Tenho tropeçado muito num certo argumento para justificar a exposição que se faz de pessoas até limites inimagináveis em programas de televisão, reduzindo-os a objectos bizarros, que, nessa medida, prendem a atenção. “Ninguém os obriga! São eles que querem!”, é o argumento.
Se nos situarmos no mundo dos concursos que apelam a “vivências reais” e conversas com “pessoas reais”, o argumento poderá parecer razoável: os concorrentes, os entrevistados sabem ao que vão e recebem contrapartidas. Dão a ver (ou simulam que dão a ver) ao mundo o que lhe é mais íntimo, o seu corpo, os seus pensamentos, os seus afectos, tudo o que se lhes pedir. Por isso são pagos. É um negócio como outro qualquer.
Devo dizer que discordo em absoluto deste argumento.
O conhecimento do passado permite concluir que haverá sempre quem esteja disposto a fazer qualquer coisa, por mais infame que seja, a troco de muito ou de pouco, disto ou daquilo. Imagine-se algo verdadeiramente vil e ter-se-á por certeza que existe quem a execute.
No caso desses programas, o limite a partir do qual não podemos, sob pretexto algum, dispor dos outros, ainda que eles aceitem dispor-se, foi há muito ultrapassado.
A responsabilidade, diz-se, é partilhada e, como tal, de ninguém: patrões, público, clientes, candidatos, profissionais... Os clientes ficam presos ao ecrã, os candidatos não faltam, os patrões vêem oportunidades de negócios, e os profissionais executam.
Nesta cadeia, poderá parecer que estes últimos são os menos comprometidos. Não são. Muitos deles fizeram estudos superiores e, nessa medida, terão consciência que devem pautar o seu desempenho por princípios éticos. São sobretudo eles, e não os candidatos ou o público, quem terá mais consciência informada do que é tolerável e intolerável na relação com o outro.
Mas como uma apresentadora desses programas declarou a uma revista: "quem tem ética passa fome". Talvez.
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4 comentários:
Concordo inteir(issim)amente.
Muito do que se passa nas nossas televisões não é, em minha opinião, mais do que o exercício de modos diversos de prostituição (que não se resume apenas a sexo...)
E, nessa matéria, o que se passa na televisão do estado, paga com os impostos de todos (os que os pagam) é, além de obsceno, criminoso (mesmo que legal).
E, fazendo uma extensão do assunto, sem querer desviar-me dele, afirmo que o que muitos estudantes do ensino superior(?) praticam (publicamente) naquilo a que chamam praxes não tem uma raiz de natureza diferente.
Também é assim na política e na (des)governação do país.
Como em todos os aspectos da vida em sociedade.
Agora, os limites são (cada vez mais) melindrosos, e muito difíceis de resolver a contento de todos. Bem o sabemos. Mas há mínimos que temos que ousar definir. E defender.
Ou a sociedade afoga-se na lama que produz. Mesmo que alguns/algumas se fartem à custa da falta de ética. E exibam grotescamente a sua ignara fartura.
Felicito-a pelo post e vou partilhar.
Professora Helena Damião, por esta não esperava: «Muitos deles fizeram estudos superiores e, nessa medida, terão consciência que devem pautar o seu desempenho por princípios éticos.» Acredita mesmo no intelectualismo moral?
Caros bloggers
Esta é uma questão muito complicada e já com alguns anos de existência em mercados mais desenvolvidos que o nosso.
O crescimento económico, que é positivo em muitos aspectos, tem trazido alapado uma diminuição clara da moral pública, ou antes a sua contínua degradação.
Um bom exemplo disto mesmo é retractado no Filme "Untraceable" de 2008 (http://www.imdb.com/title/tt0880578/) em que o público de Internet acede a um website onde se pode ver a morte atroz de uma pessoa, que morrerá mais depressa, quanto maior fôr o número de acessos ao website. A cada nova vítima, apesar dos apelos da polícia para não se ligarem ao website, o número de acessos salta de dezenas de milhares para milhões.
Conclui-se assim que não estamos perante um fenómeno novo, mas apenas perante a sua revelação no nosso jardim.
A questão da ausência de comportamento ético é histórica, e nos últimos anos temos assistido à sua total degradação, a começar pelo próprio estado e órgãos de governação, que eram antes tidos como último bastião da moral. Estou a pensar nos continuados escândalos dos padres católicos pedófilos, estou a pensar no caso de Berlusconni em Itália, ou na portuguesa "Casa Pia" (entre aspas, claro, porque de pia pouco terá...).
Só a educação das pessoas poderá de alguma forma atalhar este deslaçar das condutas éticas. No entanto com o estado a que o Ensino chegou, tenho poucas esperanças de que isso possa realmente ser uma solução!
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