segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A Entrada em Medicina e o Ensino Recorrente


“Não há nada mais relevante para a vida social do que a formação do sentimento de justiça" (Ruy Barbosa, co-autor da Constituição da Primeira República do Brasil, 1889).

Em prejuízo dos alunos do ensino regular, a entrada em Medicina de alunos do ensino recorrente tem sido caudal de um rio de injustiça que corre sinuoso para o mar de um descarado facilitismo. Em denúncia camoniana que aqui bem se aplica : "Os bons vi sempre passar / No mundo graves tormentos / E para mais me espantar / Os maus vi sempre nadar / Em mar de contentamento".

Uma chamada do semanário “Expresso” (10/12/2010) trouxe para o domínio público o fim das facilidades do chamado ensino recorrente que poderá, todavia, desencadear alguma polémica por se defrontar com direitos adquiridos, embora de forma pouco lícita. Transcrevo o teor da referida chamada ( com destaque na p. 19) , com o título “Ministro põe fim a truque para entrar na universidade”:

“Os estudantes do ensino recorrente vão ter de passar a fazer os mesmos exames nacionais que os colegas do ensino normal se quiserem concorrer à universidade. O Ministério da Educação acaba assim com o truque, ‘legal, mas injusto’, que permitia aos alunos do recorrente subir, num só ano, a média dos três anos do secundário e beneficiar de regras mais fáceis para aceder ao superior. Só este ano, 241 alunos usaram o esquema: dezenas entraram em Medicina”.

Em jeito de aparte (mas não tão aparte como isso), para que a injustiça na entrada no ensino superior não continue a existir com a cobertura de uma aberrante “legalidade”, de igual modo me parece ser necessário complementar esta medida com a substituição das facilitadas “Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos” pelo regresso ao exigente “Exame Ad-Hoc”, elaborado a nível nacional. Aliás, temática desenvolvida por mim em post publicado neste blogue (04/09/2011), em transcrição de um artigo de opinião publicado no “Público”, também da minha autoria, intitulado “Ingresso no ensino superior: o antigo exame ad-hoc e as actuais provas de acesso para maiores de 23 anos”.

Bem eu sei que o ingresso em Medicina reúne-se de aspectos específicos ainda não contaminados pelas "Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos" ao revestir-se de aspectos sui generis por a respectiva procura exceder largamente a sua oferta. Esclareço não ser apenas de agora, a reboque ou influenciado por esta louvável medida do Ministro Nuno Crato, a minha preocupação pelo ingresso nos cursos de Medicina, como testemunha a transcrição parcial de um meu artigo de opinião, intitulado “Exame de Aptidão à Universidade, por que não?” Escrevi aí:

“Em idos tempos, houve o exame de aptidão em que, por exemplo, a admissão ou a exclusão do aluno que quisesse ir para Medicina ficava a exclusivo encargo das respectivas faculdades e das exigências por si havidas necessárias. Hoje, um aluno que queira ingressar na profissão de Esculápio ( em primeira escolha, por declarada vocação, dono de capacidades científicas culturais sólidas e humanas incontestáveis, mas sem as elevadíssimas classificações que roubam aos estudantes do ensino secundário os prazeres de uma juventude saudável e vivida em plenitude ) , por vezes, apenas por um décima de valor a menos, tem como solução de recurso matricular-se em outro curso universitário, ou mesmo do ensino politécnico, no âmbito da Saúde, acedendo, numa espécie de roleta de azar, a cursos para que não está verdadeiramente vocacionado e muito menos sabedor do contragosto do exercício profissional que o espera. Por isso, defendo que deve competir à Universidade estabelecer o perfil do aluno que reúne condições para a frequência nos cursos de Medicina sem estar dependente, unicamente, da classificação dos diplomas do ensino secundário que, não raras vezes, pouco espelham a realidade.Quantas vezes um aluno merecedor de maior classificação no 12.º ano do que um outro, mas porque em situação diversa de avaliação, por diferentes e facilitados critérios de avaliação das escolas frequentadas, de quem o avaliou ou as condições em que é avaliado, não sai prejudicado” ("Público", 05/09/2005).

