segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Patamares que poucos souberam antever

Na continuação dos textos Ninguém os obriga e O argumento do botão para nos determos na falácia que é a ideia comum de que tudo, no caso, programas de televisão, pode ser apresentado, cabendo a cada um decidir se quer ou não ver.

Muitas pessoas simplesmente vêem o que se lhes dá a ver. E são mesmo muitas as que vêem televisão! Os programadores sabem bem isso. Mais: programam em função disso! E sabem também que a fórmula quanto-pior-melhor é infalível. Mais: sem quaisquer valores a balizarem-na, havendo imaginação, é uma fórmula com infinitas possibilidades!

Quando terminam, neste final de ano, na televisão portuguesa, programas em que a ideia de Pessoa está completamente ausente, temos fortes razões para temer o que se seguirá, sobretudo se lermos opiniões de quem sabe bem do que fala. É o caso de Rodrigo Guedes de Carvalho:
"(...) o chamado entretenimento apenas conseguiu o que já se receava: continuar, e ampliar, atentados cerebrais nascidos com o original “Big Brother”. De então para cá, a quantidade e diversidade de palermices que levam os nomes de reality ou talk-shows fez-nos descer a patamares que poucos souberam antever. E é nestes extremos que, no futuro próximo, a televisão mais se aproximará da sua maior virtude e do seu maior perigo: ajudar a educar (pela qualidade de muitas séries e muitos canais temáticos) quem a saiba aproveitar; mas também ajudar a transformar simples medíocres em completos atrasados mentais, pelo tipo de mensagem que veicula, pelo discurso que difunde, pela opacidade e vazio que pode contagiar gerações. No panorama actual, nada é mais sintomático do que aquele vómito chamado “Casa dos Segredos”. Não é o único, não é o primeiro, e não será certamente o último, mas é o que está no ar..."
Maria Helena Damião e João Lacerda

8 comentários:

Alexandra Silva disse...

Gostava de saber a opinião sobre isto: porque é que a fórmula "quanto pior, melhor" é infalível?

Anónimo disse...

A fórmula é infalível porque os resultados estão à vista: consegue imaginar pior do que os “vómitos” aqui tão bem referidos? E não são esses programas que têm as maiores audiências?
Estamos a falar de programas “em que a ideia de Pessoa está completamente ausente”… isto não lhe lembra nada?
Af

Anónimo disse...

Sem dúvida nenhuma, as pessoas vêem o que lhes aparece à frente dos olhos, não escolhem, não têm um "húmus" de conhecimentos para o poderem fazer. A televisão, enquanto não for tecnologicamente superada, tem, teve, e terá uma enorme responsabilidade no futuro das gerações, para o bem e para o mal...
HR

Alexandra Silva disse...

A minha questão colocava-se no porque e que isso acontece, no sentido em que "quanto pior, melhor" traduz de facto um padrão de comportamento da maioria, que nao se revê nestes juízos e que resulta, do meu p.v, e embora relacionadas, mais das suas escolhas do que das escolhas dos prestadores de espectáculo, tendo em conta o historial das telenovelas no alinhamento de programação de todos os canais, logo depois de termos deixado de ter só dois.

Como alguns previram, em vez de diversificacao nas escolhas, a guerra das audiências trouxe mais do mesmo, a mesma hora...

fernando caria disse...

Vou apresentar três argumentos que podem ajudar a entender o estado de coisas a que se chegou no contexto das emissões de TV com os ditos “Reality Shows.”

1º) O argumento Económico/Empresarial – Resulta do contexto de crise que vivemos na última década e meia em Portugal, que determinou a contracção sucessiva dos orçamentos de comunicação das grandes empresas de bens de consumo.
Isto tem obrigado os canais de televisão a procurar receitas (que são a sua fonte principal de negócio) e modelos de publicidade alternativos. Daqui deriva o crescimento dos programas explicitamente patrocinados e mais recentemente as “ajudas à produção!”
Isto é o que tem acontecido no lado das receitas. Mas também no lado dos custos se procedeu a uma reforma profunda na “arte” de fazer televisão. Nomeadamente a produção de programas de entretenimento, que em vez de contarem com um apresentador estrela (e portanto caro) e mais alguns actores, comediantes, músicos e cantores de renome (e assim também caros). Passou-se a fazer estrelas (ou famosos) quaisquer elementos da populaça, sem qualquer outro interesse senão o de serem voluntários de exibição como a zoológica, mas de uma forma mais sofisticada, ie através da TV.
Esta alteração estratégica do modelo de produção de programas de entretenimento, permite poupanças drásticas nas despesas de produção, mantendo a rentabilidade do canal, face à redução das receitas publicitárias. É portanto, um imperativo de gestão.
Atente-se como explodiram os programas em que o público se transformou em estrela, do qual apenas um recebe “cachet.” Desde o famoso Big Brother, passando pelos Acorrentados, até às Vozes de Portugal e Operação triunfo, todos os canais adoptaram este modelo.

fernando caria disse...

