quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

No caminho do çuçeço: 1.º episódio — os izames


Post convidado de António Mouzinho, professor do ensino secundário:

Num programa muito engraçado da TV-Globo que se chamava «Sai de baixo» a atriz Marisa Orth disse um dia uma frase que me ficou na memória: «Cê cêdilha u, cê cêdilha é, cê cêdilha ô: çu—çé—çô!». Penso que podemos aplicar ao ensino público nacional este tipo de meditação. Comecemos pelos exames:

A maior parte das críticas levantadas aos exames diz algo de parecido com: «os exames só avaliam um tipo de coisa; um aluno é mais do que isso» (com variantes: «o ensino não é só isso»; ou: «pretende-se formar cidadãos, e não máquinas de fazer exames»; ou...; ou...).

Bem, de facto, os exames têm limitações: são constituídos, tradicionalmente, por provas escritas programadas com muita antecedência, de âmbito frequentemente nacional, e de «lápis e papel». A imagem mais divulgada é que os alunos são sujeitos a um conjunto de perguntas impertinentes, de dificuldade variável de ano para ano, erros difíceis de prever e esquivar, arbitrariedades, pequenas traições, intervenções em graus imprevisíveis do fado, da sorte... dos «nervos».

O País espera, salivando, o jornal do dia seguinte, para poder aprovar ou desaprovar o teste... julgando-o com um sorriso sabedor.

Fala-se de exames como da pêra Rocha: bons e maus anos, boas e más colheitas.

Muitas das tendências dos últimos tempos vão no sentido de pensar que as escolas têm mais, é que fintar os efeitos dos exames através de certas práticas possíveis: criticá-los, oralmente e por escrito, junto da opinião pública, diminuindo o seu prestígio como ferramenta de avaliação; desvalorizar-lhes o impacto no confronto com as classificações internas da frequência (30% para os exames, 70% para a frequência); reduzir-lhes o âmbito pela diminuição das matérias que são objecto de avaliação (predominância do último ano de estudo); minar a importância dos chamados «rankings» das escolas, isto é, dos termos de comparação entre diferentes práticas de ensino em meios dissemelhantes.

Vejamos, então:

A crítica aos exames apoia-se em argumentos variados: a rematar um percurso escolar em que os alunos tomam contacto com uma grande variedade de matérias e situações, de fontes de conhecimento e de práticas de atuação, de geometrias de aprendizagem e de avaliação, o exame escrito, atuando sobre um aluno isolado — e quase só dependente da memória —, é insuficiente para poder julgar competências de forma equânime. A incidência em «conteúdos», após ciclos de trabalho centrados nas «competências», dá uma ideia falsa do estado real da evolução dos alunos. A situação excecional é, por si só, provocadora de tensões que podem anular o resultado do trabalho de vários anos em examinandos mais sensíveis. O ato único e decisivo é o contrário de uma vida escolar — mais tarde, também profissional — de experimentação, de tentativa e erro.

Soit... mas é igualmente verdade que um exame escrito nacional permite colocar milhares de pessoas em igualdade de circunstâncias. Depois, também é verdade que o esquema de pergunta-resposta permite aferir, indiferentemente das circunstâncias locais, se determinada mensagem passou — para, então, inquirir por que motivos isso aconteceu... ou não. Abre uma porta, portanto, para ajuizar, e comparar. As competências devem emergir de conhecimentos (a expressão inglesa, sistematicamente deformada em Português, é knowledge and skills); ou seja: o bom ensino não presume criar competências abstractas, pela simples razão de que isso não existe. Por outro lado, tensões não surgem, normalmente, em cabeças sabedoras, habituadas ao escrutínio. Os «nervos» são, na realidade, habituais companheiros da ignorância e da surpresa... coisas que o sistema tem a obrigação de obviar, prevenindo, preparando. Os atletas, os músicos, os médicos, os aviadores — muitos profissionais, ao fim e ao cabo — enfrentam pela vida fora atos únicos. Ninguém trepa a um andaime munido de uma profunda tolerância para com os rapazes da construção civil que montaram a jigajoga («se eles se enganaram, paciência... coitados, da próxima vez farão melhor...»). A vida não é assim.

A aritmética de que as notas de exame são já objecto (30% do valor da classificação final de um curso secundário) não necessita de mais desvalorizações. Todos os anos vemos alunos, em determinadas disciplinas, com 16 valores na classificação interna da escola, acabarem por sair aprovados com uma nota de 6 no exame: a «média» final dá 13. As escolas têm, de facto, toda a liberdade para fazer este tipo de contas, embora os alunos não possam usar a nota desta disciplina como específica no acesso a uma faculdade. Mas de facto, afinal, parece que os exames nem sequer são um teste de efeitos muito agressivos...

Depois, uma disposição com alguns anos empurra para a prateleira parte das matérias lecionadas. Alguns exames (os de disciplinas trianuais) apenas incidem sobre o último ano da matéria. Por exemplo, um aluno de História A (dos cursos científico-humanísticos de Línguas e Humanidades) pode ir a exame descansado, ignorante de tudo o que alguma vez soube sobre civilização greco-romana, ou sobre a génese da arquitetura gótica, ou as consequências do Século das Luzes. Essa matéria não vem para exame.

