domingo, 10 de outubro de 2010

SERÁ QUE ADÃO ENCONTROU EVA?


Texto do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, 2005, esgotado no editor):

Nem todos os cientistas são bons comunicadores. Mas alguns não são só bons comunicadores: são excelentes comunicadores. Até há algum tempo a comunicação científica para o grande público era mais obra dos físicos (Carl Sagan, Richard Feynman, Steven Weinberg, etc.), mas os biólogos estão têm ultimamente estado a dar cartas nesse sector. Já havia François Jacob, Edward Wilson, Stephen Jay Gould – este infelizmente já falecido - e Richard Dawkins, mas agora há também Matt Ridley, Mark Ridley (os dois Ridleys não têm relação de parentesco) e Steve Jones.

Steve Jones, professor de genética no London College da Universidade de Londres, esteve em Portugal para apresentar o seu último livro “Y. A Descendência do Homem” (número 132 da colecção “Ciência Aberta”, da Gradiva). Em Lisboa, no Instituto Ricardo Jorge, em Coimbra, no Auditório da Reitoria e no Porto, no Auditório do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular, procurou responder à pergunta - “Será que Adão encontrou Eva?”.

Este livro é o quarto volume de divulgação da ciência do autor. O primeiro foi “A Linguagem dos Genes” (que ganhou o Prémio Rhône-Poulenc de Literatura Científica em 1994), o segundo “In the Blood” (um livro ricamente ilustrado, que acompanhou uma série de televisão, e que também ganhou aquele prémio, a maior distinção para livros de “ciência popular”) e, depois, “Almost like a Whale, uma recreação da obra maior de Darwin – “A Origem das Espécies” na perspectiva dos conhecimentos actuais (que voltou a ganhar um prémio, desta vez o British Petroleum Natural Book Prize de 1999). O primeiro livro está publicado em português, pela Difusão Cultural, e os outros dois bem mereciam estar.

De facto, Jones escreve – e fala – de uma maneira muito viva, que não deixa o leitor – e o auditor – indiferente. Quando, na palestra de Coimbra, me apresentei como físico e disse que só sabia coisas simples e não as coisas tremendamente complicadas que havia na Biologia ele logo retorquiu:

“Costumo dizer aos meus alunos que a evolução é quase tão fácil como a Física”.

E continuou com uma anedota da autoria do físico Niels Bohr, e que se encontra de resto no início do seu último livro:

“A ciência é sem dúvida , uma forma crua e pragmática, mas eficiente, de compreendermos o mundo que nos rodeia. O físico Niels Bohr comparava-a ao lavar da louça após o jantar: pratos sujos, pano sujo e água suja; mas, como que por magia, os pratos aparecem limpos. Segundo ele, a filosofia desempenhava a mesma função, mas sem o recurso à água”.

A ciência não é, portanto e ao contrário do que muitos alunos julgam, uma “grande seca”. E há muito de comum entre a Física e a Biologia. Ambas integram a busca humana de “compreender o mundo que nos rodeia”. Se através da Física a ciência passou a compreender a queda dos corpos e o movimentos dos astros, o quente e o frio, a electricidade e o magnetismo, a estrutura da matéria (incluindo os átomos e a sua organização em moléculas), etc., através da Biologia ela passou a compreender melhor os organismos vivos, incluindo o ser vivo mais extraordinário de todos que é o homem (aqui no sentido de “homo sapiens”, homem e mulher), descobrindo que por detrás da imensa variedade da vida, há uma evidente unidade. Como costuma dizer António Coutinho, Director do Instituto Gulbenkian de Ciência: “Vida há só uma”, apesar de não haver dois seres vivos rigorosamente iguais. Através da Biologia Molecular a Física cruzou-se com a Biologia de um modo muito fecundo: a molécula mais complexa de todas é o DNA, o imenso e riquíssimo reportório dos genes, cuja estrutura foi descoberta com a “água suja” da Física e que, sabe-se hoje, está presente nas células de todos os seres vivos. E a genética, que partiu de observação de regularidades macroscópicas, encontra-se hoje bem fundamentada à escala microscópica a partir da observação e manipulação do DNA. A evolução pode hoje ser estudada não apenas vendo o registo fóssil, fragmentado e precário, mas também e com muito sucesso usando as modernas técnicas da genética. A evolução não é ainda tão fácil como a Física, mas, ao ritmo a que as coisas avançam no domínio da genética, o “quase” está cada vez mais pequeno.

