de 6 meses a 2 anos (no máximo!) após a comercialização de uma obra em qualquer parte do mundo, em que todo o acesso ou utilização não explicitamente autorizada, mesmo privada e não comercial, seria estritamente proibida, findo o qual seria livre a utilização para fins privados e não comerciais? Nesse caso já não me oporia tanto a que se perseguissem sites como o Pirate Bay que dão acesso (mesmo que indirecto) a esses conteúdos, ou até que se metessem os ISPs ao barulho. Poucos serão os filmes e álbuns que não realizam 90% das receitas num período de 2 anos. Dava-se a hipótese às editoras de recuperar os investimentos sem limitar demasiado a liberdade de cada um. Não seria fácil de fazer respeitar sem violar direitos, nem nunca seria respeitado a 100%, mas era melhor que nada (para ambos os lados).
Ludwig:
«Por exemplo, uma cópia deste texto será algo que, nesta ou noutra língua, se leia de forma semelhante. Mas uma tabela que indique as coordenadas x e y de cada ocorrência de cada letra do abecedário neste texto não será uma cópia do texto mas apenas uma descrição.»
Vejo que existe um progresso.
Da última vez que discutimos este assunto em particular alegavas que sendo o texto uma "cadeia de caracteres", uma tradução para outra língua correspondia a um texto diferente, e logo o autor do texto traduzido era apenas o tradutor e o autor do "texto original" (um conceito vazio de sentido desse ponto de vista) não tinha qualquer autoria.
Lembro-me de te recordar do absurdo que era alegar que o autor do livro "A Fundação" que cá tenho em casa era exclusivamente o seu tradutor (que não conheço) e não o Isaak Asimov.
O problema de teres evoluido o teu ponto de vista para acreditares em algo mais razoável prende-se com o problema que agora crias em distinguir uma "tradução" de uma "descrição extremamente precisa".
é que quando eu descrevo uma foto, geralmente existe perda de informação. Uma perda muito significativa. E "descrição" tem um pouco esta conotação de algo bastante incompleto a comparar com o "original". Eu descrevo um livro que demora várias horas a ler, provavelmente em menos de uma hora. Se demorar mais tempo que aquele que demora a ler o livro (sem análise nem reflexão, apenas descrição) mais vale lê-lo.
Por outro lado uma descrição tem menos de "automático" que uma tradução. A tradução tem algo de original, e por isso os programas que a tentam automatizar funcionam muito mal; mas um programa que seja capaz de ler um livro e "descrever" (no sentido comum) a história nem sequer existe!
Assim, pegar numa cadeia de caracteres e seguir um conjunto de regras mecânicas para os codificar é uma actividade que está muito mais próxima da tradução do que da descrição.
Em dois níveis: em relação à originalidade; e em relação à perda de informação.
Mais, formalmente é possível descrever essa codificação como uma tradução. Não existem línguas naturais em que a tradução de uma para outra não envolva alguma perda de informação/originalidade; mas formalmente nada impede que isso pudesse existir. Em teoria qualquer aplicação de regras mecânicas sobre uma cadeia de caracteres (ou de bits) poderia corresponder à tradução de uma língua para outra.
Assim, se alguém "criou" um ficheiro com 0s e 1s, o qual descodificado de certa forma (conhecida) corresponde aos Lusíadas, muito provavelmente codificou os Lusíadas. O grau de improbabilidade de qualquer outra hipótese é semelhante ao cenário em que eu publico os Lusíadas como se fossem um livro meu, alegando que se trata de um livro de receitas culinárias escrito em JoãoVasquês; uma linguagem criada por mim; e estou mesmo a falar verdade.
Nelson Cruz,
Estou de acordo com a análise, mas discordo da proposta :)
Aceito realmente uma distinção entre público e privado. Se alguém escreve um poema e o guarda na gaveta deve ser punido por violação da sua privacidade quem publique o poema sem autorização.
Mas uma vez que, voluntariamente, o autor põe a sua obra à disposição do publico, seja para ganho monetário seja pelo que for, deixa de poder reclamar direitos exclusivos sobre o usufruto ou mesmo distribuição da obra. Por exemplo, nunca deverá o músico poder proibir alguém de cantar aquela canção no duche, nem mesmo durante seis meses.
