“Atingir o ideal é compreender o real” (Jean Jaurès, 1859-1914).
Facto, todavia, não impeditivo que houvesse, em regra, um magistério muito digno, recordado respeitosa e saudosamente por muitos dos alunos desse tempo. Claro que me não me refiro à excepção daqueles mestres-escola/torcionários da escola primária (era então assim chamada), do meu tempo de menino de bibe, que batiam com a palmatória nas mãos dos alunos (a odiada, “menina dos 5 olhos”), punham “pidescamente” os alunos de pé em cima de um banco virados de frente para a parede da sala de aula ou à respectiva janela, que dava para a rua, com orelhas de burro, com o agrèment dos responsáveis governamentais que propagandeavam ser a escola “risonha e franca”…
Esses mestres-escola não impunham respeito, metiam um medo “horrendo, fero, ingente e temeroso”. Eram, então, apesar de tudo, os professores primários respeitados nas aldeias e vilas do país tendo estatuto social em paridade com o médico e o padre. Em dias de hoje, conheço um ilustre presidente de uma Câmara Municipal que diz ser (ou ter sido) professor do ensino primário, cursado numa Escola do Magistério Primário, e, com isso, sentir-se muito honrado. A contrario, por vezes, encontram-se alunos do ensino politécnico que chamam às escolas superiores de educação “faculdades”, em vez de honrarem e dignificarem o sub-sistema de ensino superior que frequentam dando-lhe o merecido e justo valor.
Abro um parêntese para explicar ao leitor, porventura menos habituado às siglas (eu costumo dizer que seria a altura de se publicar um dicionário de siglas, tantas elas são), o significado da sigla que o leitor refere, “NSRFP”: “Novo Sistema de Retribuição da Função Pública”. Mas eu sei, pelo meu lado, que a paridade forçada dos bacharéis (professores do 1.º Ciclo do Ensino Básico) com os licenciados dos outros ciclos do básico ou do secundário, se deveu ao facto daqueles, através da LBSE (Lei de Bases do Sistema Educativo), situados no fim da carreira no 9.ºescalão, e estes últimos no 10.º escalão, se terem dirigido a escolas superiores politécnicas privadas que em meia dúzia de meses lhes venderam uma licenciatura que razão dá ao Prof. Lobo Antunes quando critica “ carreiras que são entre nós matéria importante, visto estarmos num país de carreiristas no qual todos buscam uma calha que lhes permita deslizar sem atrito”.
Quando este leitor se refere “aos proventos escandalosos da elite dos gestores portugueses”, escrevendo-o, e apresentando exemplos substantivos, estou completamente de acordo pelo exagero, embora salvaguardando a justiça de poderem ganhar bem em função das suas responsabilidades e do facto de serem uma elite (ou seja, os melhores). Elitismo que, segundo António José Saraiva, “assusta muito democratas por julgarem que as sociedades podem ser superfícies rasas”. Repare, o caro António Pedro Pereira, que mesmo as “democracias” totalitárias. com a antiga União Soviética, prestavam favores e davam prebendas aos indivíduos da “nomenklatura” vedadas ao comum do cidadão. Não quero com isto dizer, “vade retro Satanas”, que concorde que num país em crise, como Portugal, os gestores ganhem incomparavelmente mais que os seus congéneres de outros países com maior nível de vida. Aqui, estou completamente de acordo com o Professor Rui Alarcão, antigo reitor da Universidade de Coimbra, ao defender a doutrina com a autoridade de catedrático de Direito: “O princípio da igualdade, que está na Constituição, significa que o que é igual deve ser tratado igualmente e o que é desigual deve ser tratado desigualmente”. De igual modo se pronunciou essa giganteca figura da literatura portuguesa, Fernando Pessoa quando escreveu: “É preciso violentar todo o sentimento de igualdade que sob o aspecto de justiça ideal tem paralisado tantas vontades e tantos génios e que, aparentando salvaguardar a liberdade, é a maior das injustiças e a pior das tiranias”. Aliás, já no antigo Direito Romano existia a norma, "suum cuique tribuere" (em tradução: dar a cada um o que é seu). Princípio de justiça que o povo, na sua enorme sabedoria, expressa no dito popular: “O seu a seu dono”.
6 comentários:
Caro Rui Baptista:
Agora sou eu que se permite «atirar-lhe à cara» o verso do Rui Veloso: «É mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa».
Assim sendo, limito-me a algumas observações pontuais:
(Declaração de interesses: não sou nem nunca fui professor do então ensino primário, hoje 1.º ciclo do básico)
Ensino primário – dignidade e paridades indevidas. Nunca neguei a primeira nem defendi as segundas. No Post anterior acrescentei a sua lista de paridades indevidas, pois o seu leque não passava de um alvo. Os alvos, por serem tão precisos e condensados, limitam-nos a visão panorâmica da realidade.