Charles Darwin, além da “Origem das Espécies”, escreveu também a obra que fundou o estudo da evolução humana - “A Descendência do Homem”, subintituladaA Selecção em Relação ao Sexo”. Depois de ter revisitado, Jones revisitou a “Descendência do Homem” actualizando-a. Respeitando o título, o autor centra-se na “pequena diferença” que caracteriza a masculinidade, que é o cromossoma Y (as fêmeas têm dois cromossomas X enquanto os machos têm um cromossoma X e um Y). Mas acrescenta que essa caracterização de masculinidade não resiste a uma análise crítica: há animais machos que não têm cromossoma Y. Para os biólogos, a masculinidade tem mais a ver com o tamanho e abundância das células sexuais: tal como acontece no ser humano, elas são muito abundantes e pequenas nos machos e escassas e grandes nas fêmeas. Os machos, por definição, não dão à luz, mas competem por conseguir que as fêmeas o façam. E as células sexuais do mesmo macho também competem entre si. Como escreve Jones de forma muito sugestiva:

“Cada vez que um homem mantém relações sexuais, são libertados espermatozóides suficientes para fertilizar todas as mulheres da Europa. Numa vida são produzidos 2 mil milhões desse potentes invólucros, mas, para um típico ocidental, menos de dois são bem sucedidos. Por que razão são tantos os chamados e tão poucos os escolhidos?

No entanto, a análise do cromossoma Y é muito rica, permitindo revelar o que é, do ponto de vista biológico, o homem (no sentido estrito de macho humano). Jones não se esquece de acrescentar que a descoberta do cromossoma Y foi feita por uma mulher Nettie Maria Stevens, no ano da graça de 1905, precisamente o ano da descoberta da relatividade por Einstein (lá está, uma semelhança entre a Física e a Biologia, sendo injusto que Stevens seja quase desconhecida quando comparada com Einstein). O cromossoma Y permite traçar a evolução do homem, tal como o DNA das mitocôndrias permite traçar a evolução da mulher. Por meio da análise genética, hoje bastante rigorosa, pode-se remontar na genealogia, descobrir paternidades e maternidades, ainda que antigas (e descobre-se a grande frequência de fenómenos de “bastardia” ou “ilegitimidade”).

O que nos ensina a genética sobre a diferença dos sexos? No longo processo de evolução, tudo indica que o cromossoma Y terá derivado do X por empobrecimento (Steve Jones foi categórico numa entrevista ao “Diário de Notícias”: “O cromossoma Y está em decadência”). Num certo sentido, a mulher é mais rica do que o homem! Por exemplo, a mulher vive em média mais do que o homem, resistindo mais e melhor a certas doenças.

Mas, perguntará o leitor que chegou até aqui, qual é a resposta à pergunta do título? Terá Adão encontrado Eva? O relato do “Genesissobre um casal humano que gozava das delícias do Jardim do Éden é, com certeza, uma história, uma bela história mas apenas uma história (embora seja curioso que a mesma história reapareça em culturas diferentes da nossa, judaico-cristã). Mas, segundo Jones, “os Ys do mundo são tão semelhantes que alguns biólogos crêem num Adão universal, que poderá ter vivido há apenas 60 000 anos”, acrescentando com alguma precaução que “a evidência é, no mínimo, vaga.” Por outro lado, usando sempre a genética e remontando na linhagem feminina até uma eventual Eva, conclui-se que ela, a existir, teria de ser muito mais antiga do que Adão. Ou seja, Adão nunca poderia ter conhecido Eva... E esta, hein?

17 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

A imagem que encima o texto é deveras curiosa.
Basta pensar na proximidade com que Eva poderia apreciar a masculinidade genital de Adão rodando a cabeça para a sua direita até ficar a olhar de frente.
Miguel Ângelo era um génio, não era um anjo...

Ana disse...

Trata-se de uma conclusão lançada, em parte, pelo projecto genográfico (da NGS), do qual faz parte o geneticista Spencer Wells, cujos resultados genéticos, coadjuvados pelos achados antropológicos, arqueológicos e dados meteorológicos, comprovam quase sem margem de dúvidas a Teoria Out Of Africa para a origem comum da actual Humanidade.
Mas, sabe que a ideia de que o Adão e a Eva científicos (como são conhecidos; tb se conhece a Eva científica como a Eva Negra, ou Mitocondrial) não coexistiram é muito difícil de apreender e compreender por quem não possui bases científicas?

Curiosamente, publicou-se recentemente um estudo que dá uma nova data à primeira migração humana, e que contraria a data determinada pelos dados de Spencer Wells (não consigo encontrar o artigo de divulgação correspondente...).

platero disse...

se ADÃO não encontrou Eva

talvez então ADÃO & NEVER

Anónimo disse...

Poderia alguém, por amor de Zeus, informar os interessados de que «descent», em português, se diz «ascencência»?

Anónimo disse...

