quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

No caminho do çuçeço: 3.º episódio — os projetos educativos


Continuação da "novela" pedagógica de António Mouzinho:

Diz-nos o Decreto-Lei n.º 75/2008 que são instrumentos de autonomia das escolas o projeto educativo, o regulamento interno, os planos anual e plurianual de atividades e o orçamento. Constituem instrumentos do exercício da autonomia de todas as escolas e o primeiro é o documento que consagra a orientação educativa da escola. É elaborado e aprovado pelos seus órgãos de administração e gestão para um horizonte de três anos, e nele são explicitados os princípios, os valores, as metas e as estratégias segundo os quais a escola se propõe cumprir a sua função educativa.

Muito bem. Ficamos sabendo, à partida, que diferentes escolas podem produzir diferentes funções educativas.

Quais serão os critérios?

O que se quiser: se dermos mais uma voltinha pela legislação, percebemos que

(1) o projeto educativo é elaborado pelo conselho pedagógico, sendo
(2), de seguida, passado à direção; só então
(3) é submetido ao conselho geral que
(4), depois de o remoer, aprova, ou nem por isso.

«Une valse à
quatre temps» («c'est beaucoup moins dansant, mais tout aussi charmant»).

Que conselho pedagógico é este que tão bem elabora? É, para começar, o diretor da escola com o seu quadrunvirato: preside ao pedagógico, onde tem uma espécie de 4 comissários políticos — os coordenadores de departamento, que nomeou. Como não são escolhidos pelos grupos disciplinares, tenderão a ser designados por critérios sortidos: pela diligência obediente, pela obediência diligente, porque estavam ali, porque não pode ser nenhum dos outros, porque são competentes, porque não chateiam, porque o departamento não diz que não, porque o departamento diz que sim, porque quem manda aqui sou eu, porque são umas nulidades, porque são brilhantes, ou experientes, ou estavam de costas, puseram o dedo no ar — sei lá mais o quê...

E depois somam-se uns quanto membros: representantes das estruturas de coordenação e supervisão pedagógica e orientação educativa — mais professores nomeados (coordenações de educação e formação de adultos, novas oportunidades, científico-humanísticos, diretores de turma, um ou outro avulso...) —, representantes dos pais, representantes dos alunos. Enfim: no máximo, 15 reconhecidos pedagogos; representam, idealmente, 15 áreas do saber (começamos a recordar aquela ruminação «só sei que nada sei», que nos apoquenta sempre que não estamos a preencher o boletim do Totobola a eito).

Representam, igualmente, em boa maioria, a direção. Espelham-na.

Cada escola terá o seu pedagogicozinho feito por uma destas medidas: um diretor volitivo escolherá pessoas sensatas que possam cantar com ele em uníssono, numa pacatez provinciana; um diretor inteligente escolherá gente independente e interessada. Em resumo: as escolas têm a qualidade do ensino entregue a uma senhora ou um senhor.

Elaborado o documento é, portanto, entregue: o diretor, que preside ao pedagógico, mete-o ao bolso, ou coisa parecida. Do bolso, passa para o conselho geral da escola.

Estão pedagogos no conselho geral? Sim, mais uns quantos: auxiliares, mais representantes dos pais e dos alunos, membros da comunidade educativa e até um número de professores em minoria. De novo, podemos arriscar: ora, muito bem.

O que deveria fazer tanta gente? Deveria pensar — por exemplo — que um projeto educativo local não deve pôr-se a inventar particularidades sobre pedagogia, porque não tem para isso qualquer espécie de competência. Deve preocupar-se com o facto de a escola ter a obrigação de proporcionar à comunidade que serve um bom quadro de acolhimento de alunos e o cumprimento dos programas nacionais; tem de ensinar bem e exigir bem. Ser uma casa do saber, e da respectiva transmissão. Da curiosidade intelectual e da sua concretização.

Pensemos no seguinte: a formação que referi dos três órgãos de gestão permite que, daquela gente toda, possa não haver ninguém que perceba grande coisa de Filosofia, ou de Física. Qualquer tentação de opinar sobre um dos dois assuntos deve, nesse caso, ser remetida para o café, ou para a bicha da caixa do supermercado, locais por excelência do debate intelectual no nosso país. Nunca para o conselho pedagógico.

Esse debate, a ser pertinente, compete aos grupos disciplinares. Estão aí os especialistas. Entregam ao pedagógico os documentos elaborados sobre ensino e avaliação. E este aprova, se não notar que os professores de Matemática, por puro espírito de brincadeira, entregaram um documento sobre a didática do Francês no século XVIII. Princípios, valores, metas e estratégias da função educativa são políticas: não são didática.