Elitismo e superfícies rasas – jamais defendi «superfícies rasas», tenho a noção das diferenças e da sua importância, mas também do sentido da justiça. E cada vez mais o nosso sistema retributivo é injusto, enquanto uns são esmagados pelas circunstâncias conjunturais outros fazem as leis e as regras que os remuneram a si próprios (escandalosamente).
País em crise e remuneração dos gestores – «Não quero com isto dizer, “vade retro Satanas”, que concorde que num país em crise, como Portugal, os gestores ganhem incomparavelmente mais que os seus congéneres de outros países». Mas ganham, e esses que ganham escandalosamente são os que falam no plural, «os portugueses têm que fazer sacrifícios». Considerar-se-ão eles portugueses?
Professor Rui Baptista, o Professor Bento de Jesus Caraça, escreveu sobre o conceito de elite; deixo aqui a leitura do essencial da carta de Bento de Jesus Caraça a Francine Benoit. (publicada no livro de Alberto Pedroso - Ed. Campo das Letras; [pag.425]).
[…]
“Claro que podíamos discutir, não digo eternamente (para não cair na metafísica), mas longa, longamente, sobre a noção de povo e de elite. Estarão certas as suas definições?
Da Primeira – “o comum das diferentes aglomerações de gentes…”, “todos nós que povoamos a terra” – parece depreender-se que tudo é, afinal, povo. O Alfredo da Silva, o Sotto-Mayor, povo?
Mais precária me parece a definição de elite – “somos eleitos, formamos uma elite, portanto, num ou noutro ramo de actividade humana, quando as nossas faculdades e o nosso trabalham ultrapassam o comum”.
Nós podemos definir elite como quisermos, mas isso não impede que haja, de facto, uma elite, como camada social. É evidente que a Senhora Duquesa de Cadaval não cabe dentro da sua definição de elite mas é também evidente que ela pertence è elite, socialmente considerada, do nosso país.
E eu inclino-me a crer que os dois termos «povo» e «elite» só tem significado real, no tempo presente, quando considerados em relação à sua substancia social. Não quero com isto dizer que se seja povo ou elite conforme o berço em que se nasceu ou o que se ganha (ou rouba) por mês.
Há a osmose.
Kropotkine, Saint Just eram povo, Fouché era elite.
Dir-me-á: mas, com isso, deforma o significado do termo elite! E eu respondo-lhe – não, não o deformo, tomo-o no sentido deformado que esta beleza de civilização ocidental lhe deu (e, como são eles que mandam, quando nós defendemos o conceito de elite estamos-lhes levando a água ao moinho, do que eu procuro guardar-me).
Se nós fôssemos ambos vivos daqui a algumas centenas (ou dezenas) de anos, quando estiver edificada a sociedade da liberdade, sem classes, então, dir-lhe-ia – mas só então - , minha Senhora, a sua definição de elite está certa.”
Professor Rui Baptista, já conhecia este texto? Qual a sua opinião? (se a confrontamos com as ideias implícitas de algumas das citações do seu post).
Cumprimentos cordiais e muito obrigado.
Caro António Pedro Pereira:
Por momentos, caro António Pedro, senti-me transportado para o século XIX, e para os seus literatos que tanto aprecio, com destaque que não escondo pelos textos queirosianos, e digo-lhe porquê.
Com a sua expressão “atirar-lhe à cara” (embora as aspas lhe atribuam conteúdo meafórico), pensei que me estava “a atirar à cara” uma luva branca que prenunciasse um desforço em que só os duelos à espada ou à pistola, em madrugadas de bosques nevoentos, resolviam as polémicas. Estou-me a lembrar, por exemplo, do duelo à espada entre Ramalho e Antero, em que um dos autores de “As Farpas” (devido à sua forte compleição física – ele própria se gabava ter nascido para “hércules de feira”- e amor pelas práticas físicas, como a ginástica e o boxe), contra as previsões foi vencido. Mas por viver no dealbar deste milénio, respirei de alívio. Um alívio desmerecido por, logo no início do meu post, “mea culpa” não me ter exprimido convenientemente quando, um tanto ou quanto desajeitadamente, escrevi: “Respondo ao comentário ao meu post de ontem, “2004: Silva Lopes e o Sistema Educativo”, por parte do leitor António Pedro Pereira (17 Dez.; 13:45)”.
