quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

ATÉ OS PEIXES PODEM APRENDER UM SERMÃO - 1

Primeira parte de um texto de Carlos de Sousa Reis, filósofo e pedagogo, sobre a ancestral procura do sentido de ensinar.

Os peixes em inumerável concurso acudindo a sua voz,
atentos e suspensos às suas palavras,
escutando com silêncio,
e com sinais de admiração e assenso,
(como se tivessem entendimento) o que não entendiam.

P.e António Vieira (2011, 5-6).

Embora apareça hoje, insistentemente, como preocupação e fulcro de polémicas, a questão de saber em que consiste a atividade de ensinar é muito antiga.

O tema surge no Ménon (Platão, 1993), um daqueles diálogos em que Sócrates atira para o centro do debate uma aporia a fim de “espantar” os espíritos dominados pela doxa, a simples opinião comum. Esse modo, persistente e endémico, de darmos por assentes certas crenças de que já não sabemos de onde vieram, nem porque se tornaram tão populares. O óbvio é mais filho do esquecimento do que da perspicácia. É mais filho da história do que da natureza.

Muitas vezes, como mostrou Barthes (1984), só nos aparece como natural porque foi esquecido, ou escondido, o processo histórico que o constituiu: brilha então como verdadeiro o que mais não é do que um mito produzido pela naturalização do histórico. Crença inquestionada e inquestionável, cuja origem se perdeu, a doxa teve tempo de se arraigar e consegue tapar as vistas ao mais bem intencionado.

Nos diálogos ditos aporéticos, Sócrates tinha por prática inicial lançar a aporia para sacudir os espíritos entorpecidos pelas ideias feitas, que, muito comummente, dominam os humanos. Colocá-los perante a aporia servia para os deixar espantados a propósito de um assunto, devolvendo-os assim à capacidade de se interrogarem sobre algo dado como certo e óbvio.

Perplexos, aqueles que antes viviam seguros, ficavam então predispostos a, pelo menos, escutar com atenção o cordial zangão com que haviam topado e, em muitos casos, acompanhar o seu propósito indagador.

Acontece que, entre o vasto rol de ideias feitas e arreigadas, que sempre vão dando jeito para pelo menos não ficarmos bloqueados, se encontra aquela de que basta alguém ensinar para alguém aprender. Sendo suficiente, para o efeito, que quem sabe transmita o sabido – o conhecimento – àquele que não sabe – o ignorante.

É como se acreditássemos que até os peixes podem aprender um sermão, se este for proferido por um sábio e eloquente orador.

Porém, como bem viu Sócrates, não só não é fácil aos humanos darem-se por ignorantes, como muito mais comum é assumirem como sabidas muitas coisas. Facto que os impede de procurar alternativas explicativas e os torna propensos a deduzir muitas ideias a partir daquilo que afinal não é certo. Daí que se possa bem entender que certa ignorância é douta e bem mais propiciadora do aprender do que muita “sabedoria”.

No diálogo “espantador” a que acima me referi, indo Sócrates a caminho da Ágora, como era seu costume, dá de caras com o “burguês” Ménon, que, convenientemente acompanhado por um seu escravo, buscava a forma de que lhe ensinassem a virtude para poder triunfar na Polis.

É a propósito deste contexto que vai ser posta a questão da natureza e possibilidade do ensino, no caso, da virtude. Mas a abordagem revela-se, no mínimo, surpreendente. Quem começou por estudar Platão a partir da leitura da Apologia e do Fédon, recolhendo aí o entusiasmo de Sócrates pela busca da verdadeira sabedoria, dificilmente poderá estar preparado para aquilo com que se vai deparar no Ménon (Platão, 1993): a inverosímil ideia de que nada pode ser ensinado. Aquele que se dispõe poderá, é certo, se for conduzido por um processo adequado, obter por si mesmo conhecimento, mas isso acontece sem que seja ensinado.

Para suportar esta abordagem Platão desenvolveu uma explicação – que simplesmente deu o mote a toda a história da metafísica ocidental: a alma vinda do seu elemento espiritual, onde teve oportunidade de contemplar as ideias perfeitas, ao encarnar sofreu uma espécie de amnésia e daí que todo o ensino não seja mais do que um processo de a ajudar a relembrar-se do que já está em si. Toda a aprendizagem nada mais é do que uma atividade pessoal de rememoração.

É claro que para isso é preciso ter (sobre)vivido (a)o abanão aporético e acompanhado o mestre no esforço de indagação que desde esse momento se assume pelo efeito motivador que o espanto provocou. A partir da alegoria que Platão utiliza na República para abordar o assunto, ficamos a saber que o processo de adquirir a sabedoria não é fácil: equivale a conseguir usar os olhos em pleno dia depois de ter estado uma vida inteira confinado à escuridão de uma caverna.

O abanão aporético seguido da caminhada indagadora equivalem ao esforço de conversão pelo qual recuperamos, depois de vivermos nas trevas, a capacidade de discernimento visual para contemplar as coisas sob a forte luz do Sol.

Por aqui se vê que ensinar vem a ser uma espécie de condução do aprendiz motivado a aprender uma espécie de descoberta interna e pessoal.

(continua aqui)

Carlos de Sousa Reis

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