Referência completa: Julien, C. (1990). Prefácio in O triunfo das desigualdades. Lisboa: Caminho 9-15."Olhem bem à vossa volta. A primeira vista de olhos vai revelar-lhes um povo feliz. Feliz porque livre. Perfeitamente livre de escolher, nas páginas publicitárias dos seus jornais, entre o prestígio de várias marcas de sumptuosos automóveis franceses e estrangeiros; livre de dar a sua preferência quer aos jornais impressos pelo Sr. Hersant quer ao canal de televisão do mesmo; livre de hesitar diante da infinda diversidade dos jogos dinheiro e do subtil talento dos folhetins importados que produzem no pequeno ecrã uma nota de sofisticado requinte; livre de participar nos «núcleos de decisão» das firmas privadas e de influenciar as opções estratégicas das empresas nacionalizadas; livre de mandar os filhos para uma escola pública ou para a instituição privada financiada pelo Estado (…). Livre sobretudo de escolher os seus representantes à Assembleia Nacional ou ao Parlamento Europeu, sem verdadeiramente saber qual a visão, qual a aspiração suprema deles, quais os objectivos pelos quais estão determinados a bater-se.
Olhem bem à vossa volta, e respondam, quantos dos nossos contemporâneos estão prontos a aceitar este retrato odiosamente sarcástico de uma sociedade que, sem indignação, se acomoda a crescentes desigualdades, se habitua à injustiça quotidiana, que parece ter perdido toda a faculdade de revolta? Apesar de todas as suas imperfeições a democracia não sucumbirá por causa dos golpes de uma qualquer subversão interna, não será esmagada pelos blindados de um qualquer Império do Mal. Não, a democracia está a esboroar-se, declina, vai definhando ao resignar-se ao seu contrário: o dualismo social e cultural.
Um dualismo social que é a principal alavanca, o meio mais eficaz de acção que os neoliberais poderiam ter achado (…) Dualismo cultural que é o inelutável resgate a pagar por um pensamento desvitalizado em sociedades em que os grandes meios de comunicação passaram para a dependência dos comerciantes (…). Comerciantes esses a quem o Conselho Superior do Audiovisual tenta impor, nos programas televisivos, uma determinada «quota» de obras francesas ou europeias. Não seria sobretudo necessário proibir-lhes que ultrapassassem uma certa «quota» de patetice, de imbecilidade, de baixeza (…)? E, para de salvação pública, retirar-lhes um poder de que eles fazem tão mau uso de cada vez que não o põem ao serviço das mais altas criações do espírito humano a fim de as oferecerem, qual magnifico presente, a toda uma multidão que não tem o privilégio de, por outros meios, lhes descobrir os esplendores?
Existe uma aliança, por vezes incómoda mas diabolicamente eficaz, essencialmente baseada na conivência do dinheiro com os grandes cargos estatais, que associa o poder político com «o poder bem mais perigoso dos comerciantes» e com o seu «poderoso e venenoso cúmplice […]: o poder dos “mass-media”, e que tem, no fim de contas, a finalidade de preparar «a vitória dos homens sem alma». Estas fórmulas, tão simples, tão fortes, fomo-las buscar a Ariane Mnouchkine, ao seu magnífico «apelo à resistência» por ela lançado aos «cientistas» e aos «artistas»."
Claude Julien
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
"A vitória dos homens sem alma"
Na sequência de outros textos recentemente publicados no De Rerum Natura sobre certas opções programáticas de alguns canais de televisão generalista, reproduzo abaixo excertos do prefácio dum livro intitulado O triunfo das desigualdades. Note-se que tendo sido publicado em 1989, este livro é anterior a estranhíssimos programas que hoje se apresentam e vamos aceitando como normais.
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4 comentários:
"(...) Não seria sobretudo necessário proibir-lhes que ultrapassassem uma certa «quota» de patetice, de imbecilidade, de baixeza (…)? E, para de salvação pública, retirar-lhes um poder de que eles fazem tão mau uso de cada vez que não o põem ao serviço das mais altas criações do espírito humano a fim de as oferecerem, qual magnifico presente, a toda uma multidão que não tem o privilégio de, por outros meios, lhes descobrir os esplendores?(...)"
Comentário produndamente "certeiro" e que me suscita algumas perguntas: serão os conteúdos de alguma televisão (sobretudo televisão) 'patetas' porque são dirigidos a um povo de 'patetas', que mais nada sabe apreciar? Ou é o povo de 'patetas' que exige a 'patetice'?
Pior: existirão interesses obscuros no cuidadoso ministrar de 'patetice'? Qual a causa, qual o efeito?
Há anos atrás, um humoristo inglês (George Mikes), comentava, a propósito de alguns programas de rádio transmitidos nos EUA nos idos de 50: trata-se do oposto dos tempos de Shakespeare: textos magistrais propagados através de meios primitivos; hoje, textos primitivos são radiodifundidos por meios de comunicação magistrais. Agora que vamos ter a TDT, temos a net, temos meios de comunicação que há pouco anos nem imaginávamos, que conteúdos nos são veiculados?
E qual a minha, a sua responsabilidade por essas 'patetices'?
Talvez, a bem de todos nós, fosse bom tentar responder a algumas destas perguntas, passe talvez a arrogância de as tentar pertinentes...
Claude Julien refere que se inspirou em Ariane Mnouchkine, directora teatral e criadora do Théatre du Soleil.
Com efeito, numa entrevista dada a Irving Wardle, sobre os problemas de representação, e de uma forma geral, de espectáculos teatrais, falou sobre as origens, as mais diversas, das pessoas que aparecem para trabalhar como actores – estudantes, alguns de origem pobre, burgueses – e o desconhecimento do que haverá de comum entre eles.
Só o trabalho em grupo irá desvendar a capacidade e tendências histriónicas, e fortalecer o elenco, concluindo que:
“With our way of working, talent is easily shared, so there’s no talent hierarchy, we’re equal, but not identical.”
(Com a nossa forma de trabalhar, o talento é facilmente compartilhado, por isso não há talento hierarquizado, somos iguais, mas não idênticos.)
Daqui terá nascido a inspiração para Claude Julien escrever sobre “O triunfo das desigualdades”, ou como assevera Ariane Mnouchkine “somos iguais, mas não idênticos”.
Melhores auspícios para 2012, com os desejos de que seja igual a 2011, mas não idêntico.
Tremendamente pertinente esta análise.
Do amor consciente.
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