Já foi aqui dito, no 2.º episódio deste folhetim (happy sodium, em Inglês: fica sempre bem dizer as coisas em Inglês...) que «compete ao conselho pedagógico [...], de acordo com as orientações do currículo nacional, definir, no início do ano lectivo, os critérios de avaliação para cada ano de escolaridade [...], sob proposta dos departamentos curriculares» (portaria n.º 244/2011). Ora este conselho não tem, necessariamente, competência científica para lidar com o assunto — como acabámos de ver. Então, que será que o Legislador tinha na cabeça?

É de crer que tinha umas ideias sobre o assunto.

A atividade agrícola perdeu importância em Portugal. Temos menos batatas; mas temos mais bitates.

(Não perca o próximo episódio do folhetim «No caminho do çuçeço», sobre avaliações)

António Mouzinho

5 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Tal e qual.

Pena que não se possa resumir o projeto educativo de cada escola a algumas (poucas) linhas:
- Ensinar os alunos;
- Proceder com respeito e exigir respeito;
- Detetar problemas de (mera) aprendizagem e propor (e estar disponível para) as (melhores) soluções pedagógicas;
- Encaminhar os problemas sociais, psicológicos ou psiquiátricos para os profissionais da área;
- Recusar sumbmeter (rebaixar) os professores aos ditames e exigências de pais que não educam, de "pedagogos" que fizeram tudo para fugir do ensino, de técnicos da psicologia e da psiquiatria que nunca resolveram qualquer problema de qualquer aluno, e de "alcaidezinhos" que se julgam (por eles mesmo e por outros) como "forças vivas" (eu diria "espertas") das regiões;
- Por último, exigir mesmo que os professores saibam o que têm que ensinar e que falem e escrevam escorreitamente em português.

Como primeira adenda: cortar obrigatoriamente o "paleio" que não interessa e deitar fora sistemas de avaliação para "inglês ver" e que não avaliam nada.

Como segunda adenda: analisar segundo a mesma metodologia a natureza e obrigatoriedade dos pomposamente chamados "planos curriculares de turma", pêcêtês na sigla, que todos os professores tomam como uma (estúpida) estopada, que os encarregados de educação ignoram (e bem) e para que os alunos se estão "marimbando", para usar termos (mais) vernáculos.

Como terceira adenda: é sobre estes aspetos que vale a pena contar com a serenidade, paciência e princípios de Nuno Crato.

Emanuel Mendonça disse...

Tenho de contestar algumas das afirmações aqui feitas, com base naquela que é a minha experiência enquanto professor do ensinos básico e secundário.

Em primeiro lugar os Coordenadores de Departamento não são comissários do Presidente / Diretor da Escola. São democraticamente eleitos por TODOS os professores do respetivo departamento curricular. São eleitos de entre os Delegados / Representantes, os quais também são democraticamente eleitos por todos os professores do grupo disciplinar / disciplina.

Quanto ao Conselho Pedagógico, o Presidente do Órgão de Gestão, embora presente, não tem direito de voto. Além disso, qualquer membro do Conselho pode ser presidente.

Em terceiro lugar, os docentes do Conselho da Comunidade são também democraticamente eleitos pelos seus pares.

Finalmente, serão os documentos orientadores da escola os melhores? Talvez não. Serão alguns necessários? É questionável. Mas são as regras.

Isto é o que se passa na minha escola. Se calhar estamos errados...

António disse...

Brilhante episódio, este.

Mas estranho o último comentário do colega Emanuel... Terá ele lido a legislação em vigor sobre a nomeação dos coordenadores de departamento? Não parece. É que, agora, o diretor já não tem de dar cavaco aos professores sobre quem escolhe. Em boa verdade, o coordenador já não é o "representante" dos seus colegas. Foi nomeado, não escolhido pelos pares. E daí ser adequado o termo "pedagogicozinho"...
Se, na escola do colega Emanuel, o diretor ainda ouve os professores na escolha dos coordenadores, tem sorte - mas a Lei já não o exige.
Já a frase "Mas são as regras" é de um conformismo que gela qualquer alma com dois gramas de espírito crítico.

Emanuel Mendonça disse...

Caro António,

Eu li a legislação. Cometi foi uma omissão, pela qual me penitencio. A minha escola fica na Região Autónoma da Madeira que, como certamente saberá, tem legislação própria sobre a matéria (Decreto legislativo regional 21/2006/M, de 21 de junho, publicado no Diário da República).

Também lhe digo que a frase "Mas são as regras" não é conformismo. Não há PEE, PCE, PCT, ou qualquer outro documento começado por P que resista se os professores não se empenharem naquilo que verdadeiramente devem fazer. Papeis não produzem resultados. Pessoas empenhadas sim. E eu procuro resultados. Nem sempre é fácil, mas não desisto. Quanto aos papeis, são ciclicamente mudados, tornam-se efémeros.

Emanuel Mendonça disse...

Estou de pleno acordo com José Baptista Ascensão. Poupava-se imenso tempo e dinheiro. E ainda se contribuía para a preservação da floresta.

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