segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

François Chatelet sobre a educação: "na educação há uma espinha dorsal"


Do livro que comprei na Livraria Esperança no Funchal "Os Filósofos e a Educação" (Colibri, 1993) transcrevo um trecho da entrevista feita a François Châtelet, filósofo francês entretanto falecido:
"P- Qual o modelo de educação que propõe?

R- Um projecto educativo deve absolutamente evitar a noção de modelo. Somente nos períodos ditos arcaicos, a que chamamos totalitários, é que se tem uma visão monolítica da educação. É por isso que eu sou resolutamente e injustamente antipedagógico. Tenho medo de todos aqueles que têm receitas para educar, para "formar um homem". Não há modelo de homem a não ser no discurso dos teólogos. Um modelo é perigoso porque é limitativo. Restringe não apenas as possibilidades de felicidade, mas ainda as oportunidades de liberdade. A única unidade do homem, que eu conheço é biológica. Quanto ao mais, apenas vejo homens.

A boa educação é justamente aquela que preserva esta pluralidade, que se propõe manter o plural do ser humano. É por isso que eu digo "educar as pessoas" - os "numerosos", como dizia Platão, e não "formar o homem".

P- Por conseguinte, esta educação não se baseia numa ideia do homem, mas numa certa concepção da sociedade.

R- O que eu digo não é válido evidentemente para todas as sociedades, mas apenas para as democracias. Para aquelas que se baseiam na deliberação e que concedem muita importância ao conhecimento. Para debater é necessário saber. Por outras palavras, se sou partidário da instrução, não é por motivos tecnocráticos, mas por razões políticas. Vivemos com os outros, e é com os outros que temos de examinar e discutir os fins colectivos, os fins enunciados em termos claros e explícitos. Isso torna-se imperativo se queremos evitar os mal-entendidos e as manipulações. O essencial da educação diz respeito, por conseguinte, à transmissão dos conhecimentos. Não para produzir politécnicos, mas para que cada qual se forme na relação ao outro.

Além disso, há no conhecimento algo que penetra profundamente na existência, que lhe dá mais gosto e a torna mais feliz, mais consciente de si própria e ao mesmo tempo, por vezes, mais dolorosa.

P- Fala de conhecimento. faz distinção entre a instrução que transmite os saberes e a educação que forma?

R- Sim e não. São os pedagogos que endurecem uma tal distinção. Eles são contra a instrução, não se preocupam com o facto de que as pessoas saibam alguma coisa. Dão a entender que em certo tipos de relações interpessoais acontece algo parecido com uma comunicação de alma a alma. pela minha parte, creio que a linguagem do conhecimento continua a ser o melhor meio para comunicar.

Por conseguinte, na educação há uma espinha dorsal -a instrução - à qual se ligam, sem a ela se reduzirem, as outras modalidades de formação. Penso, em particular, na formação física. Não falo da ginástica sueca ou do jogging, mas da aquisição de uma espécie de inteligência do corpo.

P- E a instrução?

R- Incluo nela, ao lado do saber-fazer e do saber-pensar, aquilo a que os velhos manuais de filosofia chamavam o conhecimento desinteressado: a matemática, a poesia, a filosofia, a história, por exemplo."

3 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Eis um livro cujo título, nas condições atuais, tenderia a afugentar-me.
Com prejuízo meu. Muito prejuízo.

Deixo esta nota: como os meus proventos chegam cada vez menos para a livralhada que preciso ou que gostaria de comprar, será vergonha pedir ao Prof Fiolhais que vá dando, assim de graça, outros trechos que julgue de interesse? Só alguns excertos, claro. Que até servem para publicitar o livro (este argumento não é mau, nem escandaloso, pois não? - É que tenho dúvidas...)

Cláudia S. Tomazi disse...

O primeiro ponto em que discordo: seria o modelo por alicerce baseado na experiência de outros, embora formação humana como não tivera continuidade? De onde, para onde. Pois o existir é situar-se. E os exemplos estão para a complexidade.

Por segundo mergulharia mais: homem como ser biológico é conseqüência, enquanto vida; porém o homem pelo homem é ser neurológico, por estar a pensar seu lugar no mundo.

Terceiro: educar os numerosos é educar as massas, educar as massas é politizar, é reagir por reacção. Interessante por considerar a educação flexível, como se fora o pensamento respostas sensoriais, aliás essa idéia, lembra muito o reino das formigas.

Quarto: “quando cita tipos das relações interpessoais acontece algo parecido como comunicação de alma a alma”. Interessante perceber, que esta questão, inclusive devo em permissão, por ver mencionada de forma, bem mais evoluída pela Dra. Isabel X como Diálogos da Consciência.

Joaquim Manuel Ildefonso Dias disse...

[…]. “Mas pode talvez notar-se um excesso de zelo utilitarista nas palavras seguintes, relativas aos deveres do professor para com os alunos:

‘São-nos confiados pelos pais, para que façamos deles homens aptos a compreender a vida das nações modernas e a participar nessa vida. Se nós não temos em consideração estas exigências: se, por amor da cultura, sufocamos nos alunos o sentido prático e o espírito de iniciativa, estamos a faltar ao maior dos nossos deveres'.

Esta critica é justa apenas em relação a certo tipo de cultura. Embora seja vago o significado da palavra 'cultura', podemos dizer que a cultura científica resulta precisamente da síntese dos dois termos complementares: a teoria e a prática. E, mesmo quando à cultura geral que inclui os aspectos filosófico, literário, artístico e humano, tem-se verificado que a sua ausência prejudica seriamente a formação de bons técnicos e de bons cientistas. E mais ainda a de bons dirigentes.

O que é preciso é não confundir cultura com erudição e sobretudo com o enciclopedismo desconexo, imensa manta de retalhos mal cerzidos, que vão desde as guerras púnicas ate ao sistema nervoso da mosca. É esse, a bem dizer, o tipo de cultura que tende a produzir o ensino tradicional, baseado num sistema de exames que só permite apreciar memorizações e automatismos superficiais, mais ou menos próximos do psitacismo.

Um dos objectivos fundamentais da educação é, sem dúvida, criar no aluno hábitos e automatismos úteis, como, por exemplo, os automatismos da leitura, de escrita e de cálculo. Mas trata-se aí, manifestamente, de meios, e não de fins.

É certamente útil saber falar com fluência línguas estrangeiras, ou tocar piano - como é útil saber nadar, escrever à máquina, conduzir automóvel ou jogar futebol. Mas rambém estas prendas (como se dizia antigamente) são apenas meios e não fins - a não ser que se tenha em vista escolher uma dessas actividades como profissão (mesmo assim, será um meio de ganhar a vida).

E note-se, de passagem, que a melhor maneira de ensinar a ler ou a dominar uma língua estrangeira não é obrigar a ler trechos sem qualquer interesse ou a fazer exercícios absurdos.

Os referidos automatismos são, pois, meios para atingir certos fins: são precisamente meios de acesso à cultura, A sua finalidade é a de aumentar o poder e a liberdade do verdadeiro pensamento, que não é substituível pela máquina e sem o qual o homem se reduz a perigoso escravo das máquinas, como se tem observado infelizmente.

Um ensino que não estimule o espírito e que, pelo contrário, o obstrua com as clássicas matérias para exame, só contribui para produzir máquinas em vez de homens. E não é assim que se curam os males de que está sofrendo o mundo.”
(Guia para a utilização do Compendio de Matemática, GEP; J. Sebastião e Silva)

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