Parece-me desnecessário (por demasiado evidente) dizer que a injustiça decorrida desta situação se agrava quando confrontada com o ingresso de alunos do ensino decorrente. Curiosamente, catorze dias depois da publicação deste meu artigo de opinião deparo-me com a seguinte notícia de que transcrevo o que retive como essencial:

“Contudo o facto de não haver falta de candidatos para o curso não significa que o método de seriação seja correcto. Tenho a convicção que não é inteiramento justo, afirma António Sousa Pereira [presidente do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, do Porto]. Confrontado com os alunos que entram no curso, explica que ‘nem todos correspondem ao padrão que esperamos, dadas as provas que prestaram para entrar, e apresentam altíssimas taxas de insucesso. E se alguns encontram o seu caminho, outros não, o que deixa a sensação que outros mais vocacionados terão ficado de fora” ("Diário de Notícias", 19 /09/ 2005).

Sofrendo de vários defeitos, verdade seja dita, que para além do ensino recorrente, embora tenha facilitado, ou mesmo viciado, o ingresso em Medicina, bem mais perniciosas se me afiguram as "Novas Oportunidades" com as suas certificações de equivalência ao 12.º ano; e, outrossim, volto a recordar, o "Exame de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos" feito ao sabor das conveniências dos estabelecimentos de ensino privado (e não só) que franqueiam as suas portas a verdadeiros ignorantes para não terem que abrir falência a um ensino que se transformou num negócio cada vez menos rendoso.

As medidas necessárias para melhorar este statu quo não devem ser ministradas a conta-gotas com quem usa um vasoconstritor nasal para curar a patologia do acesso ao ensino superior que apresenta os sintomas de uma grave pneumonia descurada por um país que não atribui à formação do sentimento de justiça a relevância social que lhe foi dada pelo político e homem de leis Ruy Barbosa.

7 comentários:

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista,
Assinala-se hoje o 97 aniversário do nascimento do Prof. J. Sebastião e Silva.
A 4 de Dezembro de 1968, foi publicado no jornal a Capital um artigo do Prof. Sebastião e Silva com o título “Problemas da Universidade” onde expõe o que pensa da Universidade e dos seus problemas e ainda do ensino, nos seus diversos níveis e graus.

[…] “Para já, tenho a impressão e creio que vários colegas pensam mais ou menos como eu que haveria vantagem em facultar aos alunos mal preparados – que são quase todos – a frequência de um ano pré-universitário a funcionar na Universidade ou em alguns liceus.”
[…] “O referido ano pré-universitário teria essencialmente carácter de transição, de orientação e de recuperação – à semelhança do que se faz em outros países.”

O que pensa o Professor Rui Baptista do Ano Pré-Universitário uma vez que, hoje, tal como em 1968, é certo que os alunos do secundário estão mal preparados?
Obrigado.

Rui Baptista disse...

Prezado Joaquim Manuel Ildefonso Dias: O seu comentário suscita questões bem importantes que uma simples abordagem não comporta e, muito menos, me deve ser consentida.

Este meu comentário tem, como tal, um aspecto "propedêutico" merecedor de uma análise aprofundada que tentarei fazer brevemente.

Para já, o meu agradecimento por ter levantado uma questão tão oportuna.

Cumprimentos cordiais,
Rui Baptista

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista, permita-me prestar aqui, - em forma de comentário, a minha homenagem ao grande Cientista e Professor, José Sebastião e Silva. Para isso recorro às palavras do Prof. António Andrade Guimarães, da biografia que fez ao Prof. Sebastião e Silva.
[…]
“O prestígio internacional que, no princípio da década de 50, rodeou o nome de Sebastião e Silva determinou o convite, em 1952, para que se tornasse colaborador ("reviewer") da mais importante revista do Mundo de crítica à produção matemática original de todos os países, - a "Mathematical Reviews".

Desde então, o matemático português - único da sua nacionalidade distinguido até então com essa honra - subscreveu cerca de uma centena de recensões críticas de trabalhos de matemáticos estrangeiros, nomeadamente sobre Análise Funcional e Equações Diferenciais. Ulteriormente, recebeu convites análogos para a colaboração na revista alemã Zentralblatt für Mathematik e na revista americana Journal of Symbolic Logic.

Que o prestígio de Sebastião e Silva era de facto elevado nos meios internacionais mais categorizados, já nos primeiros anos da década de 50, documenta-o bem um episódio da sua carreira de "reviewer" da Mathematical Reviews.

Quando chegou a vez de elaborar a recensão crítica da monumental tese de doutoramento de Alexandre Grothendieck "Produits tensoriels topologiques et espaces nucléaires" (1955) - um dos mais importantes trabalhos matemáticos do século, - foi a Sebastião e Silva que a revista americana confiou essa tarefa, rodeada de excepcionais melindres pelo raro quilate da obra a criticar, e pelas dificuldades da respectiva leitura. O matemático português concentrou-se nessa tarefa em dedicação exclusiva de todo um Verão, redigindo por fim o extenso parecer que ocupa páginas inteiras da Mathematical Reviews - facto extremamente raro, como bem se sabe.”