O que se pode fazer é regular a exploração comercial da obra para que o autor tenha direito a uma parte dos lucros e para que isso sirva de incentivo à criatividade. Mas isso não se trata de um direito pessoal mas sim de uma forma de subsidio por via legal e, como tal, nunca deverá interferir com verdadeiros direitos (privacidade, liberdade de expressão, acesso à cultura, etc.)
Penso que a solução mais adequada é a concessão de um monopólio legal sobre a exploração comercial (ou, talvez melhor ainda, simplesmente um direito legal à comparticipação dos lucros), mas mantendo isto completamente fora das actividades pessoais de expressão, acesso à cultura, troca de informação, etc, que as pessoas fazem se fins lucrativos.
João Vasco,
«Vejo que existe um progresso.
Da última vez que discutimos este assunto em particular alegavas que sendo o texto uma "cadeia de caracteres", uma tradução para outra língua correspondia a um texto diferente»
Não era essa a distinção relevante. Cito abaixo o email que te enviei no dia 2 de Março de 2008, acerca desta discussão:
«O autor tem uma ideia I. I é um padrão de actividade cerebral. O autor exprime a ideia por meio de E, sendo E algo capaz de fazer pessoas parecidas ao autor apreender a ideia I (ter no seu cérebro um padrão semelhante[...])
Uma cópia de E será um E' que partilha com E esta capacidade de gerar I na mente de alguém.
D é uma descrição de E quando processada de forma a gerar um E. D, ao contrário de E, não precisa de ser interpretada por algo inteligente...»
A diferença entre a tradução e uma codificação arbitrária é que a tradução (uma cópia da ideia) está restrita pelo que o nosso sistema cognitivo consegue processar e a codificação (descrição) não está.
Por extensão, podemos considerar um disco de vinil, ou até um CD audio, uma cópia da música, porque estamos a restringir esta relação a uma forma particular de interpretar aqueles sinais.
Mas isto é porque se, por exemplo, inverteres todos os bits do CD deixa de ser um CD daquela música. Pões a tocar da mesma maneira e sai um ruido completamente diferente. Como há uma maneira específica de tocar um CD e intepretar o que lá está, esta distinção é possível e podes estender ao CD esta noção de cópia.
Mas isto deixa de ser válido para os ficheiros de computador em geral. Se a lei disser que um dado mp3 é cópia da música mas que invertendo todos os bits deixa de ser cópia daquela música, basta fazer clientes p2p que invertem os bits ao transmitir e receber os dados e pronto, ninguém legalmente será acusado de trocar aquela música.
«Assim, se alguém "criou" um ficheiro com 0s e 1s, o qual descodificado de certa forma (conhecida) corresponde aos Lusíadas, muito provavelmente codificou os Lusíadas.»
É verdade. Mas há uma diferença importante entre proibir a distribuição de formas específicas de expressar Os Lusíadas -- textos em língua natural, discos de vinil, etc -- e proibir a divulgação, sob qualquer forma, de informação detalhada acerca desta obra. A primeira pode ser uma forma aceitável de regulação comercial. A segunda é censura, porque proibe a informação em si.
Ludwig:
O e-mail que citas é anterior à discussão a que me referia. Se não acreditas que chegaste a alegar que o texto "A Fundação" não era da autoria de Isaak Asimov mas sim do indivíduo que o traduziu para português, eu dou-me ao trabalho de procurar isso. Na altura alegavas que o texto era apenas a cadeia de caracteres (uma forma objectiva de o definir) e levaste essa definição ao seu limite absurdo, que foi aquele mesmo que referi. Volto a notar que se tratou de uma discussão muito posterior à troca de mensagens a que te referes.
«Mas isto deixa de ser válido para os ficheiros de computador em geral. Se a lei disser que um dado mp3 é cópia da música mas que invertendo todos os bits deixa de ser cópia daquela música, basta fazer clientes p2p que invertem os bits ao transmitir e receber os dados e pronto, ninguém legalmente será acusado de trocar aquela música.»
Claro, qualquer limite objectivo e simples pode sempre ser contornado. Por isso é que a lei teria nesse caso de ter o grau de subjectividade que tanto te assusta.
«Esta sequência de números é uma animação criada por mim, da qual sou autor. O facto de, quando descodficada por este programa Y, ser exactamente igual a um ficheiro wav que quando tocado corresponde à última música do John Williams é uma mera coincidência». A improbabilidade desta "coincidência" faz com que a afirmação de que esta alegação é falsa esteja para além de toda a dúvida razoável.
