Mais um relato de uma ascensão em balão, esta em verso, pela pena de Manuel Maria Barbosa do Bocage (1765-1805) que ficou extasiado com a proeza do capitão italiano Vicente Lunardi (1759-1806) nos céus de Lisboa em 1794. Foi a primeira ascensão tripulada em solo português. Lunardi, que já tinha protagonizado experiências semelhantes noutros países europeus (foi até o primeiro a subir em Inglaterra a bordo de um balão), ficou tão satisfeito com o acolhimento que teve em Lisboa que fixou aqui residência vindo a falecer em Lisboa. A grafia do poema foi actualizada pelo poeta Alberto Pimenta a partir da primeira edição, mas mantendo as maiúsculas originais (ver o seu prefácio a "O Balão aos Habitantes da Lua", de José Daniel Rodrigues da Costa, Edições 70, 1978). (Na imagem, "Bocage e as Ninfas", um quadro de Fernando Santos no Museu de Setúbal).
Elogio poético à admirável intrepidez, com que, em Domingo 24 de Agosto de 1794, subiu o Capitão Lunardi no Balão Aerostático
Que brilhante Espectáculo pomposo
A meus olhos atónitos se oferece!
Da alta Ulisseia o Vulgo numeroso
Já no amplo Foro de tropel recresce:
Soa o Márcio Concerto estrepitoso,
Que o sangue agita, os ânimos aquece;
Assoma aos ares, neste alegre dia,
Raro prodígio de arte e de ousadia.
O Tejo as ondas cérulas aplana,
Das ledas filhas cândidas cercado.
Vibra o tridente azul com a dextra ufana,
E rebate a braveza ao Norte irado:
Contemplar em silêncio a audácia humana
Quer, ainda que a portentos costumado;
Quer, encostando a face à urna de oiro,
Ver brilhar, ó Ciência, o teu tesoiro.
Lá surge ao vasto, ao fluido Elemento
O Globo voador, lá se arrebata
Sobre as asas diáfanas do vento,
B pelo imenso vácuo se dilata.
O pássaro feroz, voraz, cruento,
Quando rápido voo aos Céus desata,
Quando as nuvens transcende e Febo aí afronta,
Da terra mais veloz se não remonta.
Portentoso Mortal, que à suma altura
Vás no etéreo Baixel subindo ousado,
Que ilusão, que prestígio, que loucura
Te arrisca a fim tremendo e desastrado?
Teu espírito insano, ah! que procura
Pela estrada do Olimpo alcantilado?
Não temes, despenhando-te dos ares,
Qual Ícaro infeliz, dar nome aos mares?
Não temes (quando evites o espumoso
Campo, que é dos tufões Teatro à guerra)
Não temes que num baque pavoroso
Teu sangue purpureie a dura Terra?
Tentas, qual Prometeu, roubar vaidoso
O sacro lume, que nos Céus se encerra?
Ah! Não faças tão medonho ensaio:
Ou teme o precipício, ou teme o raio.
Mas para que pasmado e delirante,
Brados e brados pelos ares lanço.
Se apenas do Fenómeno volante
Com a vista perspicaz o voo alcanço?
Em quanto grito, o aéreo Navegante
Seu rumo segue em plácido descanso,
Munido de ciência, e de constância,
Surdo à voz do terror e da ignorância.
Gamas, Colombos, Magalhães famosos.
Eternos no áureo Templo da Memória,
Sirtes domando os Mares espantosos.
De assombros mil e mil dourais a História;
Mas ir dar leis aos ares espaçosos
É triunfo maior, e até mais glória.
Porque não traz à louca, à cega Gente
Os males de que sois causa inocente.
Lá onde a feia Inveja desgrenhada
Ao Mérito não move horrível guerra,
Tem sobre Chusma inerte, e desprezada
Cospe o veneno, as víboras aferra;
Lá na ditosa e lúcida Morada,
Defesa aos vícios, de que abunda a Terra
Guardai da Glória no imortal Tesoiro
O nome de Lunardi em letras de oiro.
Que importa que no centro de Ulisseia
A luz, claro Varão, não fosses dado?
De um frívolo acidente a louca ideia
Tenha embora poder no Vulgo errado:
Que eu te consagro a dádiva Febeia
Qual se berço comum nos desse o Fado;
Longe, vãs prevenções do Homem grosseiro;
O Sábio é Cidadão do Mundo inteiro.
Mas tu, Cantor de Augusto, e de Mecenas,
Roga a Jove te anime as Cinzas frias,
E, de alvo Cisne renovando as penas,
Desperta o sacro fogo em que fervias;
Desce às Montanhas floridas e amenas,
Onde revivem de Saturno os dias:
D'ali canoro entoa o nobre metro,
E em honra de Lunardi exerce o plectro.
De tornar-lho perene a digna fama
Só tu, só tu convéns à grande empresa;
Vem vê-lo ardendo em gloriosa chama,
Subir ao poder da Natureza!
