Terceira e última parte de um texto de Carlos de Sousa Reis sobre a ancestral procura do sentido de ensinar.
A antinomia entre construtivistas e tradicionalistas, que aflorei em texto anterior, tem levado a certas radicalizações reducionistas.
Dir-se-ia que, para uns, por simples transmissão, mas com persistência, até os peixes podem aprender algo de um sermão, chegando mesmo a ser capazes de o reproduzir na perfeição. Requer-se-lhes silêncio e atenção quando algo lhes é transmitido. Assim aprenderão, por exemplo, a designação dos diversos tipos de peixes: os roncadores, os pegadores, os voadores e os polvos. Neste caso, não teriam menos virtudes do que os peixes, de que fala P.e António Vieira, quando escutavam S. António.
Mas, para outros, importa sobretudo que o que deve aprender seja implicado de, por si mesmo, produzir o que o entendimento é capaz e, desse modo, em simultâneo alcançar o conhecimento e desenvolver a função que o gera. Não seria pois menos verdade que se lhes propiciarmos a motivação ativadora da capacidade (re)construtiva do conhecimento, até os peixes podem afinal aprender um sermão: a natureza ambígua dos seres humanos, que sendo dotados de virtudes, são também atreitos a vários vícios.
O paradigma construtivista reclama a atividade do educando, o que remete para a motivação requerida à sua ativação. De facto aquilo que a aprendizagem requer é a intervenção da vontade do educando. Joseph Jacotot insistiu, de modo radical, na importância da vontade para a aprendizagem (Rancière, 2003). A seu ver, o mais diferenciador dos indivíduos não seria a inteligência – supostamente distribuída de um modo equitativo –, mas a vontade, cuja ausência comprometeria a aprendizagem.
Segundo Jacotot não existem diferenças de capacidades – seja de memória, de compreensão ou de juízo –, mas apenas diferenças quanto ao prestar atenção ao que se vê e diz; é a mesma inteligência segundo a energia da vontade que lhe assiste. As diferenças derivam somente das diferenças do uso, da atenção menos afincada. A qualidade do uso da inteligência ganha-se a partir da sua derivação da inquietude do ser quanto às necessidades e circunstâncias que o afligem, daí que o aprender deva brotar da vontade e das necessidades individuais, pois doutro modo decairá a qualidade da atenção.
A desigualdade dos resultados deriva, portanto, não da desigualdade das inteligências, mas da desigualdade das vontades, por delas se obter uma atenção também desigual. O espírito falha e o erro aflora apenas quando a inteligência se vê afetada pela distração. Emerge a partir da preguiça, do menosprezo da competência pessoal, do medo perante o ousar a autonomia intelectiva, ou do pensar sobre o signo da desigualdade. São os desvarios e recuos da vontade que motivam a distração fundamental que suspende a busca que alimenta o aprender. Uma falta de atenção, como carência, perversão ou traição da vontade, corresponde, portanto, a uma infidelidade a si mesmo, a um mentir-se.
Em função dos movimentos da vontade, determinantes da intensidade da aplicação da inteligência, a inteligência ativa-se ou bloqueia-se, o espírito expande-se ou atrofia-se e toda a palavra se enche ou esvazia. É claro que aqui, quando se implica a vontade, implica-se também o esforço, confiando-se menos no prazer do que no querer; o prazer virá depois, em consequência do ter aprendido. O momento inicial de ativar a vontade não livra o aprendiz do esforço de aprender.
Entender-se que o educando deverá ser, progressivamente, envolvido na sua própria formação evita alguns equívocos.
Evita, por exemplo, a confusão de tomar o ensinar pelo transmitir, a atenção pela compreensão, o aprender pelo repetir ou, se se quiser, o que são os homens pelo que são os peixes: “Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão” (Vieira, 2011, 6).
Nada disto implica, no entanto, que não sejam necessárias as duas dimensões do processo: o transmitir e o ensinar, a atenção e a compreensão, o motivar e o querer, o prazer e o esforço, o repetir e o aprender. Abordar a questão do ensino e da aprendizagem respeitando a sua inerente estrutura antinómica evitará cairmos nos reducionismos que nos levam pelos caminhos da parcialidade, evitará não saber reconhecer as virtudes e limitações dos princípios concorrentes, evitará não sabermos ver as virtudes e limitações dos peixes e dos homens.
O que será dos homens se não forem capazes da mesma atenção que os peixes devotaram ao sermão de St.º António? Como aprenderão então? E como aprenderão se não for despertado o gosto por aprender? E como aprenderão se, despertado esse gosto, não se esforçarem no trabalho em que podem aplicar as suas capacidades?
Carlos de Sousa Reis
BIBLIOGRAFIA
Barthes, R. (1984). Mitologias. Lisboa: Edições 70.
Cabanas, J. M. Q. (1988). Teoria de la educación: Concepción antinómica de la educación. Madrid: Editorial Dykinson.
Platão (1987). A República. 5ª ed. Trad. M. H. Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Platão (1993). Ménon. Trad. J. T. Santos. Lisboa : Edições Colibri.
Rancière, J. (2003). El maestro ignorante. Barcelona: Editorial Laertes.
Vieira, P.e (2011). Sermão de St.º António aos peixes. Porto: Porto Editora.
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3 comentários:
"O que será dos homens se não forem capazes da mesma atenção que os peixes devotaram ao sermão de St.º António?"
Sermão.
Ser mão!
Dar a mão, estendê-la.
Responso
N'aquele espaço, vosso paço,
com, mergulhei na lida amar,
e do berço, qual face o faço,
por comportares, nosso lar.
O pertencera de quando ameno,
neste pleno e, no meu lamento
caibe-vos o sentido, sereno;
ao canto que anima, do pranto.
Velai-nos per laiva agonia,
e cá, crea?! Anuncia, ouvir-te!
Despertai o quê, mo silencia,
o celeste conduz vosso porte,
eis! Pousado na luz infinita,
sois de chama a alma, bendicta.
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