Transcrevo um conhecido dicionário:
«descent: [...] ancestral background: the connection somebody has to an ancestor or group of ancestors»
E a tradução no mesmo dicionário para espanhol:
«descenso /masculino/ ; (ancestry) ascendencia /femenino/ ; of Chinese descent - de ascendencia china»

JCC disse...

Nada percebo do assunto, mas parece-me haver confusões no texto, talvez deliberadas para conseguir impacto mediático. Assim, a discussão sobre os cromossomas X e Y, sendo este último um X degradado, nada tem a ver com Adão e Eva míticos: os símios de que descendemos já tinham macho e fêmea, tal como os animais de que eles próprios descenderam, não é assim? Por outro lado, se há elos perdidos na evolução recente do homo, isso não significa que machos e fêmeas não tenham acasalado -- Adão e Eva são designações muito posteriores, não é assim? Uma coisa é assumir a ignorância, outra gozar com o pagode.

Bartolomeu disse...

Uma vez que o macho está "equipado" com os cromossomas "Y" e "X", não lhe parece possível que, na origem, o homem tivesse sido capaz de se fecundar a si próprio...?!
No mesmo "Genesis", são relatadas duas ordens divinas... intrigante; "Façamos o Homem à Nossa imágem e semelhança" e..."Crescei e Multiplicái-vos"!
Numa observação muito singela, percebe-se que; "façamos" e "nossa", pressupõem mais de um, "imágem" é algo que é reflectido, algo que provém de uma origem e se materializa, ou se observa. "semelhança" é algo que não está completo... algo que terá de se completar para que seja igual.
E ainda... "crescei", sugere que não atingiram ainda a dimensão final, dimensão essa que poderemos entender como física, intelectual, ou espiritual, ou todas em simultâneo.
Mas... destas reflexões, sobra uma outra mais intrigante ainda; tendo Deus criado o mundo e por conseguinte, conhecendo-lhe a dimensão, ordena ao Homem e à Mulher, que cresçam, se multipliquem e... dominem sobre toda a terra.
Ora bem... uma vez que a Terra... o Globo, conhece limites de área, superfície e ainda, que o Homem, extrai da mesma Terra, o sustento que lhe permite subsistir... de que modo está habilitado a cumprir a ordem Divina?!

Ana disse...

José Cipriano, Adão e Eva científicos foram os nomes dados pelos investigadores ao Adão portador do cromossoma Y de quem todos os homens actuais descendem e que terá vivido há cerca de 60 mil anos, e à Eva portadora do material genético mitocondrial de quem todas as mulheres actuais descendem e que terá vivido há cerca de 100 mil anos. Esta Eva tb é chamada Eva Negra ou Eva Mitocondrial. Repare, são o Adão e a Eva Científicos. Trata-se portanto de uma metáfora, mas também de uma denominação empregue pelos investigadores da Teoria Out Of Africa, como os do projecto genográfico.

Ana disse...

Portanto, o Adão científico, de quem se supõe que tenha dado origem a todas as linhagens genéticas do cromossoma Y actuais, viveu há cerca de 60 mil anos. A Eva Científica, Negra ou Mitocondrial, que terá dado origem a todas as linhagens genéticas actuais (masculinas e femininas, pois o material genético mitocondrial é passado somente pelas mães a filhas e filhos), viveu há cerca de cem mil anos. Concluindo, a Eva e o Adão Científicos nunca se encontraram, a avaliar por estes resultados de genética populacional (que estão de acordo com os achados arqueológicos e conclusões antropológicas, note).

Outra coisa, o chamado elo perdido é um mito. :)

Ana disse...

Uma gralha no meu primeiro comentário, peço desculpa: a Eva científica passou o seu material genético mitocondrial a descendentes masculinos e femininos, por isso, não são só as mulheres que dela descendem... mania dos sexismos ihihihih.

Ana disse...

E é interessante notar que tb já se pode conhecer a localização de um possível "Éden", eheheh, que terá sido a primeira seara da humanidade... :P

JCC disse...

Vani,
Muito obrigado pelos esclarecimentos. Há uns anos li um livro de divulgação, intitulado, salvo erro, Eva era negra?, cujo autor tenta traçar a nossa genealogia até à mítica Eva recorrendo ao ADN mitocondrial. Sobre Adão, não li ainda nada. A matéria fascina-me, embora nem sempre a entenda por não pertencer à minha área de formação e por insuficiência de informação. Porto isto, se nós cá estamos, os nossos antepassados acasalaram, não é? Se os dados não são consistentes com a realidade é porque são insuficientes ou incorrectos, parece-me -- mas admito igualmente que a minha confusão derive exclusivamente da minha ignorância. Já agora, onde e quando esse "Éden" mítico?
Mais uma vez, muito obrigado pela tentativa de esclarecimento.