O que eu em boa verdade, e não menor consciência, queria escrever era que, em face do seu comentário e do meu post, “2004: Silva Lopes e o Sistema e Educativo”, me propunha clarificar pontos desse meu post que pudessem não ser convenientemente esclarecedores. O que faz uma certa diferença, convenhamos. De resto, perspectivando o seu esclarecedor comentário declino a necessidade de novos esclarecimentos meus, não se dê o caso de algum leitor mo solicitar e a que eu estarei pronto a responder.
“Last but not least”, se desse o caso de o António Pedro ser “professor do então ensino primário, hoje 1.º ciclo do básico”, como possível inconveniente apenas veria o facto de ser difícil ser-se juiz em causa próprio ou observador e observado simultaneamente de um dado fenómeno social. Se me permite, a partir daqui, melhor cabe ao leitor, sem qualquer espécie de “partis pri”, dar o veredicto final, e eu, recorrer da “sentença” se discordar, não encerrando o caso com um silêncio cúmplice, mas como escrevi no meu post (corpo de um hipotético delito), “em diálogo ou controvérsia civilizada” sem a fanfarronice do indivíduo da anedota que leva um forte soco num olho e se vira para o agressor, ameaçando-o, sem lhe dar troco imediato: ”Isto não fica assim”. Ao que este lhe responde, placidamente: “Ah pois não, amanhã incha”!
Rectificação: Na 6.ª linha do último §, onde escrevi "partis pri", houve uma gralha que levou no bico o "s" e o pousou em palavra indevida. "Parti pris", é a correcção devida.
Meu Caro Joaquim Manuel Ildefonso Dias:
Assim como as palavras têm a sua plasticidade também os conceitos de liberdade, de justiça, de elite ,etc., variam conforme as épocas, as sociedades e as doutrinas políticas de quem os perspectiva. Assim, para Jesus de Bento Caraça, notável matemático (ou seja a nata ou a elite destes académicos) o conceito de elite não podia ser, e não o era com certeza, o do tempo da monarquia em que as elites passavam de pais para filhos, vai-me perdoar o plebeísmo, que nasciam de rabinho para o ar no berço da fortuna , dos títulos nobiliárquicos não, poucas vezes, comprados.
Repare que o próprio Camilo Castelo Branco (um dos grandes expoentes da elite literária), se não conseguiu subtrair ao fascínio do título nobiliárquico que lhe foi concedido em fim de vida, logo ele, que tanto mal, e com tanta verrina, deles falava. Claro que há muitas espécies de elites (que eu defini, um tanto “à vol d’oiseu”, como sendo os melhores de uma determinada sociedade). Por exemplo, Cristiano Ronaldo pertence à elite do futebol mundial.
Para Bento de Jesus Caraças - um socialista no mais puro e sacrificado conceito, tão longe daqueles que se fizeram comunistas de um dia para o outro, do findar do 24 de Abril para a alvorada do dia seguinte - o conceito de liberdade e o de uma sociedade sem classes (uma utopia?), que nunca existiu em países em que a nomenklatura se apoderou do aparelho do Estado, é diferente do de um homem da social-democracia, por exemplo.. Mas, também é verdade, como nos diz o poeta que o sonho comanda a vida…
Para aligeirar o meu “discurso” (apesar de nada ter de metafísico), repare, o meu caro leitor, que até os próprios mosquitos podem pertencer a uma elite como nos diz um livro que acabo de ler com muito agrado e com momentos de hilaridade, pelas suas “páginas mais ou menos divertidas” (no dizer dos próprios autores). Refiro-me ao livro de Carlos Fiolhais (um físico) e de David Marçal (um bioquímico), intitulado “Darwin aos tiros e outras histórias das ciências”, (“Gradiva Publicações, S.A, Outubro 2011, p.p. 144-145).
Respigo do livro: “A história é mais ou menos a mesma: apenas um entre vários milhares de mosquitos é naturalmente resistente ao DDT, mas é essa elite de supermosquitos que vai sobreviver e dar origem a toda uma população resistente ao DDT”.
Desculpe-me o tom aligeirado, que tanto me foi permitido por se tratar de um simples comentário, embora merecedor de uma análise cuidada de sociólogos ou de politólogos.
Cordialmente
É com toda a certeza verdade, como nos diz o poeta que o sonho comanda a vida…, e é igualmente verdade, como nos diz Bento de Jesus Caraça, “as ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos.”
É sempre um prazer, para mim, falar sobre Bento de Jesus Caraça.
Bento de Jesus Caraça foi um cidadão pleno.
Professor Rui Baptista, agradeço a sua resposta ao meu comentário, e desde já, quero agradecer-lhe o seu trabalho no Blog, cuja leitura me proporciona momentos muito agradáveis.
Aceite os meus cumprimentos cordiais
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