quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

No caminho do çuçeço: 2.º episódio — os responsáveis


Segundo episódio de «No caminho do çuçeço» de António Mouzinho:

Na senda de um 1.º episódio de «No caminho do çuçeço» dedicado aos exames, segue outro dedicado aos responsáveis pelo sucesso:

Temos uma legislação retorcida.

Já uma vez comparei a nossa legislação do ensino a um carro «kitado», que sai caro, é ineficaz e tem mau aspeto.

Desde 1990, quando foi aprovado um estatuto para a função docente, que os professores foram assistindo à atividade de oficina de bairro do ministério da Educação: o estatuto, de sua graça Decreto-Lei 139-A/90, visava a «revisão e substituição da legislação em vigor, dispersa por inúmeros diplomas».

Em cheio! Neste momento, quem queira perceber quem é o último responsável pela quantidade e qualidade do ensino na sala de aula de uma escola pública, tem pela frente o seguinte pedaço de leitura: primeiro, a versão mais recente do dito estatuto (foi modificado em 97, 98, 2003, 2005, 2006 e 2007 — duas vezes, neste ano...), crismada Decreto-Lei 270/2009, que diz isto: tem o professor o «[...] direito à autonomia técnica e científica e à liberdade de escolha dos métodos de ensino, das tecnologias e técnicas de educação e dos tipos de meios auxiliares de ensino mais adequados, no respeito pelo currículo nacional, pelos programas e pelas orientações programáticas curriculares ou pedagógicas em vigor; [...]» — art.º 5.º, 2 c).

De seguida, o Decreto-Lei 50/2011, que estatui sobre a organização e gestão curricular do ensino secundário (e é uma transformação de diplomas semelhantes de 2004, 2006 e 2008), e remete para «diploma próprio»: trata-se da Portaria 244/2011 (anteriores versões em 2004, 2006, 2007 e 2010).

Refira-se que a portaria n.º 244 se segue abruptamente, na página do Diário da República, a uma magnífica portaria, a n.º 243/2011, que elege qualidades, quantidades ou porções e pesos da fruta escolar e produtos hortícolas elegíveis para aquisição e distribuição às crianças. É saudável, generosa, adequada.

Après la 243, le déluge...:

Reza a 244 que intervêm no processo de avaliação dos alunos, na qualidade de responsáveis, o professor, o próprio aluno, o conselho de turma, os órgãos de gestão da escola, o encarregado de educação, os serviços com competência em matéria de apoio socioeducativo e a administração educativa.

Acrescenta a portaria que «compete ao conselho pedagógico [...], de acordo com as orientações do currículo nacional, definir, no início do ano lectivo, os critérios de avaliação para cada ano de escolaridade, disciplina e Formação Cívica, sob proposta dos departamentos curriculares, contemplando obrigatoriamente critérios de avaliação da componente prática e ou experimental, de acordo com a natureza das disciplinas e da Formação Cívica.»

E mais diz que «Os critérios de avaliação mencionados no número anterior constituem referenciais comuns no interior de cada escola, sendo operacionalizados pelo conselho de turma».

Querem, agora, saber como se articulam os vários órgãos dentro da escola? Há o Decreto-Lei n.º 75/2008 da administração e gestão escolar que define pelouros (o anterior é o 115-A/89, acrescentado do Decreto Regulamentar n.º 10/99, sobre as estruturas de orientação educativa).

O que será que isto dá na prática?

Dá uma imensa salada! Senão, vejamos: num país que saiba bem o que quer, isto pode significar que o currículo nacional aprovado é aplicado em todas as escolas públicas, encontrando cada escola o processo mais conveniente de o fazer, e entregando a responsabilidade última ao professor encarregado desta ou daquela turma. Os resultados obtidos por esse professor podem ser facilmente aferidos em exames nacionais, e estratégias e desvios explicados por condições e circunstâncias apontadas por esse exato docente em atas de reuniões de grupo e de conselhos de turma.

A corresponsabilidade (quase nacional, caramba!...), sentida e imputada àqueles intervenientes todos que são indicados mais acima, só pode ser tomada com tempero: que diacho, é no professor que residem as decisões fundamentais do ato educativo, é a ele que podemos pedir competência e batatinhas!

Isto, num país que saiba bem o que quer. Ora, isso é coisa que em Portugal não costuma acontecer (apeteceu-me escrever: soer...). Então, como é que se interpreta a legislação?

É simples: a diluição das responsabilidades é profunda, não se sabendo quem intervém na educação e quem na instrução; os conselhos pedagógicos das escolas foram esvaziados de pedagogos (há quatro grandes departamentos, ou seja, quatro grandes domínios de incompetência específica) que, devendo limitar-se a considerações gerais, dão-se frequentes vezes importância de senado e querem intervir na vida dos outros, como instrumento da direção: os grupos disciplinares deixaram de ser representados onde quer que seja, porque, de momento, é o inverso — é a direção das escolas que é representada nos departamentos, pelos designados «coordenadores», que são quem tem assento, e acento, no «Pedagógico». Têm responsabilidades que dizem respeito, entre outras coisas, aos projetos educativos. E os projetos educativos dão o tom relativamente à modernidade da coisa: mais velho construtivismo aqui, mais ciência cognitiva acolá, ao sabor do improviso local, com apoio numa legislação vaga, febril, desnorteada.

Então, a quem imputar responsabilidades no que quer que seja?

Ao Fado. Não foi justamente promovido a património imaterial da humanidade?

(Não perca o próximo episódio do folhetim «No caminho do çuçeço», sobre projectos educativos)

António Mouzinho

2 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Sim, é este o retrato.
Com particular acuidade para o brilhantismo da ideia de criar "departamentos curriculares" a impedir ou anular o trabalho e dinamismo dos grupos disciplinares.
Com "çuceço".
Aos inovadores o merecido reconhecimento.
Curvemo-nos.

Anónimo disse...

Sou mais alguém que aguarda o próximo folhetim: afinal, quem está a "folhetinar" anda no terreno, sabe do que´está a falar.
HR

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