Por fim, quanto aos denominados «rankings» das escolas: admito que muito boa gente não sabe lidar com eles; admito que os critérios jornalísticos que os rodeiam nem sempre são muito esclarecidos — e, por consequência, esclarecedores. Os professores, no entanto, sabem bem o que fazer para os lerem sem equívocos, e só isso já é uma vantagem.

Ora se nos entretivermos a ler projetos educativos das escolas públicas colocadas, digamos, nos 50 ou 60 primeiros lugares, vamos contemplar um panorama comum a muitos deles: a tónica do ensino nessas escolas é posta na promoção do sucesso educativo, na valorização do saber, na cultura do esforço. Isto é dito sem rebuços em documentos pouco extensos, e claros.

Façamos as contas: se não restarem os exames nacionais, o que é que nos garante que alguma destas coisas é levada a sério?

(Não perca o próximo episódio do folhetim «No caminho do çuçeço», sobre responsabilidade pedagógica).

António Mouzinho

6 comentários:

MMM disse...

Gostei. Parabéns pelo tom moderado que imprimiu na sua reflexão, não resvalando perigosamente a argumentação para um vértice só.

Anónimo disse...

Gostei! As críticas aos exames foram bem desmascaradas. Espero pelos próximos episódios.
Quem ouve o diretor todos os dias a verberar contra os maus resultados dos professores (deveria ter dito dos alunos?)nos exames sabe bem ouvir alguém falar do "çuceçivo çuçeço dus alonus".
Tenho , este ano, uma turma de alunos de 9º ano com tanto, mas tanto çuçeço, que vêm desde o 5º ano sempre referidos como tendo enormes dificuldades de aquisição e aplicação de conhecimentos e nunca tiveram uma reprovação. Não sabem ( nem acham que devem saber: não fazem tpc e qualquer trabalho na aula é de pura conversa) conteúdos básicos sendo impossível fazê-los progredir.

Ivone Melo

Sara Raposo disse...

Um excelente texto! Sou professora do ensino secundário e concordo inteiramente com o que escreveu. Ao contrário do que muitas pessoas argumentam, a avaliação externa (com exames bem elaborados) é a única forma de avaliar - com a objectividade possível - a qualidade das aprendizagens dos alunos e do ensino que lhes foi ministrado. Como diz, na vida real todos temos de estar submetidos ao escrutínio público. Porque não haviam também os alunos e os professores de estar? Afinal, a escola não é uma preparação para a vida?

Infelizmente, julgo que muitos dos que se dizem contra os exames fazem-no por dois motivos fundamentais:
- não querem eles próprios submeter o seu trabalho ao escrutínio público, pois isso poderia, eventualmente, evidenciar as suas próprias fragilidades e exigiria um esforço e um trabalho que essas pessoas não estão dispostas a realizar (como é óbvio, não podem dizer nem assumir tal facto);
- não querem saber de um princípio fundamental (que se aplica em muitas outras áreas, como à aprendizagem de modalidades desportivas, à participação em provas e concursos públicos, etc.): a necessidade de aferir e comparar as aprendizagens de todos os alunos, submetendo-as ao mesmo tempo ao mesmo instrumento de avaliação e nas mesmas circunstâncias. É claro que os incomoda as arbitrariedades que os exames possam introduzir, mas não as injustiças que decorrem das arbitrariedades de cada professor e de cada escola.

É óbvio, que os exames não são um instrumento perfeito (tal como nada na vida! E podem ser alvo de críticas, como tudo, aliás). Contudo, os exames são a melhor forma, que se conhece, de levar os alunos a estudar mais e os professores a ensinar melhor. Como é sabido, sem constrangimentos exteriores - qualquer que seja a actividade - é difícil esperar que a maioria escolha o esforço e o trabalho em vez do prazer imediato.

José Batista da Ascenção disse...

Tirando o facto óbvio de os exames deverem incidir sobre os conteúdos programáticos, e não conterem perguntas mal feitas, como entre nós tem acontecido tantas vezes, e de as respostas apontadas nos critérios, e os próprios critérios, não serem disparatados (se quiserem dou uns exemplos dos exames de biologia/geologia de vários anos letivos...), nada tenho a acrescentar, por redundante.
Obrigado ao autor e aos comentaristas anteriores (neste momento os três primeiros).

tempus fugit à pressa disse...

os testes são feitos pelo imediatismo na correcção

testes de resposta curta limitada que não admitem grande leque de alternativas e que apelam ao funcionário dentro de cada professor por vocação

tal como os meninos apelam à vocação em muito padre

estudar mais o quê?
figuras de estilo...centos de dados desconexos

problemas libertos de qualquer sentido crítico?

é são capazes de ser...

Anónimo disse...

Sou a favor dos exames em final de ciclo, mas acho que deveria de ser a todas as disciplinas, não só a Português e Matemática. Implicaria cumprir programas nacionais, o que é frequentemente descurado. Mas é urgente ver o que se passa com os programas, o novo programa de Português, que entrou em vigor este ano letivo para os 5º e 7º anos, é um documento INTELIGÍVEL e IMPRATICÁVEL, muito pior do anterior que pretende substituir. Tenho a certeza que não se vai a lado nenhum com este documento "normalizador", mas não vejo ninguém de direito a falar no assunto. Muitos professores de Português não sabem a quem pedir por "socorro"...!!!
HR

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