2º) O argumento Económico/Social – Consiste na reduzida dimensão numérica da classe média portuguesa e do seu empobrecimento contínuo ao longo da última década e meia. O facto de termos uma pequena classe média com um poder de compra reduzido, inibe o consumo de outros produtos de entretenimento mais sofisticados e culturalmente mais ricos, como o teatro, os concertos, exposições, tertúlias, cinema, ou mesmo televisão por cabo, que conta com uma gama de oferta de entretenimento e cultural muito mais larga. Mas ainda neste último caso, o acesso a outro tipo de programas, muitas vezes em inglês, inibe também a sua visualização. Resta portanto a televisão generalista, como solução de rotina e cómoda.
Por outro lado, a elevada taxa de desemprego e neste caso em particular a astronómica taxa de desemprego entre os jovens (com e sem formação superior), proporciona uma atitude de “vai-a-todas, pode-ser-que-te-safes!” Ou se quiserem um espírito de Euromilhões: “Pode-ser-que-me-saia-a-mim!”

3º) O argumento do Horário Nobre – Consiste no conhecimento detalhado dos hábitos domésticos, quer por extractos socio-económicos, quer por segmentos psicográficos, quer por zona geográfica, do que resulta que em média a população portuguesa depois de chegar a casa e começar a preparar o jantar, chupa com tudo o que estiver a dar na TV até à hora de ir para a cama. Por isso se chama Horário Nobre de programação ao período que vai das 20:00 h às 23:00 h, em que a publicidade é mais cara para os anunciantes e em que os “primeiros-ministros” decidem fazer comunicações ao país ou dar entrevistas, ou são transmitidos jogos de futebol. Porque sabem que vão ter a máxima audiência.
No caso da programação regular, pode acontecer a deslocação das audiências para outro canal, que resulta da “concorrência” entre as diversas estações, mas é sempre neste horário que se encontra o máximo de espectadores de TV.

fernando caria disse...

Conclusão: Os Reality Shows são um fenómeno que atravessa todas as fronteiras dos países ditos desenvolvidos, até porque todos os programas exibidos em Portugal são produções de modelos estrangeiros, pelos quais são devidamente pagos royalties.
Para a sua generalização contribui indubitavelmente a questão económica pelo lado da diminuição dos custos de produção e dos canais, bem como a debilidade económica dos espectadores, que por não terem capacidade de investir recursos financeiros noutras actividades, ficam alapados ao sofá em frente do “embasbacómetro!”
No entanto isto não explica completamente o sucesso do fenómeno, porque noutros países economicamente e culturalmente mais ricos, como é o caso da Dinamarca ou do Reino Unido, o fenómeno repete-se com igual intensidade e falta de qualidade. Creio firmemente que este conta ainda com contornos de ordem educacional e psicológica.
Por um lado o sistema de educação vigente na Europa (mesmo tendo em conta diferentes graus de qualidade) não tem tido sucesso a ensinar os seus mercados a “pensar” e muito menos a “pensar criticamente”. As democracias ocidentais e a EU em particular, são hoje em dia vítimas de duas décadas de tomadas de decisão acríticas e eleição de líderes políticos com base em decisões de imagem e gosto, sem qualquer análise ao conteúdo da mensagem e das propostas de governação. Veja-se o caso de Portugal, Espanha, França, Itália e claro a Grécia.
Por outro lado mesmo entre os segmentos mais esclarecidos e até com maiores recursos financeiros, existe um certo apelo “voyerista” que leva a querer ver, mesmo na televisão e em horário, mesmo com crianças presentes, quem-beijou-quem ou quem dormiu-com-quem. Até mesmo nas histórias de ficção como as novelas, estas são as questões predominantes que são tratadas na indústria afim das revistas sobre telenovelas.
Aliás, estou em crer que este apelo profundo dos sentimentos mais básicos e emoções mais animais, fundamenta bem a razão porque todas as democracias ditas “capitalistas” condenam a prostituição, mas ela persiste. Condenam a pornografia, mas a seguir às drogas e às armas é provavelmente a industria ilícita mais lucrativa.
Concordo em geral com as reservas e críticas da Helena, mas não sei como atalhar este caminho que percorremos inexoravelmente, em direcção aos “15 minutos de fama” para todos, numa sociedade que do ponto de vista da humanidade individual de cada pessoa, vista de fora, cada vez tem menos interesse e cada vez merece mesmo menor atenção! Sabendo contudo que somos todos seres humanos, parece que preferimos estupidificar activamente com o comando da TV na mão.

Alexandra disse...

Obrigada por ter partilhado a sua opinião. Estou estupefacta também.

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