Para novos prodígios punge, inflama
Seu ânimo e, com a voz em estro acesa,
Sopre-lhe, ó Vate, os bronzes e alabastros:
Depois com ele voltarás aos Astros.
Intrépidos Mortais, oh quantos Mundos
Até agora escondidos e honrados,
Ireis pisar, afoitos e jucundos.
Pelos etéreos Campos azulados!
Não fraquejeis, Espíritos profundos,
E na pasmosa Máquina elevados,
Ide incensar entre os sidéreos lumes
O Congresso imortal dos altos Numes.
É pouco para vós o Mar e a Terra!
Sim, a mais vos conduz o Instinto, a sorte,
Ilustrados Varões, em quanto a Guerra
Rouba, estraga, horroriza o Sul e o Norte;
Em quanto as negras fúrias desencerra
Do tenebroso Inferno a torva Morte,
Vinde à soberba Fundação de Ulisses,
Entre o Povo feliz viver felizes.
Renovai-lhe espectáculos gostosos,
Exulte a curiosa Humanidade
Sobre os Campos de Lísia venturosos,
Vestidos de serena amenidade;
Fugi, fugi aos Climas desditosos
Onde, exposta à voraz ferocidade
De Monstros de ímpia garra, aguda presa,
Estremece, desmaia a Natureza.
E tu, que da loquaz Maledicência
Tens açaimado a boca venenosa,
Tu, que de Racionais só na aparência,
Domaste a mente incrédula e teimosa:
Das fadigas, que exige árdua Ciência,
Em vivas perenais o prémio goza,
E admira em teu louvor estranho e novo
Unida à voz do Sábio a voz do Povo.
Manuel Maria Barbosa do Bocage
6 comentários:
Certamente, uma distracção: Manuel Maria Barbosa du Bocage e não José...
Caro Cruz Gaspar
Obrigado pela rápida correcção, que já fiz. O erro não tem desculpa mas posso ter feito uma ligação inconsciente a José Barbosa de Bocage, zoólogo e político, que foi primo em segundo grau do poeta.
Carlos FRiolhais
Fiolhais, quero eu dizer na assinatura anterior!
CF
Informação nova para mim a desse primo do poeta. Agradeço.
As sinapses pregam-nos dessas partidas. Associação de ideias, lapsos de língua,... Freud :)
Cruz Gaspar
Como agradecimento pela informação do elogio poético que não constava na minha pesquisa sobre Balões Aerostáticos, transmito as notícias sobre Lunardi nas Gazetas de Lisboa:
"Lisboa, 04.02.1794 - Aviso. Querendo o Capitão Lunardi dar uma prova da sua gratidão aos habitantes desta Cidade, qe com tanta benevolência tem aceitado o seu projecto de uma viajem aérea, concorrendo com grande frequência a ver a sua Máquina no recinto construído no Terreiro do Paço: faz saber ao Público que ele está agora formando um plano para comodidade das Pessoas de todas as Classes, que o queiram honrar com a sua assistência na projectada viajem, que intenta fazer com a maior brevidade que lhe for possível. A grande máquina aerostática cheia de ar se continua a mostrar no sobredito recinto, pagando cada pessoa 100 reis. (Gazeta de Lisboa, n.º 5, 04.02.1794).
"Lisboa, 15.02.1794 - Aviso. O Capitão Lunardi, para satisfazer a curiosidade de algumas pessoas que desejam ver o modo com que se produz o Gás inflamável, que faz subir as máquinas aerostáticas, tem determinado fazer esta curiosa operação diante dos espectadores que o quiserem honrar com a sua assistência, todos os Domingos à uma hora, e às 4 da tarde, no mesmo lugar em que se acha a máquina. Ali se vendem estampas finas das viagens aéreas que ele e outros tem feito. (Gazeta de Lisboa, n.º VI, 2.º Supl., 15.02.1794).
A única poesia que constava no meu espólio sobre os balões aerostáticos era o do famoso bejense José Agostinho de Macedo (1761-1831), dedicada ao feito de Lunardi.
Com o título "Ao Senhor Stokler sobre a viagem aeria do capitaõ Lunardi. Epistola de Jozé Agostinho de Macedo" (Lisboa: Na Officina do Senado. Anno de M.DCC.XCIV), o autor dedicou 44 estrofes em trístico, heróico e decassílabo, de que apenas registo as seguintes:
... ... ...
XII
Não foi, Senhor, ou desuzado, ou novo
O sublime espectaculo brilhante,
Que deo Lunardi ao Luzitano Povo.
XIII
Mas que pasmoza, que tocante scena
Assim mesmo se vio!.. Tal nunca a vira
O patrio Tejo sobre a marge amena.
XIV
Ondêa o globo nos extenços ares
Ex busca a Plaga austral cm passo altivo,
E afronta a furia d'empolados mares.
XV
Palpita o coraçaõ, fogem as cores
O espírito teme a alheia desventura
Rompe a Justiça em festivais clamores.
XVI
Sobre as azas dos ventos impellida
Vô a sublime Maquina brilhante
E a vista segue o que a razão duvida.
... ... ...
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