«A segunda é censura, porque proibe a informação em si.»
Há várias limitações que aceitas à liberdade de expressão. Por exemplo, acreditas que se deve punir quem diz "esta obra é da minha autoria" quando não é.
Tu podes acreditar que não é aceitável limitar a comunicação privada entre utilizadores da internet; mas isso é uma questão diferente da questão da codificação dos ficheiros. Estão muito relacionadas, mas são diferentes.
Imagina que não existia forma diferente de codificar os wavs. Era impraticável fazer programas que alterassem os dados desse formato - um absurdo, mas imagina.
Há mesma tu dirias que impedir a livre circulação de informação privada era censura.
Repara que não se trata de ser dono de 0s e 1s. Nisto o Nelson deu-te um exemplo excelente, que eu até vou repetir.
Se tu escreveste o Harry Potter independentemente, sem nunca o teres lido, então não incorres numa ilegalidade se o editasses. O crime não é cobrares por um texto igual a outro que já existe - o crime é cobrares por um texto que não foste tu que criaste. Esta subtileza é fundamental!
Claro que esta subtileza destroi a objectividade da lei, e faz-nos guiar pelo bom senso.
Se o crime fosse publicares um livro que já existe, não havia qualquer incerteza no acto de te punir.
Mas como o crime é não teres escrito o livro, se publicares o Harry Potter dizendo que o escreveste independentemente da obra que já existia, não é 100% certo que tenhas praticado um crime. Ainda assim, dificilmente não serás punido. Porque a tua alegação é muito provavelmente falsa, e a certeza dessa falsidade está para além da dúvida razoável.
O mesmo acontece se tu crias um ficheiro de dados que "por coincidência" descodificado de acordo com instruções relativamente simples vai ser "igual" à obra que outro criou. Podes dizer que a criação é independente, mas a probabilidade de estares a mentir é tão gigantesca, que o simples acto de verificar o óbvio constitui prova suficiente da tua culpa. Ela está, repetindo esta expressão do direito anglo-saxónico pela N-ésima vez, para além de toda a dúvida razoável.
João Vasco,
Se o texto é aquela sequência de caracteres, tens uma definição rigorosa do que é o texto e podes distingui-lo daquilo que não é o texto.
Se o texto é qualquer sequência de caracteres numa lingua natural tal que transmita um certo conjunto de ideias a quem o saiba ler, então tens uma definição mais vaga mas, mesmo assim, consegues distinguir e "era uma vez" e "once upon a time" são o mesmo texto mas "çialosdçlja façlk faç" já não é.
Se defines o texto como qualquer sequência de símbolos que possa ser transformada numa certa sequência por qualquer conjunto de transformações de símbolos, então tudo é o texto.
Supõe que "abcd" é um texto teu. "wxyz" é uma cópia desse texto? É uma tradução? Tu deves ter o direito de proibir a transmissão de "wxyz", ou qualquer outra sequência, se tiver sido criada por uma transformação da sequência no teu texto?
A discussão à qual te referes está aqui. Se reparares, foste tu que insististe na definição do texto, não eu. Por exemplo, tu:
««Aquilo que quero dizer é que o texto "A fundação" foi escrito por Asimov e traduzida por um tradutor. Daqui concluo que um texto não é uma sequência de caracteres, mas sim uma ideia.»
Ao que eu respondi:
«Seja. O que se partilha nas redes p2p são sequências de bytes. As ideias são coisas nos cérebros das pessoas.»
E este é o ponto fundamental. O copyright deixou de ser a regulação de materializações específicas da ideia e foi-se tornando na proibição de transmitir a ideia em si, seja por que meio for.
«Há várias limitações que aceitas à liberdade de expressão. Por exemplo, acreditas que se deve punir quem diz "esta obra é da minha autoria" quando não é.»
Isso não é censura. É a regulação de um acto específico. Tanto que tu não tens qualquer problema em transmitir a ideia de te afirmares como autor de uma obra que não criaste. Ninguém te censura a expressão dessa ideia. Apenas não deves fazer isso. Mas podes exprimí-lo como hipotético. Até podes fazer um filme no qual tu dizes ser o autor dos Lusíadas. Desde que não tentes enganar ninguém com isso, a ideia em si é aceitável.
Mas nota que se me quiseres passar informação detalhada acerca da pressão do ar em função do tempo à saída das tuas colunas quando ouves um CD, vão te querer tramar. Seja qual for a maneira como me envies essa informação... Isso é que é censura.