Ana disse...

Olá de novo, José Cipriano! Olhe, aconselho a leitura do livro de divulgação "O Património Genético Português - a história humana preservada nos genes" (colecção Ciência Aberta da Gradiva) de Luísa Pereira e Filipa M. Ribeiro (a Luísa Pereira é bióloga, doutorada em genética populacional, investigadora no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto e Professora Afiliada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; o estudo divulgado é da sua autoria; a Filipa M. Ribeiro é jornalista, com uma pós-graduação em jornalismo médico, de saúde e outra em genética e direito, e um mestrado em Comunicação e Educação de Ciência). Se pesquisar no Google pelo título do livro, encontrará rapidamente o resumo. Se é aficionado das Jornadas da Humanidade, garanto que vai adorar o livro e ficar a par dos novos desenvolvimentos! :))

Com efeito, já se "encontrou" a Eva Negra; muito desse trabalho de genética populacional veio a lume com o Projecto Genográfico da National Geographic Society, encabeçado por Spencer Wells. Essa Eva terá sido uma mulher que viveu há cem mil anos atrás e que terá dado origem a todas diversas linhagens actuais. O ADN mitocondrial dos homens e mulheres actuais remonta a essa mulher primordial; pensa-se que terá feito parte de uma população de que os actuais bosquimanos san serão os descendentes mais directos. Portanto, como deverá saber, o que se fez foi rastrear os ADN mitocondriais e organizá-los genealogicamente. A àrvore desenhada leva-nos até à Eva Negra ou Eva Mitocondrial, que também é apelidada de Eva Científica. Esta Eva é a mãe das linhagens actuais e somente o seu DNA mitocondrial sobreviveu no tempo; todos os restantes desapareceram.

Ana disse...

Já no caso de Adão, não se analisou o ADN mitocondrial pela razão de que os homens não passam o seu ADN mit à descendência, somente as mulheres o fazem. Por outro lado, é importante ter em conta que importa fazer o rastreio e a árvore genealógica genética baseadas num DNA que não se altere significativamente com o tempo; no caso das mulheres é o DNA mit. No caso dos homens, é o cromossoma Y; com efeito, o cromossoma Y não acumula diferenças significativas com o passar dos anos, facto pelo qual se consegue fazer o rastreio e chegar até ao homem que deu origem aos cromossomas Y dos homens actuais.

A Eva negra é pois a mulher que nos passou o dna micondrial que carregamos actualmente. Já os homens actuais são portadores do cromossoma Y que o Adão científico passou. Todos os outros Y, ao que se sabe, não foram passados ao longo dos anos.

A questão de esta Eva e este Adão nunca se terem encontrado temporalmente pode ser vista à luz de uma árvore genealógica: o facto de termos um antepassado feminino que viveu há cem mil anos e outro que viveu há sessenta mil anos, torna impossível que eles tenham acasalado um com o outro; mas continuamos a ser descendentes deles, certo? Só não conseguimos, nas nossas investigações, ir mais longe no passado. O Adão científico é o mais longe, no passado, que se consegue ir com a análise do cromossoma Y; a Eva Científica é o mais longe que se consegue ir, no passado, com a análise do ADN mitocondrial. Esta Eva e este Adão nunca se encontraram; mas, cerca de 40 mil anos depois do tempo de vida dessa Eva, uma sua descendente, portadora do seu ADN mitocondrial, encontrou o Adão científico e, juntos, criaram a linhagem que iria dar origem a todos os homo sapiens actuais. :)

Trata-se de um assunto muito apelativo e muito interessante, sem dúvida, que responda à eterna questão de "quem somos e de onde vimos". No entanto, é algo que não se consegue resumir muito facilmente numa caixa de comentários de um blogue. :) Por isso lhe aconselho a leitura do Patrimonio Genético Português, onde o jargão científico foi deixado de lado e onde a história genética da humanidade é contada de uma forma que não nos deixa largar o livro :).

Ana disse...

Irei procurar a informação sobre o possível "Éden" científico e indicar-lhe-ei, está prometido (agora assim de repente a minha memória fraquejou, pelo que quero ter a certeza; sei onde está a informação). Voltarei aqui amanhã com a dita, está prometido :).

Espero ter ajudado a dar alguma luz à questão, mas é mesmo complicado expor tudo aqui :D. Leia o livro que lhe recomendo, não se vai arrepender! :))

Ana disse...

Ps - não há por que agradecer, temos de ser uns para os outros e partilha de conhecimento é evolução :). Eu mesma nada perceberei da sua área, decerto, mas assim já saberei com quem tirar as minhas dúvidas! :)

Anónimo disse...

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