sábado, 24 de dezembro de 2011

No caminho do çuçeço: 5.º episódio — programas


Novo episódio do folhetim educativo de António Mouzinho:


Na origem de toda e qualquer tarefa de ensino está um programa. É referência de professores e alunos, de encarregados de educação ou de reposição em supermercados, legisladores e taxistas, o meu santo padroeiro e a empregada doméstica do Leitor. E felizmente que assim é: se alguma coisa sobrou dos escombros do ensino de qualidade das escolas técnicas e dos liceus foi a orientação uniforme, nacional, do ensino — por programas.

O programa nacional de uma disciplina significa que uma escola, uma direção, um pedagógico em crise de crescimento não podem sobrepor-se à sensatez de um professor que afirma, determinado: «pois, os senhores gostariam assim ou assado, mas o programa...».

O programa é a afirmação civilizacional de uma nação relativamente a uma matéria de estudo: que quer Portugal que os seus estudantes saibam de História?: isto no 1.º ciclo, e mais aquilo no 2.º, e aqueloutro no 3.º ciclo; depois, podem ir brincar. Mas antes, todos têm de saber isto, aquilo e aqueloutro.

Estamos conversados? Antes estivéssemos.

Há demasiadas maneiras de fabricar programas, e nem todas são boas. As modas atingiram os programas, nem sempre com a elegância e a sensatez da senhora Chanel.

Boa parte dos programas que por aí grassam foi feita tendo em conta o seguinte «tique»: os conhecimentos a transmitir aos alunos são algo extremamente perecível. Alguns são entregues na sala de aula já fora de prazo, porque o conhecimento nos tempos que correm ganha mais ranço que manteiga mal acondicionada. O progresso da Ciência e da Técnica é avassalador e conhecimento adquirido hoje, está ultrapassado amanhã. Então, que fazer? — agora, para o Leitor mais sensível à truculência: Deus meu, que fazer??? (O referido «tique», já se viu, é nervoso.)

Ensinar por competências. Eu explico: ninguém precisa de aprender uma peça de piano se for competente pianista. Pormenorizando: crie-se a cabeça de pianista ao menino, que ele nunca terá de aprender essa coisa redutora que é cada uma das músicas feitas para o piano.

Idealmente, nem nunca terá de tocar piano — coisa maçadora de entre as coisas maçadoras.

O menino — é.

(Pianista, entenda-se.)

Revoltam-se uns poucos quando topam que o menino, ao fim de 12 anos de escolaridade com estudo da língua materna, não sabe escrever duas linhas, numa dedicatória para a namorada, sem calinadas grossíssimas? Não é preciso: o menino não sabe escrever — ainda — mas sabe (e atenção agora à expressão-chave) «outras coisas». O menino tem «outras competências». (E tem o seu ritmo.)

Há programas encalhados na nossa costa!

Já antes falei de knowledge and skills. Mesmo os mais despudorados construtivistas anglo-saxónicos não fogem ao termo. Em Portugal as competências ganharam asas, protagonismo nos programas, direitos de cidade. Os conhecimentos foram subalternizados. Ninguém leu nada sobre o assunto (de que valem os conhecimentos?), e toda a gente opina.

Recentemente, ouvi num conselho de turma: «para quê trabalhar para os exames? Estamos aqui para dar o 12.º ano. Não me lembro de metade das coisas que aprendi, até, na faculdade! Importante é saber coisas que ficam, que perduram: essas coisas são as capacidades, são saber lidar com as situações novas...»

O cérebro humano não funciona assim. Muito simplesmente. Infelizmente, é a Ciência que o diz, não são os «pedagogos». Ignoro o ponto de vista dos Mórmones, mas estou disposto a aceitar qualquer opinião religiosa com a mesma benevolência com que aceito as tiradas da pedagogia — dita «nova», há já mais de um par de séculos de dislates.

Os programas que encalharam na costa deram, portanto, total protagonismo às competências. Falam dos ditos pianistas que nunca estudaram por uma peça de Bach, e de meninos que não são treinados a pôr as palavras à frente umas das outras a partir de bons exemplos da nossa literatura. Os programas encalhados dissertam sobre competências. Não contêm conteúdos.

Não são todos. Programas há que disparam tiradas magníficas sobre competências e, de seguida, dizem baixinho: «bom, não é verdade?, e a matéria para o 10.º ano é esta, assim e assim, exatamente com todos os pormenorzinhos, e depois a do 11.º ano acrescenta mais o seguinte, não será?, tintim por tintim, e quem não ensinar isto tudo está a dar cabo da vida aos meninos, n'est-ce pas?, porque vem aí o exame e quem não tiver os conhecimentos requeridos fica à porta da faculdade, onde sempre pode pedir autógrafos aos colegas que entraram, ou é chutado para uma instituição a 200 ou 2000 km de casa, ou para uma privada, mas isto só dá se os paizinhos pagarem...»

Então, qual é o ensino inclusivo? Hum?

Quando eu for grande quero que o meu país ensine por conteúdos, que é para os meninos terem competências. Especialmente aqueles cujos paizinhos não podem dar-se ao luxo de pagar experiências místicas.

Os programas são uma coisa demasiado importante para continuarem como estão.

(Não perca o próximo episódio do folhetim «No caminho do çuçeço», sobre manuais)

António Mouzinho

2 comentários:

Anónimo disse...

António
Estes programas que tudo parecem querer governar, incluindo a autonomia do professor na sala de aula nunca foram feitos para terem conteúdos pelo simples motivos que são feitos por "cientistas" da educação que não sabem o que é dar aulas e que regra geral seguiram um percurso nas ditas "ciências" sociais, quando se trata de disciplinas como a matemática,física, química, etc, então é que se vê a treta que são os programas, pois nas disciplinas não cientificas a coisa vai passando..

Anónimo disse...

Concordo plenamente, os programas são essenciais, programas com conteúdos bem definidos e exigentes na qualidade dos seus textos.

É incrível este divórcio da escola com as ciências e destas com a escola.Se já se sabe que o cérebro não funciona assim, porquê insistir?

E é muitíssimo importante haver trabalho em equipa entre as ciências e as línguas e literaturas. Não esqueçamos que a língua se relaciona com a comunicação, é fundamental que se comunique bem! (para não falar em questões de ética e etc).

Mas deixo uma pergunta:
Este ensino dito inclusivo que é tudo menos inclusivo, junta tudo no mesmo saco, e põe em turmas de 30 alunos, alunos com problemas que exigem uma resposta técnica adequada... que se faz a esses meninos e meninas?
HR

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