«O copyright deixou de ser a regulação de materializações específicas da ideia e foi-se tornando na proibição de transmitir a ideia em si, seja por que meio for.»
Repara que o problema é perfeitamente explicado pela distinção subtil mostrada pelo Nelson.
Tu não cometes um crime por produzir uma obra igual à que já existe. Cometes um crime por copiar*.
Simplesmente, o acto de produzires algo igual ao que existe é nesses casos considerado prova de que copiaste, porque a probabilidade disso não ter acontecido é ridícula.
Neste caso, não importa o suporte ou formato da alegada obra. O que importa é se surgiram por ser uma criação tua, ou surgiram porque copiaste alguém.
E teres um conjunto de dados que feitas transformações simples torna-se perceptivelmente igual à obra é uma prova de que obtiveste esse ficheiro através da cópia e não por criação tua.
*Não estou a considerar cópias privadas de coisas que adquiriste legalmente e outros casos previstos na lei.
«Seja qual for a maneira como me envies essa informação... Isso é que é censura.»
Acho que te prendeste a um exemplo restrito, que foi o primeiro que me ocorreu. Se calhar foi um mau exemplo, mas o ponto essencial é que já existem vários limites à liberdade de expressão de todos nós.
Para quem defende o copyright esse é só mais um, e justificável.
Não é que eu defenda isso, mas acho que a questão das codificações não altera em nada esse problema. O problema é o estado imisquir-se nas comunicações privadas entre as pessoas; não é considerar que um mp3 é prova válida de que essa pessoa copiou uma música - isso obviamente é.
João Vasco,
«Tu não cometes um crime por produzir uma obra igual à que já existe. Cometes um crime por copiar*.»
É isso que eu disputo como sendo incorrecto.
Se tu desenhas num papel um risco ondulado e eu, olhando, desenho um parecido, isso é copiar. Mas se pego numa régua, meço, faço umas contas e escrevo
y=sin(0.832*x+1.114)*12.5
concordo com o Nelson que estes números não surgiram por acaso, e que esta informação foi obtida das medições que fiz ao teu desenho. Mas discordo que esta equação seja uma cópia do teu desenho. É uma abstracção que descreve um aspecto do desenho, e que pode ser usada para criar uma cópia do desenho, e que foi criada a partir do desenho, mas não é em si uma cópia.
E quando se sai da proibição da cópia para a proibição de qualquer abstracção que possa dar a informação suficiente para criar uma cópia sai-se dos direitos de autor e passa-se para a censura. Os direitos de autor são discutíveis. A censura é simplesmente inaceitável.
Já agora,
«Acho que te prendeste a um exemplo restrito, que foi o primeiro que me ocorreu. Se calhar foi um mau exemplo, mas o ponto essencial é que já existem vários limites à liberdade de expressão de todos nós.»
Proponho que não existem limites legítimos às ideias que podemos transmitir, mas sim aos actos que cometemos associados a essa transmissão. Por exemplo, a ideia, enquanto tal, de tu roubares carros, não é proibida. Não há nada que me proiba de exprimir essa ideia enquanto conceito abstracto, hipotético ou mesmo como negação. Se eu disser "o João Vasco não rouba carros" estou a exprimir a ideia de tu roubares carros, e é legítimo fazê-lo assim.
O limite à minha liberdade de expressão não é a ideia em si, mas os actos específicos de te acusar de roubar carros, ou de te imputar esse crime perante outros, etc.
Mas nota que um análogo disto no caso dos mp3 seria aceitar como legitimo e legal alguém pôr numa página na net "Atenção: esta sequência de bytes descreve uma música proprietária que não deve ser transmitida sem a autorização dos editores: 0F B8 AC 25 ..."
Ludwig,
Sobre o exemplo do seno tenho a dizer o seguinte: se tu escreves um texto assim "a", não estás obviamente a "copiar" outro indivíduo que o tenha feito, por muito que ambos os textos sejam exactamente iguais.
A lei que temos não julga os actos independentemente das intenções que os motivam. Matar por acidente é diferente de matar para ficar com a herança.
Assim, o exemplo que deste do seno não deverá corresponder a nenhum ilícito criminal de acordo com o espírito da lei do copyrigth (independentemente dele ser correcto ou não) por duas razões - a primeira é que um seno é um desenho trivial. Acusar alguém de o copiar seria como acusar outro de ter copiado o texto "a".