Obrigado.

José Batista da Ascenção disse...

Caro Rui Baptista:
Relacionado com entradas em medicina e não só, relacionado também com ensinos recorrentes e escolas privadas, e relacionado diretamente com o que se passa no ensino secundário, há uma matéria que gostava de ver tratada: o porquê de as "notas" das diversas escolas secundárias do país terem disparado, para um subconjunto de alunos que pode ser de 20 ou 30%, com atribuição em "larga escala" de classificações de 19 e de 20, a originarem médias estratosféricas de estudantes que nada têm de genial e que, franqueadas as portas das universidades, caem na muitas vezes na vulgaridade (que lhes é própria...) quando não em insucesso.
E dou uma pista: Suponhamos um professor que há vinte anos não atribuía "vintes". Há uma dúzia de anos, os alunos com pretensões a entrarem em medicina, por exemplo, muitas vezes com um rendimento na casa dos catorze, "informavam" os professores de que mudariam de escola ou de regime (por exemplo para o ensino recorrente) se não "melhorassem" substancialmente as notas que esses professores lhes atribuíam. E faziam isso mesmo. Acontecia que no fim do período seguinte ou no final do ano, lá estavam as pautas com vintes para esses alunos. E então, interrogavam-se os professores, como fazer, empurrar os alunos realmente bons (de "dezoito") com que lidavam para cima, para não serem ultrapassados pelos "espertos" ou manter-lhes as classificações, abrindo as portas de ingresso precisamente àqueles espertos?
E assim se tem andado...
Problemas destes parece que ninguém quer resolver. E poucos são os que os trazem à discussão. Por que há-de ser assim?
Já agora, queria referir que conheço escolas privadas que funcionam decentemente. Porque bem dirigidas e porque contornam porfiada e inteligentemente as burocracias paralisantes da pedagogia ministerial. É claro que também estão servidas por bons professores. Mas esses professores são os mesmos que trabalham ou trabalharam no ensino público.
Logo...

Anónimo disse...

Acerca da entrada em medicina e das supostas injustiças do ensino recorrente, pois acho que não se percebe nada do que se aqui fala.
Corre pela cidade de Coimbra que um ilustre médico, professor, e dotado de muita influência que, a propósito da entrada do seu filho na Faculdade de Medicina, terá dito: pela primeira vez entrou em medicina um burro em cima de um cavalo. O seu filho entrou em medicina através dos números especiais para os atletas de alta competição, este acabado de inscrever nas ditas provas pouco tempo antes de concorrer a medicina. Também há quem vá viver uns anos para o estrangeiro e quem se torne atleta de outras modalidades. Tudo isto são histórias que correm na cidade de Coimbra sobre a forma como entram em medicina os filhos de vários médicos da cidade.
Mas, são histórias, contadas por várias bocas, amigos próximos e pelos próprios que assim entram em medicina. Sabe-se lá o que tem de verdadeiro, pois não saíram nos jornais.

Rui Baptista disse...

Apenas três brevíssimas notas sobre o seu comentário:

1. Estou pronto a esclarecer as suas dúvidas sobre aquilo que não compreendeu do meu post, embora sem necessidade de alterar uma vírgula que seja do que nele escrevi.
2. Duvido que o médico a que se refere, sobre a entrada em Medicina do seu próprio filho, tenha tido o dito chistoso ( e passo a citá-lo): “pela primeira vez entrou em medicina um burro em cima de um cavalo”. Há pais piadéticos, mas tanto?
3. A entrada em Medicina de alunos não ficará completa sem o exemplo de todos aqueles que andam à coca (passe o plebeísmo) de escolas do ensino secundário, privadas ou públicas, que inflacionam as notas.

Rui Baptista disse...

Caro José Batista da Ascenção : Para além da cuidada análise que faz, no que tange ao caso de alunos com altas classificações do ensino secundário que falham no ensino superior, eu posso testemunhar, acrescentando às razões e hipóteses por si suscitadas, casos desses que se passaram no meu tempo de jovem (hoje octogenário).

Uma das possíveis razões residia, para mim,no facto desses “marrões” estudarem horas e horas para se livrarem do respectivo, e exigentíssimo, exame de aptidão ao ensino superior (classificação mínima de 14 valores).

Uma vez vencida essa etapa, num ensino em que as matérias eram incomparavelmente mais exigentes não as acompanhavam por não poderem duplicar as horas de estudo...ou por fata de "massa cinzenta"!

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