A segunda é que nesse caso o objectivo da descrição do desenho por equações não foi facilitar a reprodução do desenho sem autorização do autor.
Novamente o exemplo da tradução aqui é útil. Eu escrevi uma história, e publiquei-a. Tu pegaste na minha história e traduziste-a para francês. Até aqui nada de mal. Mas quando a publicas em francês alegando que esse texto é uma descrição aproximada do meu, mas é um texto diferente (as cadeias de caracteres têm inúmeras diferenças) estás a ser ridículo. Mas aí ao menos essa tradução sempre teve algo de criativo. Se fosse uma tradução mecânica que correspondia à aplicação de um algoritmo simples que transformava o meu texto (por exemplo corresponder cada letra à seguinte no alfabeto) numa cadeia de caracteres diferente; então ainda mais indefensável era o teu acto.
Nota bem que a codificação em mp3 não traz conceptualmente nada de novo. Agora são praticáveis formas de codificação/descodificação muito mais sofisticadas e complexas. Mas já antes dos computadores existiam formas de codificar a informação; se assumissemos que o uso de regras mecânicas era trivial, o problema mantinha-se à mesma.
Vou dar um exemplo. Tu acreditas que o copyright deveria servir apenas para regular as transacções comerciais, suponho.
Então vamos ao tempo em que copiar a informação era caro, editar um livro era caro, etc... Mas vamos imaginar que aplicar regras mecânicas a cadeias de caracteres era trivial. Os seres humanos eram peritos em fazê-lo, e computavam estas transformações com a facilidade com que respiram.
Vamos supor que o Tolkien escreve "O Senhor dos Aneis". Dirige-se a uma editora para vnder os direitos, e tu concordas que a esta editora deve ser concedido o monopólio legal da obra de Tolkien, como forma de incentivar o risco de apostar neste autor.
Esta editora gasta balurdios, como gastou noutros autores que considerou promissores, muitos dos quais foram apostas falhadas. Mas Tolkien está a vender bastante bem. Esperam não apenas receber aquilo que apostaram nele, mas compensar as várias apostas falhadas, mostrando que afinal arriscar nos novos talentos pode compensar.
Mas a editora concorrente Espertex está à espreita. Sabem que "O senhor dos aneis" teve sucesso, mas não podem editar este livro. Não há problema, editam um livro que vem escrito da seguinte forma: «a: 3, 6, 12, 13, ... b: 31, 52, ...», ou seja cada caracter vem seguido das posições em que surge no texto d'"O senhor dos Aneis". Moral da história, para os leitores e trivial converter este texto no outro, e assumindo que este é ligeiramente mais barato, toda a gente o compra.
Tu agora podes dizer: antes ficarmos sem "O Senhor dos Aneis" ou sem estas editoras que apostam em novos talentos, do que impedir que uma editora possa publicar um livro que após um conjunto de transformações mecânicas se torne noutro. Isso é censura.
Claro que tu podes dizer que as cadeias de caracteres que, feitas X transformações, se transformam n'"O Senhor dos Aneis" são uma infinidade, e que em última análise qualquer número de caracteres superior a Y pode ser transformado nessa sequência se não limitarmos o número de transformações.
Mas por isso é que a lei não regula o que é que não pode ser publicado em termos objectivos. Isso não poderia fazer sentido. Em vez disso, os tribunais têm de determinar, de forma subjectiva é certo, se a intenção de um conjunto de dados é copiar outro ou não. No caso desta "descrição" d'"O Senhor dos Aneis" a resposta é trivial - obviamente foi essa a intenção.
«Proponho que não existem limites legítimos às ideias que podemos transmitir, mas sim aos actos que cometemos associados a essa transmissão.»
É uma proposta interessante, mas não a estou a discutir.
Apenas assumo que essa é uma proposta discutível, e é tanto quanto me basta.
A partir do momento em que reconheces que poderá haver quem legitimamente discorde desa proposta, deixas de poder assumir que alegar "mas isso é uma limitação à liberdade de expressão" encerra a discussão.
É que nem é que eu discorde que a liberdade de expressão é um valor mais importante que o incentivo à produção artísticas nos mais eficazes (a meu ver) moldes tradicionais; apenas acho que a questão da codificação é um problema paralelo que em nada altera a questão essencial. Sobre isto, ver a minha mensagem anterior.
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